domingo, 30 de maio de 2010

Cientistas de olhar estreito

Eduardo Ribeiro Mundim

O ser humano é movido à vaidade, de alguma forma. Tal combustível não é necessariamente ruim, pois bem utilizado é um fermento para a competição saudável e para a criatividade inovadora. Mas também é, como todo combustível, explosivo quando inadequadamente empregado.

Mário Novello, físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no Rio de Janeiro, em entrevista à Folha de São Paulo de hoje (30/05/10), publicada à página A21, tece alguns comentários sobre os cientistas atuais, como um todo - portanto, generalizando.

Na sua área de atuação, cosmologia, Dr. Novello vê muito estrelismo, rotina, competição pela mídia, corrida para o Prêmio Nobel (que só premia um a cada ano). Critica a ausência do prazer em fazer bem as coisas, substituído pela necessidade de valorização do indivíduo na forma de bolsas de pesquisa e prêmios, sejam acadêmicos ou não. Preocupa-o porque facilita uma deturpação da atividade científica, diálogo com a natureza, transformando-a em diálogo com os próprios pares.

"Na minha época, havia uma visão global do que era atividade humana. Havia cadeira de filosofia, sociologia, tinhamos contato com o mundo. Existe uma falta de fundamentos, hoje, do que é fazer ciência. Você pode ser um técnico extremamente competente, mas fora da área técnica pode ser um ignorante completo, sem saber o que está por trás do que você está fazendo na sua área."

Rubem Alves, no seu livro "Filosofia da ciência: introdução ao jogo e as suas regras", publicado pela Editora Loyola, aponta que os grandes avanços científicos não foram frutos do puro tecnicismo, mas da capacidade de imaginação, de ver além do seu círculo pessoal de atuação.

Dr. Mário é adversário da teoria do "big bang" por considerá-la, tal como foi popularizada, uma limitação a atividade científica. Aponta que existem dados teóricos que sugerem não uma desaceleração do universo, como previsto por esta teoria, mas uma aceleração.

Relacionado com um ponto específico da entrevista, o articulista Marcelo Gleiser, uma página à frente, aponta que a ciência dedica-se ao mundo que é percebido pelos nossos sentidos. O não percebido por eles, ou o que está além da realidade, não pode ser submetido ao seu escrutínio.

domingo, 23 de maio de 2010

Sobre a morte e o morrer


Eduardo Ribeiro Mundim

Falar sobre a morte não é fácil. O tema logo provoca desconforto, habitualmente percebido por piadas mais ou menos sem graça, e risos forçados. Os jovens não querem nela falar, porque lhes parece irreal, longe, afeta apenas aos idosos e doentes. Os idosos e doentes frequentemente desejam comentá-la, prepararem-se para ela, para profunda consternação dos familiares e equipes de saúde. Aqueles a negam, na ilusão onipotente da juventude; estes a temem, na certeza de sua proximidade crescente à medida que os dias se passam.

Ela é um evento multifacetado. Várias faces, nenhuma resumindo o todo, e o todo não revelando os detalhes. Elas podem ser agrupadas por similaridade: a forma, o momento, as razões, as pessoas, as repercussões, o luto... Fome, doença, violência, ação estatal, decadência progressiva, etc.

É um evento profundamente humano, inescapável e onipresente.

Um conto lido recentemente marcou meu imaginário a respeito do tema. Provavelmente, ele apenas organizou pensamentos e leituras até então desconexos. Trata-se do “conto dos três irmãos”, de Joane K Rowlingi. Resumidamente: três irmãos bruxos iniciaram uma jornada, onde, a certo momento, encontraram um caudaloso rio. Não havia possibilidade de atravessá-lo à pé ou à nado, nem embarcação disponível. Juntos, conjuraram uma ponte, imediatamente concretizada. Após percorrerem metade da sua extensão, o caminho encontrava-se bloqueado por uma figura negra e encapuzada. Furiosa por não ter conseguido as três vidas (que era o evento habitual para os viajantes naquele ponto da estrada), a Morte se apresentou a eles, dando-lhes o direito de demandarem, individualmente, um desejo. O mais velho, orgulhoso, e o mais forte, exigiu uma varinha mágica imbatível, impossível de ser derrotada, digna daquele que a vencera. Do galho de uma árvore próxima, a Morte tirou um ramo, fabricando dele tal varinha, deixando-o passar. O segundo irmão, arrogante, desejando ampliar a humilhação da inimiga, demandou a capacidade de tornar à vida os mortos. Ela, pegando um pedregulho das margens do rio, infundiu-lhe tal poder, e a entregou. O mais moço a tudo observava, e desconfiado do drama que se desenrolava, pediu-lhe apenas que pudesse dali sair, sem ser achado por ela. Muito a contragosto, a Morte lhe entregou a própria capa. Os irmãos seguiram viajem, e se separaram no devido tempo. O mais velho tinha contas a ajustar com um conhecido. Procurou-o e o venceu em um duelo de mágicos, matando-o. Dirigiu-se a um bar na cidade, onde, em meio aos muitos copos de álcool, vangloriou-se do feito e de sua varinha. Pela madrugada, um dos ouvintes invadiu seu quarto, onde dormia profundamente, roubando-lhe a preciosa varinha. Apenas por precaução, degolou-o. E a Morte recebeu o primeiro irmão. O segundo, sozinho em sua residência, viu, através da pedra, uma moça que sonhara desposar anos antes. Resgatou-a do mundo dos mortos, trazendo-a para junto de si. Contudo, ela não se adaptava ao mundo dos vivos, e preferiu novamente morrer. Desesperado, e como única maneira de reunir-se verdadeiramente a ela, ele se matou. E a Morte recebeu o segundo irmão. Os anos se passaram, e por mais que procurasse, ela não encontrava o caçula. Já muito velho, família constituída até a terceira geração, tendo realizado o que fora possível, o mais novo retirou a capa, passando-a para o filho, e aguardou a Morte. Ela foi recebida como uma velha amiga, e, como amigos e iguais, ele partiu com ela.

Neste conto temos três mortes, três faces. O primeiro, seguindo o ditado popular, morreu como viveu, pela violência. O segundo, incapaz de fazer frente à impossibilidade do seu desejo, suicida-se. O terceiro, sabedor de que o encontro somente poderia ser adiado, viveu a vida com plenitude, e soube encontrar a morte no momento em que ela se encaixava na vida.

O propósito aqui, neste encontro, é refletir sobre a morte e a fé cristã, na sua vertente evangélica. A morte em relação a doença, e a vida como um preparo para a mesma. Estas são as faces que delimitam a presente reflexão.

E a primeira manifestação que vem à mente é o brado do apóstolo Paulo: “onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (I Co 15.55). A morte, torturadora por constituição, é uma inimiga a ser vencida. Mas será esta a única visão possível? Não será a morte nas Escrituras também multifacetada? Será ela sempre a antítese da vida?

A morte carrega o absurdo. O absurdo da não mais existência; o absurdo de chamar o João, falecido há pouco, de corpo; o absurdo de, vendo-lhe a face, não ver-lhe o espírito; o absurdo da cisão, da ruptura, da desagregação violenta de uma unidade bio-psico-espírito-social que se julgava indissociável. O paradoxo de continuar a ser sem um corpo físico, em outra dimensão, separado, na não existência para os que ficam.

A vida é valorizada do início ao fim das Escrituras. Numerosas são as referências bíblicas para desfrutá-la e todo um livro foi escrito para celebrar o amor entre um homem e uma mulher. Em momento algum ordena-se ou estimula-se o suicídio, e uma vida longa é entendida como abençoada. Contudo, mesmo como dom de Deus e dEle procedente, não é valor supremoii. Disto Elas também dão testemunho. O assassinato premeditado era punido, na Antiga Dispensação, com a pena capital, e não havia lugar na face da terra que tal assassino pudesse se refugiar – nem mesmo no altar. Se tal ocorresse, a ordem divina é que ele deveria ser arrastado de lá e executado (Ex 21.14). E mesmo uma vida inocente não valia o preço da apostasia. Sadraque, Mesaque e Abede-nego se recusaram a adorar a estátua de ouro de Nabuconodosor, sabedores da penalidade e do modo de execução (Dn 3), em uma época que a noção de ressurreição não existiaiii. Até então, o destino dos mortos era o “sheol”, o mundo subterrâneo onde não há lembrança de Deus nem o Seu culto, mas uma radical separação dEle – portanto, uma existência que não poderia ser chamada de “vida”iv. Sem nenhuma perspectiva de recompensa posterior, em outra vida, ou naquela, deixam claro ao rei, no julgamento, “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste.” (Dn 3.16-17)

Portanto, temos estes dois eixos: a vida como um dom precioso que não pode ser desperdiçado, e o seu não valor absoluto – há coisas mais valiosas.

As Escrituras são claras em aceitar como fato inquestionável a morte: ela vai ocorrer. Por razões que não nos dizem respeito, apenas dois seres humanos não a sofreram, Enoque e Elias. E Deus mesmo sabe o que ela significa, pois escolheu vestir toda a nossa humanidade em Jesus, sofrendo não só a fome, como a espada e a morte em uma versão cruel e sádica. Ainda que seja um terreno pouco firme usar a atitude dEle diante da morte como parâmetro para nós, é digno de nota o Seu apelo: “se possível, passa de mim este cálice” e “que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isto vim a esta hora” (Jo 12:27). Ainda que seja dito comum de que a morte entrou no mundo através do pecado adâmico, diversos comentaristas apontam que não havia promessa de imortalidade no Éden, e que a morte aconteceria após um longo período de vida frutífera e felizv.

Dentro dos limites propostos, temos a morte como consequência à doença. E nos dias atuais, uma questão é saber quando alguém morreu. Não há dúvida quando o corpo está rompido por um acidente, ou em estado de decomposição. Mas quando a morte (a ruptura bio-psico-espírito-social) chega? Algumas respostas a esta questão são avaliadas pela implicação imediata no extremo oposto: quando a vida começa? Se é possível perscrutar as Escrituras em busca da resposta à segunda questãovi, elas não nos auxiliam na primeira; dependemos exclusivamente de outras fontes para respondê-la.

O avanço tecnológico permite que se mantenha um coração batendo em um corpo incapaz de respirar por si mesmo e sem nenhum contato consciente (e talvez inconsciente) com o mundo exterior (e interior); ou um corpo vivo, que respira espontaneamente, mas absolutamente inconsciente. Paradoxos ocorremvii: “mãe em morte cerebral dá à luz e morre” (é possível um cadáver dar à luz?). Progressos médicos históricos acontecem em um vazio éticoviii: o primeiro transplante cardíaco foi realizado quando não existia o critério de morte encefálicaix. E esta não é uma unanimidade entre os técnicos, a ponto da Federação Evangélica Francesa chamar a atenção para o fato de que “morte encefálica não pode ser considerada por algumas pessoas ou culturas como a verdadeira morte. É um evento mais do que uma realidade.x” E adeptos de teorias conspiratórias vêm nele apenas um mecanismo de lucro no “negócio de transplantes”xi.

Portanto, questões prementes carecem de aprofundamento em todas as áreas do conhecimento (e não somente na de saúde) e aguardam a contribuição cristã evangélica equilibrada, filosófica e abrangente. Por exemploxii:
  1. Quando morre um ser humano?
  2. Quando é lícito deixar de intentar manter vivo um ser humano?
  3. Quando é lícito extrair órgãos de um ser humano com o fim de transplantá-lo a outro?

Na tradição ocidental, a partir da queda do Império Romano, o comportamento em relação àquele que está para morrer, segundo o conhecimento médico do momento, pode ser, genericamente, dividido em quatro fasesxiii:
  1. a da Idade Média, onde prevaleciam os cuidados espirituais, com pouca efetividade sobre os sintomas orgânicos, incluindo a dor;
  2. a do modelo biomédico cartesiano do século XVII, onde a tendência era o abandono por não haver conhecimento suficiente para enfrentar as enfermidades terminais de então;
  3. a do progresso biotecnológico da segunda metade do século XX, onde, após o acúmulo progressivo do conhecimento biológico associado à capacidade de conceber e realizar, resultou na obstinação terapêutica e isolamento daquele que está a morrer;
  4. a da época dos cuidados paliativos (de inspiração cristãxiv), a partir da década de 60, com a busca de se implementar uma série de cuidados planejados buscando atender à todas as necessidades da pessoa “em fase final” (incluindo as biológicas, psicológicas e espirituais) buscando uma melhor qualidade de vida e de morte.

Sendo a morte evento certo, apenas adiável por um período de tempo, não seria arrogância, como aquela do Éden quando o limite imposto foi recusado, esforços médicos heroicos e desesperados, efetuados em nome de uma mínima chance de vida futura e com qualidade questionável? Não seria arrogância a expectativa de um milagre final, evento raro estatisticamente falando? O não deixar morrer interessa a quem: à família, com dívidas por saldar? Ao moribundo, em nome de uma possível “aceitação do Evangelho” nos momentos finais de vida? O que é terapêutico (útil para o paciente)? O que é iatrogênico (causador de mal desnecessário)? O que é útil e o que é fútil?

Qual o impacto que a realidade da ressurreição traz sobre o nosso modo de ver a morte e para ela se preparar? Estamos prontos para vê-la como uma passagem para uma realidade melhor, ainda que desconhecida? A confiança em Nosso Pai Amoroso, definido como sendo Amor (I Jo 4.8), é suficientemente poderosa para que enfrentemos com confiança o desconhecido, terra donde nenhum homem jamais voltou – apenas Jesus? Desejamos ardentemente o corpo espiritual, sucessor deste carnal, cujo exemplo único é aquele testemunhado pelos apóstolos e os seguidores mais próximos?

O momento da morte é cheio de fantasmas: a possibilidade da dor, do isolamento, da falta de significado. Não serão eles que justificam a eutanásia ativa (o fazer morrer, ao contrário da passiva, o deixar morrer), buscando preservar a dignidade da pessoa? Como sustentação deste ponto, há o exemplo do Lar Nossa Senhora da Conceição, dedicado aos cuidados paliativos, onde não houve solicitação de eutanásia ou de interrupção de tratamentoxv, por 14 anos. Cuidados paliativos são definidos como um conjunto de ações multiprofissionais orquestradas que melhoram a qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares através da identificação e alívio do sofrimento em suas diferentes dimensões (física, mental, social e espiritual), tratando enfermo e família como uma unidade de tratamento, privilegiando as vivências e valores subjetivosxvi. A equipe deve revestir-se de compaixão, “o não ter medo do sofrimento outro e assumi-lo dentro de si sem deixar-se nele naufragar”. E para isto é necessário que quem cuida “não tenha medo de frequentar seus próprios momentos de luto, de ruptura e de crise”, de tal forma que seja confiante na impermanência desta atual forma de vidaxvii.

A “boa morte” talvez possa ser definida como aquela que ocorre em circunstâncias ondexviii:
  1. viveu-se o máximo do potencial biológico, emocional, espiritual, vocacional e social;
  2. manteve-se alerta e independente até onde foi possível;
  3. o conhecimento sobre suas condições estava disponível para ser apropriado ou não, conforme o desejo da pessoa;
  4. o acompanhamento foi realizado por profissionais competentes, seguros e sensíveis;
  5. a pessoa foi o juiz final de tudo aquilo que lhe dizia respeito;
  6. foi possibilitado o uso criativo do tempo;
  7. as necessidades e temores dos familiares foram também tratados profissionalmente com segurança, competência e sensibilidade, antes, durante e após o óbito;
  8. houve conforto, dignidade e paz.

Desta forma, morrer continua sendo um ato solitário, assim como o nascer, mas somente naquele ponto em que estas vivências não podem ser vividas por outro, apenas por aquele que a experimenta.

iRowling JK Os contos de Beedle, o bardo Editora Rocco, RJ, Rio de Janeiro, 2008
iiiBrown C Ressurreição em Colin Brown (ed) O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, vol IV, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, pg 162, 1989
ivDavids PH Habitação dos mortos em Walter A Elwell (ed) Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, vol II, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, pg 559-60, 1990
v
viiValls ALM Repensando a vida e a morte do ponto de vista filosófico, em www.ufrgs.br/bioetica/morteamv.htm
viii Valls ALM op. cit.
ixResolução do Conselho Federal de Medicina 1480/1997, disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1480_1997.htm
x Collange JF, Hentz JG, Lehmkuehler K, Olekhnovitch L, Rive JP, Schweitzer L, Sicard D États généraux de la bioéthique 2009 - Éléments de réflexion proposés par la Commission Église et Société de la FPF, disponível em http://www.protestants.org/index.php?id=31566
xiVer, por exemplo, o blog www.juliosevero.com pesquisando o termo
xiiValls ALM op. cit.
xiiiPeralta A Enfermedad terminal em Juan Carlos Tealdi (dir) Diccionario latinoamericano de bioética, vol III, UNESCO – Red latinoamericano e del Caribe de bioética, Universidad Nacional de Colombia, pg 492-495, 2008
xiv Hennezel M e Leloup JY A Morte de morrer, 5ª ed, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2002
xvi Simone G Cuidados paliativos em Juan Carlos Tealdi (dir) Diccionario latinoamericano de bioética, vol III, UNESCO – Red latinoamericano e del Caribe de bioética, Universidad Nacional de Colombia, pg 87-88, 2008
xvii Hennezel M e Leloup JY op. cit.
xviii Peralta A op. cit.

domingo, 16 de maio de 2010

Ação política de cristianizados ou cristãos políticos?

Eduardo Ribeiro Mundim

Qual era o propósito de Jesus para a Igreja, enquanto conjunto dos salvos, em meio a sociedade? Em nenhum momento Ele ordenou o desenvolvimento em separado; em nenhum momento interditou aos seus discípulos a participação na condução dos negócios "mundanos" - não há contradição entre o ser cristão e a atividade política legítima! Mas como deveria ser esta participação?

Na sua evolução histórica, a igreja se alia ao governo civil, e passa a obter dele vantagens: segurança institucional, segurança teológica através da violência estatal (legitimada pelos padrões da época), propriedades. Em troca, subserviência política e apoio irrestrito. Evoluiu ao ponto de se identificar com ele, através dos "estados pontifícios".

Ser cristão passa a ser identificado com o ser batizado na infância, e não uma escolha adulta, madura, fruto da convicção "do pecado, da justiça e do juízo" e do poder perdoador e santificador da morte e ressurreição do Senhor. Portanto, a sociedade se torna repleta de pseudocristãos, e a igreja conta com o Estado para impor seu padrão de conduta a todos, indistintamente. Isto é cristianização...

Entendo que o caminho adotado foi um equivoco, e grave. Equivoco estratégico, do ponto de vista missionário (porque pregar o Evangelho passa a ser também levar o poder público que o financia a reboque) e equivoco teológico, pois a mensagem das Escrituras é adaptada para não ameaçar o poder político dominante. O Diabo efetuou uma jogada de mestre, se é verdade que o imperador romano Constantino viu aquela cruz com a mensagem de vitória...

Entendo que o caminho apontado por Jesus e por seus apóstolos é o da Igreja como sociedade alternativa. Luz e sal para a grande sociedade. Mostra de um caminho melhor no relacionamento entre as pessoas, no trato da propriedade comum, no uso da decisão conciliar, do convencimento pela argumentação no lugar da imposição pela força.

Entendo que o cristão deveria servir aos seus concidadãos, e não buscar proveito pessoal, ou para seu partido político que não fosse legítimo e em igualdade de condições com aqueles que não exercem, no momento, o mandato popular para governar.

Entendo que o cristão deveria defender a moral cristã, dando mostras em si mesmo e através da comunidade dos remidos, de como os efeitos dela são superiores aos da moral secular vigente. Entendo que é um erro tático, do ponto de vista missiológico, e um erro teológico, a imposição dos nossos valores àqueles que não participam do corpo e do sangue de Nosso Senhor.

Entendo como diabólica a busca por privilégios denominacionais na esfera pública. Entendo como não condizente com o Evangelho o uso dos recursos estatais para dificultar ou suprimir outras manifestações religiosas contrárias ao Evangelho.

Entendo que as portas do inferno não prevalecerão sobre a Igreja enquanto Corpo de Cristo, mas que, muitas vezes, as instituições criadas pelos cristãos atuam segundo os preceitos do Diabo.

Que o Senhor nos renove, nos converta e nos ponha nos caminhos do Seu Reino. Amém.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A tecnociência é a parteria da pós-humanidade, afirma filósofa argentina

Edelberto Behs


Quarta-feira, 12 de maio de 2010 (ALC) - Futurólogos preveem que antes do final do século XXI desaparecerá o último humano da face da Terra, dando lugar aos cyborgs, seres biológicos e maquínicos, anunciou a filósofa argentina Esther Diaz, professora da Universidade Nacional de Lanús.

"A tecnociência é a religião global de hoje e a saúde é o seu bem maior", disse Esther na segunda-feira, 10, para uma platéia de professores e estudantes da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, ao falar sobre "O desejo e a ética como base para a investigação e a docência universitária".

A ciência, enfatizou Diaz, é muito mais do que conhecimento, porque ela lida com o poder. Daí que a biopolítica, ou o biopoder, quer o controle da vida, da saúde, do sexo, da morte.
Antigamente, quando o coração parava de bater era o indicativo de que a pessoa estava morta. Hoje, um aparelho marca o momento da morte encefálica. Na atualidade, a pessoa não morre mais em casa, numa cama rodeada de parentes e num ambiente familiar, mas morre numa Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), solitariamente.

Hoje, o biopoder atua sobre a vida, como aconteceu nos campos de extermínio, e atua sobre a morte, como se verifica nas unidades de terapia intensiva. As UTIs não passam de locais onde se espera a morte, disse.

Se no passado cabia às religiões aspirarem a vida eterna, hoje é a técnica que almeja a vida eterna biológica, disse Diaz. "As promessas de salvação não vêm mais do mundo religioso, mas do mundo científico", agregou.

As pessoas passam a ser, então, uma fusão de natureza e técnica, início da era pós-humana. "A técnica, hoje, se introjeta no corpo por manipulação genética, implante, transplante", arrolou a palestrante.

Parodiando Karl Marx – "a violência é a parteira da história" – a filósofa argentina mencionou que "a tecnociência é a parteira do pós-humano".

Embora o poder tente convencer a humanidade de que a ciência é neutra, universal, é preciso questionar a racionalidade científica, brigar para que a ética perpasse a ciência, e ter claro que a ciência não é neutra nem universal.

Enquanto a Aids se restringiu ao continente africano, o vírus HIV mereceu pouca atenção da indústria de fármacos. Assim que a pandemia chegou a países desenvolvidos, o quadro mudou, ganhou pesquisas e medicamentos, apontou a filósofa, ressaltando, assim, que a ciência não é universal nem neutra, que ela não está aí para todos da mesma forma.

Não se trata de negar a técnica e a ciência, frisou, mas de pensá-las, questioná-las e definir que papel elas desempenharão no futuro.

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Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC)
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segunda-feira, 3 de maio de 2010

Por que não é difícil compreender os cristãos de esquerda?

 
Joanildo Burity

A desigualdade natural entre os seres humanos é um velho pensamento. Segundo sua lógica, haveria uma ordem das coisas, definida por Deus de antemão e para sempre, e tal ordem é assimétrica: pessoas nascem para mandar, outras para serem oprimidas; pessoas nascem para ter, outras para viverem em privação; pessoas nascem para serem livres, outras para serem escravizadas. O curioso é que o primeiro termo em cada categoria é sempre reservado a um pequeno número e o outro é reservado à grande maioria. Um cinismo fatalista anuncia que esta é a lei da vida e que os perdedores precisam se conformar e tocar os dias à espera da morte. Parte considerável desta atitude tem sido elaborada e defendida em nome da religião. O cristianismo não é exceção. Respeitáveis figuras da história do cristianismo são parte desta visão: ofereceram o céu, no além-túmulo, como lugar onde os miseráveis da terra poderiam esperar compensação por seu infortúnio. Alguns foram às raias do requinte e trabalharam na defesa de Deus (afinal, que Deus poderia patrocinar tamanho escândalo?) na linha da retribuição: se muitos sofrem é porque merecem – ou são moralmente reprováveis, ou são incapazes, resignados, estúpidos, incrédulos. Teologias da desigualdade natural.

Por outro lado, a história humana é violentamente marcada pelas lutas em torno de manter estruturas assentadas na desigualdade ou transformá-las. Não é difícil entender como lutar para manter ou romper a desigualdade tem diretamente a ver com lutar contra ou a favor da liberdade. Isso já nos deveria chamar a atenção para um problema na teologia da desigualdade natural: por que as pessoas resistem? Por que se insubordinam? Ou por que outras, não sendo elas mesmas vitimizadas pela miséria, opressão, discriminação e pelo desprezo, sentem indignação quando veem outros seres humanos sofrerem, independentemente de sua fé? Por que os teólogos e seguidores da desigualdade natural tantas vezes reagiram com impaciência, ira e violência à recusa, por pacífica que fosse, dos desiguais em aceitarem seu destino? Estranho, não? Somente os “de baixo” são desiguais!

Respondo: porque há algo profundamente não-natural no fato de que seres humanos criados pelo mesmo Deus sejam considerados superiores e inferiores entre si e diante de Deus. Porque essa desigualdade foi o resultado de processos históricos concretos e não de um decreto divino atemporal. Porque nem sempre foi assim, não em toda parte, nem em todo tempo. Porque na história da religião judaico-cristã (especifico apenas porque não há espaço para explorar outras tradições religiosas) há um conjunto de imagens, ideias e ideais que explicam perfeitamente o que pode levar à denúncia da desigualdade; à necessidade de construir instituições sociais falíveis e imperfeitas como uma resposta positiva a um Deus que é visto como justo, amoroso e altruísta, mas capaz de tomar partido; à idealização de futuros que nunca chegam, mas que fazem de todo presente um momento de decisão sobre o mundo em que queremos viver. Não são poucos os que, a partir de dentro, bem do fundo desta tradição judaico-cristã, ousaram, inspirados na salvação, no céu e/ou no reino de Deus, chamar a isso de socialismo. O socialismo tem raízes profundamente religiosas, disso sabiam mesmo Marx, Engels, Rosa, Gramsci, mas sobretudo cristãos: franciscanos, valdenses, Munzer e os anabatistas, Maurice, Kingsley, Carlyle, Barth, Tillich, Shaull.

Assim, a despeito de todas as distorções, desmandos e erros cometidos em nome do socialismo tanto quanto em nome do cristianismo, muitos permanecem convictos de que a luta contra a desigualdade vai além dos limites das experiências concretas que buscam enfrentá-la. Seu compromisso, sua leitura da realidade e seus valores não os permitem ignorar o desafio moral e político da opressão. Mas entre estes estão os que interpretam tais posições à luz de sua fé cristã. Não é difícil entender.

Numa edição anterior de Ultimato, Norma Braga varreu para debaixo do tapete tudo isso e se escandalizou com o fato (ao menos isso ela reconhece) de que haja tantos cristãos socialistas ainda hoje. Ignorando que a história das ideias de justiça e igualdade neste mundo está recheada da militância e do sacrifício de milhares de cristãos fieis a Deus, cuja memória temos o dever ético de respeitar, ela julga que os socialistas cristãos são partidários de César. Ora, da Europa nazista à Cuba de Porfírio, Nicarágua de Batista, Angola e Moçambique coloniais, África do Sul do apartheid, o pouco de decência que se tem podido oferecer àqueles povos, ao longo de acidentadas histórias, teve contribuições nunca ausentes desses cristãos socialistas, comunistas e anarquistas. Sua memória não pode ser desprezada e pisada impunemente, em nome de uma leitura torta da liberdade sem o grito da justiça.

Por não achar que o socialismo é a única forma histórica possível de expressão política dos valores bíblicos e cristãos, respeito a opinião de Norma Braga e defendo seu direito a defendê-la. Mas insurjo-me contra sua visão desmemoriada e despolitizada da militância cristã, que se dá num mundo de escolhas preto-no-branco, sem história e sem contingência, sem finitude, mas também sem o gosto e o risco da liberdade e da decisão. Confunde ação eficaz com pregação evangelística. Não é à toa que se autodenomina "missionária de ideias". Bonitas palavras, mas não moverão um milímetro das relações e estruturas que asseguram a desigualdade brutal do Brasil e as poderosas forças que movem o capitalismo contemporâneo em escala global.

A julgar pelas orientações dadas por Norma, Deus precisa mesmo ajudar a igreja brasileira a saber discernir entre a legitimidade das opções históricas e a pretensão de deter um oráculo divino para guiar o destino do mundo. A “genuína cosmovisão cristã” é um projeto plural, resultante de encontros e desencontros de centenas de gerações de cristãos com suas condições históricas e sociais reais. Ninguém tem como resumi-la em fórmulas sintéticas ou pretender ter a chave para separar o joio do trigo. Enquanto isso, milhares de cristãos vão ousando aliar suas esperanças por um mundo mais justo e livre com velhos sonhos de igualdade e emancipação, que sempre escapam às realizações concretas em cada tempo e lugar. Sonhos de socialismo, por que não?


• Joanildo Burity é doutor em ciência política, anglicano e professor na Universidade de Durham (Inglaterra). Escreve mensalmente no blog www.novosdialogos.com.

domingo, 2 de maio de 2010

Evangelização ou cristianização

Eduardo Ribeiro Mundim
Já faz algum tempo que este tema me incomoda. Reportagem recente sobre a última viagem de Bento XVI trouxe uma frase sobre a ilha de Malta: "...cristianizada pelo apóstolo..." E um pré-candidato à presidência da república afirmou, em evento com evangélicos, que a igreja evangélica é importante para a cristianização da sociedade. Será que os dois termos são sinônimos ou expressam diferentes realidades?


Particularmente entendo evangelização como o ato de divulgar o Evangelho de nosso Senhor ressurreto, Cristo Jesus, de modo a possibilitar, a quem com ele toma contato, a possibilidade de livre escolha: aceito ou não o sacrifício voluntário de Jesus na cruz, morrendo a minha morte, pagando o preço do meu pecado? A escolha entre sim e não é informada, livre de constrangimentos de qualquer natureza, que deve acarretar modificações de maior ou menor monta na vida daquele que diz sim (depende de sua história de vida e inserção social); eventualmente, pode significar perda de prestígio, de poder econômico, de poder político, de familiares, e, em alguns rincões, da própria vida.

Esta aceitação, ou nascer de novo no jargão tradicional (emprestado do diálogo entre o carpinteiro Jesus e o fariseu Nicodemos em Jo 3), não é uma troca ou um negócio: minha aceitação do sacrifício para que eu receba a vida eterna; ou receba a bênção A ou a bênção B. Ela é absoluta no sentido de que nada se espera em troca; absoluta porque consequência de uma convicção profunda que nada pode exigir frente à monstruosidade do meu pecado e a imensidão da graça do perdão gratuito e imerecido ofertado pela cruz e pelo túmulo vazio.

Ela é livre por demanda do próprio Senhor Jesus, que livremente aceita a paixão mesmo sabendo que a esmagadora maioria da humanidade a recusará (a partir da ótica do livre arbítrio, por amor de toda a humanidade mesmo daquela porção que negará Seu sacrifício e Seu senhorio). Livre por Sua demanda porque há um preço a pagar - na verdade, consequência ética óbvia. Quem rouba, que não roube mais;quem mente, que não minta mais. Um processo permanente de revisão de vida e de adequação, às vezes sofrida, à ética do Reino de Deus. Este não é a minha parte no acordo - é consequência necessária de toda confissão verdadeira.

Cristianização é quando a ética do Reino é imposta àqueles que não confessam que Jesus morreu pelos seus pecados. É o estabelecimento, por coerção moral, legal ou violenta, das normas do Reino àqueles que não as desejam e que não escolheram viver sob elas. Junto delas vêm os símbolos, as histórias, as datas...

Enquanto evangelização é um dos mandamentos divinos (e não o único, ou o mais importante), cristianização é uma deturpação diabólica, porque traz a aparência de conversão, mas os corações continuam afastados do Evangelho, intocados por Ele. Provavelmente, cristianização é uma pedra de tropeço à evangelização, e imensa.

Muitos acreditam que a salvação da sociedade moderna, que jamais será majoritariamente cristã, seja sua cristianização, que a tornaria menos imperfeita.

Contudo, a história não é evidência desta esperança. Iniciando com o império romano após Constantino, todas as vezes em que a cristianização foi posta em prática, houve violência, sangue, dor e morte. Vide a idade média e as guerras de religião na Europa, assim como a invasão das Américas.

A aliança com Israel é, de certo modo, o protótipo da cristianização. Como ela era? As crianças nasciam no seio de uma sociedade já pronta, com toda cultura e religião, e não a escolhiam; eram forçadas a ela. E qual o juízo dos profetas sobre ela? Que Deus era honrado com os lábios, e não com os corações; que estes eram de pedra, e não de carne. Que havia ajuntamentos solenes, de adoração e culto, os quais Ele não podia suportar pela hipocrisia e falsidade.

A segundo aliança, feita pelo sangue e corpo de Cristo, é o protótipo da evangelização. Adere quem quer, quem atende ao chamado, modificando a si mesmo e, à medida da graça divina, o microambiente imediato no qual esta inserido.

Creio que o mundo está farto de cristianização...