terça-feira, 29 de março de 2011

Cristãos em crise com o que julgavam ser a sua fé

Eduardo Ribeiro Mundim

Já é lugar comum falar sobre a crise de fé trazida pela pós-modernidade, descrita como uma situação onde inexistem verdades absolutas por serem algo inatingível ou inexistente. O cristão tradicional, ou seja, que subscreve o credo de Niceia, crê em verdades absolutas, sintetizadas por esta declaração de fé. Ele é, na sociedade contemporânea, uma "anomalia".

E não é de hoje que o cristão evangélico é caracterizado como algo em vias de extinção por sua absoluta dissintonia com o mundo atual, seja por crer em verdades absolutas e universais, seja por defender posturas morais incompatíveis com a atual onda do politicamente correto. Não é por acaso que novelas usam personagens religiosos (com frequência Testemunhas de Jeová, um grupo que não assina o credo niceno-constantinopolitano) para retratar situações particulares como exemplo de norma geral: transfusão de sangue é o prato predileto. Qual personagem cristão evangélico foi retratado em algum filme ou novela com aspecto positivo? Este personagem, se existente, ficou retido na memória comum?

Não se pode fugir ao fato de que pastores e políticos tem fornecido munição suficiente para o descrédito, quando assumindo a filiação evangélica (e, às vezes, por parte de igrejas feitas sob encomenda e de caráter cristão bastante questionável) e tendo um comportamento público de imoralidade flagrante e de incoerência explícita com o Evangelho.

Contudo, percebo que há uma crise sobre a qual pouco se fala. Talvez porque não exista, e seja apenas minha experiência pessoal; talvez porque não é, dentro do arraial cristão evangélico, politicamente correto se levantar determinadas questões.

É a crise do se crer naquilo que não se deve crer, naquilo que o Evangelho e o restante das Escrituras jamais ensinaram. Dentre outras:

1. A única pessoa capaz de um ato de amor desinteressado é o cristão
2. Somente os cristãos têm virtudes
3. O cristão é o modelo que deve ser seguido pelo restante da sociedade
4. Não cristãos não agradam a Deus
5. Não cristãos somente são alvos do amor de Deus através da pregação do Evangelho, buscando convertê-los à verdadeira fé.

Qual apóstolo foi exemplo de amor desinteressado em absoluto? Esta é uma impossibilidade humana, pelo que ensina a psicologia (que explicita o caráter eternamente conflituoso do ser humano); as Escrituras não fazem esta afirmação em lugar algum, e qualquer tentativa de encontrar tal perfeição é tão sólida quanto gelatina no forno acesso. Na era da informação rápida, quantos atos heroicos foram praticados, ao preço da própria vida, por pessoas religiosas de outras confissões e não-religiosas? E quantos atos covardes foram cometidos por cristãos em nome da segurança pessoal e/ou familiar?

Não é prudente confundir as revelações das Escrituras. Elas são claras: nenhum homem pode agradar a Deus por suas próprias atitudes, pois todas estão marcadas pelo pecado, por mais puras que conscientemente elas sejam. Não é este o ensino das Escrituras? E neste quesito não é o ensino das mesmas que este agrado diz respeito ao fato de sermos aceitos por Deus enquanto rebeldes a Suas vontade e ensino? E que estas atitudes não apagam os erros que cometemos? E que somente pelo sacrifício de Jesus na cruz, com Sua ressurreição, apagam diante dEle nossas transgressões?

E não são as mesmas Escrituras que revelam que toda atitude correta, mesmo não tendo valor salvífico, agrada a Deus, não importa quem a pratique?

Não é ensino legítimo de que Deus faz nascer Seu sol sobre justos e injustos, e que por amor de todos "deu Seu Filho Unigênito para que todo aquele que nEle crer não pereça, mas tenha a vida eterna?" E que Ele ordenou aos cristãos que sirvam ao mundo incrédulo como testemunhas do Seu amor constante para com ele, mesmo que permaneça na incredulidade, até o dia do juízo final?

Quando criança, há quarenta anos, fui ensinado que o crente não fuma, não bebe não dança, não... Fui ensinado, nas entrelinhas, que santidade era não; e que minhas atitudes definiriam se era ou não salvo (ou seja, um cristão).

Dura realidade quando as Escrituras demonstram que a única diferença entre o cristão e o não-cristão é que o primeiro é um pecador perdoado que constantemente peca e pede perdão, não existindo pecado que não possa cometer. O não-cristão é um pecador que não se considera como tal, porque suas referências não incluem este conceito; tão pouco o Deus da Bíblia existe. Nada mais os separa, nada.

Dura realidade quando a experiência mostra cristãos doentemente neuróticos, presos a culpas imaginárias, com o comportamento prisioneiro do recalque, onde as evidências de santificação pessoal são pouco evidentes e o sofrimento por ter prazer na lei de Deus e não praticá-la muito óbvio. Repito que a única diferença entre este sofredor e o não-cristão é que aquele é perdoado pelo sacrifício da cruz e este ainda não, até a confissão de que Jesus é Senhor de sua vida.

segunda-feira, 21 de março de 2011

O rei está nu

Bráulia Ribeiro

O Ocidente está adoecido pelo ódio a si mesmo. Olhamos para nossa história, para o produto de nosso progresso, para nossa sociedade, e não gostamos do que vemos. O rei está nu. A utopia política do início do século passado se tornou uma experiência vergonhosa de domínio de poucos sobre as massas. As mentiras sobre superioridade racial em que acreditamos se transformaram em sangrentos genocídios. O capitalismo que iria permitir ao proletariado qualidade de vida se tornou um monstro de produzir riquezas, que nos engole sem piedade. As propostas religiosas se emaranharam promiscuamente a qualquer ideia que pagasse mais. Enfim, demos com os burros n’água vez após vez. Desiludimo-nos e nos odiamos. Precisamos de uma nova gênese.

Por causa disso, olhamos para os índios isolados com uma esperança “rousseauniana”. Serão eles nosso renascimento? No Google você encontra nas referências sobre a tribo Zoé, que vive entre o Pará e o Amazonas, esse tom religioso. Pesquisadores e cineastas franceses veem neles a esperança de um renascimento para a humanidade. Porém, como todas as outras, os Zoé são apenas uma tribo brasileira pequena tentando sobreviver. Foram contatados pela Missão Novas Tribos do Brasil na década de 80. Foram conduzidos com cuidado do isolamento a um estágio intermediário, em que recebiam ajuda da Missão para as necessidades básicas.

O isolamento por si só não garante a sobrevivência de nenhuma tribo, ao contrário do que dizem os sertanistas. Massacres de tribos isoladas inteiras, causados por contaminações de doenças, por seringueiros, madeireiros ou outros predadores amazônicos, ou até por guerras entre tribos ou clãs, acontecem com frequência.

Voltando à história dos Zoé, a Missão acabou sendo expulsa da área. Os Zoé eram bonitos e puros demais para ficarem em contato com uma missão. Afinal, ela institucionaliza tudo o que mais odiamos no Ocidente: sua religião. A religião cristã continua pregando o que mais queremos esquecer, continua representando no mundo acadêmico moderno a cristalização dos valores que nos tornaram (entenda aqui a ironia) capazes de criticar aquilo que somos. Fora com eles.

A missão deu lugar aos “humanistas” da Funai. Verbas internacionais vieram e o projeto Zoé se tornou modelo. Um hotel de selva foi construído em frente à aldeia. Tudo o que dava acesso a outro mundo foi retirado. Eles passaram a viver numa ilha de selva virgem vigiada apenas por observadores bem-acomodados. Os vídeos na internet que retratam a tribo são lindos, feitos com equipamento de alta qualidade só possível devido ao conforto e à tecnologia oferecidos pelo hotel/observatório. A tribo “virgem” agora se torna entretenimento de turistas de alta classe, uma espécie de zoológico humano servindo ao voyerismo de antropólogos e cineastas estrangeiros.

Suprema ironia. Os selvagens são mantidos escravos por causa de sua pureza. Vistos de longe, os Zoé são “na’vi” azuis andando por Pandora com rabos longos, etéreos, perfeitos. De perto, são um povo escravo de um idealismo que não inventaram. Presos a um paleolítico circunstancial, são impedidos de mudar. Não são humanos, não são cidadãos, não são nem índios brasileiros. São uma metáfora internacionalizada do ódio de nossa cultura por si mesma.

O problema é que, não sabendo disso, eles fugiram de seu paraíso terrestre. Em outubro de 2010, os Zoé fugiram para pedir ajuda aos castanheiros locais e ao mundo. Num vídeo tosco filmado por um dono de castanhal, os índios se expressam em português fluente: “A gente quer coisa. A gente quer panela, faca, anzol. A gente quer ter o que os Tirió tem. Funai não dá nada pra nós não, mas a gente quer”.
Tradução? Os Zoé estão dizendo: “A gente quer parar de ser uma coisa, a gente quer ser gente, vocês vão permitir?”.

Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, no Havaí, com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical.
braulia.ribeiro@uol.com.br

fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/328/o-rei-esta-nu-1

quinta-feira, 17 de março de 2011

O valor da vida humana

Eduardo Ribeiro Mundim

Atribuir valor à vida humana é algo extremamente corriqueiro e, simultaneamente, extremamente difícil. E esta valoração ocorre ditada pelo fato de vivermos em sociedade, co-dependentes mútuos, permeados pela nossa ambiguidade nata (que na sua forma atual está enraizada em nossa natureza aversa a Deus). As nossas leis precisam regulamentar o fato de que somos uma ameaça uns aos outros, apesar da nossa interdependência (cada vez menos visível aos olhos), seja diretamente através de uma ação planejada ou não, seja indiretamente através de algum incidente aleatório. Na esfera cível, a vida é valorada de modo a se estabelecer indenizações no caso de morte ou lesão que cause incapacidade; na criminal, para se estabelecer a punição por um crime perpetrado. 

As notícias veiculadas recentemente nos jornais de Belo Horizonte me fazem pensar sobre como nossa sociedade dá um valor bem baixo à vida, no sentido da existência real e continuada até o seu fim natural, das pessoas:
- um motorista alcoolizado mata um casal que se dirigia ao aeroporto para aproveitar recente aposentadoria. Era por volta das 05:30 da manhã, em uma rodovia sinuosa e reconhecidamente perigosa.
- um assaltante toma uma mulher como refém durante um assalto a um supermercado em uma cidade. Enquanto uma negociação, infrutífera, era tentada, um policial consegue atingi-lo com um tiro, e o mata. Ele ameaçava a mulher com uma faca.
- um jovem de 24 anos é assassinado na principal avenida da capital mineira, às 18 horas da tarde. Pela manhã, havia iniciado o período de regime semiaberto de sua condenação pela participação em duas mortes em uma favela da cidade, ocorrida há poucos anos.

Qual o valor que o alcoolizado motorista dá à existência do seu próximo quando decide dirigir sem estar em condições, em alta velocidade, em uma rodovia tida e havida como das mais perigosas da metrópole mineira? Pelas nossas leis, jamais será condenado, ou pelo menos, julgado, por homicídio doloso...

Qual o valor que nossos policias dão à existência dos criminosos? Matar se torna uma rotina, tipo "acidente de trabalho"? É um caminho mais fácil que uma negociação bem planejada, trabalhada, de modo a evitar um crime e poupar duas vidas? A solução para a criminalidade, principalmente aquela exercida pelos mais pobres, é a execução dos mesmos? Fosse o desesperado criminoso um "doutor" a história teria sido a mesma?

Qual o valor que nossos legisladores dão à existência quando criam leis e códigos que permitem o retorno à sociedade em tempo curto de assassinos confessos? O tempo atrás das grades não ressuscita os mortos. Mas ele não revela, mesmo que indiretamente, quão barata é a vida da população pobre (já que é a maioria dos brasileiros não está nas classes A e B, a C, D e E é que são as mais frequentes vítimas e atores dos homicídios). E eu pensava que somente os assassinos de aluguel usassem tabelas de preços...

Após muitos anos, talvez décadas, reencontrei o texto de Ex 21.14. Nunca havia parado para pensar no peso deste mandamento, ressaltado pela tradução da Nova Versão Internacional: para o assassinato premeditado, não haveria cidade de refúgio, lugar santo, ou desculpa que lhe abrandasse a pena. Somente a morte do assassino evidenciaria a importância da vida que fora tirada por razões absolutamente humanas, através de uma atitude planejada. Nem mesmo o altar o protegeria, porque havia eliminado um ser humano.

Não sou defensor da pena de morte - ainda que, frequentemente, ouça sobre crimes que bem a mereceriam. Talvez não seja defensor com medo da execução de um inocente, da nossa incapacidade de prover recursos de defesa iguais a todos os brasileiros, da própria crueldade de matar planejadamente alguém. Mas que o texto sagrado se posiciona de modo muito diferente que nós frente a vida humana, não há dúvida.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Qualidade de morte

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS

FOLHA DE SÃO PAULO

TENDÊNCIAS/DEBATES

09 de março de 2011

Ainda que a pobreza torne a vida difícil, é ingênuo pensar que a riqueza, por si só, seja capaz de resolver os enigmas que a existência nos impõe
Até meados do século 20, dava quase na mesma ser pobre ou rico na hora de morrer: iam-se todos de modo semelhante, pois as doenças ignoravam privilégios. Diante da tuberculose, por exemplo, não havia ouro que comprasse sofrimento menor ou alguma sobrevida: morriam afogados, na derradeira hemoptise, tanto os operários de Manchester estudados por Engels como os burgueses dos quais nos fala Thomas Mann em "A Montanha Mágica".

Com o avanço da ciência, porém, tudo parece ter mudado. Hoje há muitos que acreditam que o dinheiro, além de comprar uma vida mais "rica", também garante a qualidade da morte: por meio dele, os abastados despedem-se deste mundo no ambiente glamoroso de "hospitais-boutique", sob os cuidados dos "médicos da moda". Mas será que as coisas são tão simples?

Por um lado, ainda que a pobreza torne a vida difícil, é ingênuo pensar que a riqueza, por si só, seja capaz de resolver os enigmas que a existência nos impõe, magnatas ou não. E o remorso não raro corrói a paga que os "eleitos" recebem por sua ganância. Se isso não é tão claro, é porque a maioria das pessoas desconhece a intimidade dos poderosos, sempre dilacerada por conflitos: os psicoterapeutas e os próprios poderosos sabem bem do que falo.
Por outro lado, o acesso à medicina "de ponta" nem sempre é garantia de boa recuperação ou de morte tranquila, além de dar origem a paradoxos.

Um exemplo é a angústia que destrói a saúde dos que sofrem, no presente, com as moléstias que -imaginam- terão no futuro. Martirizam-se, assim, por não terem um plano de saúde "top", o qual já se tornou, ao lado do carro "zero", o atual sonho de consumo. Para essa angústia contribuem, crucialmente, a propaganda dos centros diagnósticos -que não param de crescer- e a ingenuidade de médicos que confundem prevenção com obsessão por doenças.

Outro exemplo é o caso dos doentes terminais mantidos vivos mesmo à custa de muita dor, bem como a insensatez de uma legislação que proíbe a eutanásia para as pessoas que dela necessitam, condenando-as, cruelmente, ao papel de axiomas de grotesca tese: a de que a vida deve ser sempre preservada, "coûte que coûte"...

Mas, já que a morte segue inevitável -muito embora a publicidade procure nos convencer de que somos imortais-, não seria melhor que encarássemos a vida de outro modo, empregando-a não só para "conquistar um lugar ao sol" mas também para aceitar um "cantinho" nas sombras para onde iremos todos? Não seria importante que aprendêssemos a morrer, buscando, se preciso, nas ideias de outras épocas a espiritualidade que tanta falta nos faz?

Infelizmente, não é o que vemos.

Ao ideal da morte honrosa dos gregos, da morte-libertação dos gnósticos, da boa morte dos cristãos medievais, da morte heroica dos românticos, nós contrapomos a "morte segura" no leito high-tech de um hospital chique, transfixados por cateteres e "plugados" na TV. Uma morte que é o símbolo perfeito da doença que acomete a nossa civilização e que, decerto, vai matá-la: o conformismo hedonista.


CLÁUDIO L. N. GUIMARÃES DOS SANTOS, 50, escritor, artista plástico, médico e diplomata, é mestre em artes pela ECA-USP e doutor em linguística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França). Blog: http://perplexidadesereflexoes.blogspot.com/.

domingo, 13 de março de 2011

Saúde, ética e espiritualidade


Saúde é bem-estar, não é mercadoria.

João Inácio Wenzel* Cuiabá, segunda-feira, 14 de março de 2011


Contam os anais da história que no antigo Oriente havia médicos contratados para cuidar da saúde da família. E quando alguém da família ficava doente, o médico deixava de receber salário, porque não estava fazendo bem o seu trabalho.

Quão distante ficamos desta visão holística da saúde em nossos tempos modernos! A saúde não é mais vista em sua integridade e integralidade. Ela é vista como ausência de doenças. A ênfase não está mais no cuidado da vida, das pessoas e do que nos envolve, mas em tratar doenças. Saúde virou mercadoria que se garante com planos de saúde. Na impossibilidade de pagar estes, se recorre ao SUS.

A saúde está compartimentada em mil e uma especialidades. Para cada doença um/a especialista. Cada qual sabe muito bem cuidar de determinadas doenças ou órgãos. Mas será possível tratar uma doença sem encarar as suas causas e a complexidade do jogo da vida e tudo aquilo que a envolve?

Felizmente os impulsos pela vida e os apelos em defesa e promoção da vida vêm resistindo e ganhando terreno a cada dia, quer seja pela recuperação do conhecimento de práticas de medicina popular de domínio comum, como a fitoterapia e a geoterapia, seja a valorização de novas práticas populares como a utilização da homeopatia e a introdução de ciências orientais, como a acupuntura.

Tal resistência também acontece no embate político, na compreensão do conceito de saúde e com a contribuição da bioética. A Organização Mundial da Saúde assume a seguinte conceituação: “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”.

A diferença é enorme. Há uma preocupação não simplesmente com a doença física, mas também com as suas causas e o seu contexto social. Mas há um limite: O que se entende mesmo por “bem estar”? Poder aquisitivo, qualidade de vida, frequentar o shopping? Pode-se estar bem quando as pessoas a nossa volta estão mal? Fadigadas, estressadas, sempre correndo atrás de coisas e mais coisas, com medo de ser assaltada/o, violentada/o?

A concepção dialética da saúde e doença do médico panamenho José Renan Esquivel supera a visão parcelada e fragmentada do corpo humano, como vem apresentado no documento base da Associação Brasileira de Homeopatia Popular - ABHP: “Partimos do fato que a célula mais sã é a célula com capacidade de defender-se dos vírus, tóxicos, bactérias e contra tudo que a agride, da mesma forma, o homem saudável deve organizar-se contra tudo o que o agride, vírus, bactérias, tóxicos, e até mesmo contra o próprio homem...”

“Para nós, o conceito de saúde atinge desde a menor célula do corpo até a grande organização da sociedade. Ora, se saúde é o ‘resultado das condições de organização de uma determinada sociedade’, na sociedade enferma em que vivemos - saúde não é bem-estar, saúde é luta.”

“Quando uma célula é incapaz de dar e receber, e de estabelecer contínuas trocas com o meio no qual vive, ela se deteriora. Se uma pessoa humana se fecha no seu mundo, sem distribuir, sem intercambiar, sem se relacionar, estará a caminho da loucura e da autodestruição...”

Ao lado deste conceito que relaciona a saúde da pessoa com a saúde da sociedade e do planeta, ganha força outro paradigma que vem das tradições milenares dos povos indígenas da América Latina: o princípio do bem-viver e do viver bem, incluídos nas Constituições do Equador e da Bolívia em 2008 e 2009, e que pode ser traduzido como “vida em plenitude”.

“Quando se fala de vida em plenitude, está se fazendo uma referência a viver em harmonia entre o material e o espiritual, consigo mesmo e com a Mãe Terra. Em última instância, saber conviver com tudo o que nos rodeia, com a comunidade”, afirma Katu Arkonada (Revista IHU Online 340).

Neste conceito, o que importa não é ter a melhor casa, carro do ano, acesso aos últimos lançamentos, conforto, “qualidade de vida” como ter mais coisas, mas a capacidade de criar relações humanas de qualidade, geradoras de humanidades. Portanto, não dá para falar em saúde, em cuidar da própria saúde sem cuidar da saúde dos outros e da saúde do planeta.

Na Bíblia hebraica a palavra que mais se aproxima deste paradigma de bem-viver é a palavra shalom, geralmente traduzida por paz. Perguntar alguém como vai - como está o teu shalom – significa perguntar algo que tem a ver com a sua condição existencial, abrangente e integral, que inclui a saúde.

Jesus assumiu este shalom como missão: “Eu vim para que todos tenham vida plena” (Jo 10,10). As pessoas percebiam nele uma força dinâmica (dynamis) que cura e liberta. Uma força curadora que pode ser ativada pela fé. Ele mesmo dizia à pessoa restabelecida: “Tua fé te salvou”.

São pessoas populares que se põem em movimento para buscar o toque curador, por vezes intermediadas por pessoas da comunidade. Justamente as pessoas excluídas pelo convívio salutar da comunidade, com os leprosos e as mulheres com fluxos de sangue, eram as que recebiam mais cuidados e com quem expressava mais afeto e misericórdia.

Dizia-lhes, como traduz muito bem André Churaquy: “Em marcha os pobres em espírito..., em marcha os que choram...” Para Jesus, elas não são “pacientes” objetos de cura, e sim sujeitas do processo que interagem com o terapeuta. Houve um caso em que uma mulher conseguiu tocar suas vestes, sem ninguém notar, e ela sentiu-se curada.

Jesus também sentiu uma força dinâmica sair dele e quis saber quem a tocou. Quando ela se apresentou e contou tudo o que aconteceu em sua vida, Jesus a chamou de filha: “minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz e estejas curada desse teu mal” (Mc 5,34). Jesus não queria apenas sua cura física, mas quis também a sua cura sociocultural. Quis devolvê-la à comunidade como exemplo de fé e de lutadora de dignidade.

O que Jesus fez não foi declinar um código moral, mas estabelecer novas relações com as pessoas que as restabeleceram por inteiro, beneficiando-as em sua saúde corporal, psíquica, social, cultural, política e religiosa. É assim que vive e se expressa a justiça divina ou, como diríamos hoje, sua ética terapêutica.

Hoje esta reflexão é avivada pela discussão dos princípios éticos, especialmente a bioética, como nos mostra José Antônio Ferreira num instigante artigo sobre o diálogo com as ciências da saúde (Bíblia e Saúde 1, 2009). Há certo consenso entre princípios como a beneficência, a autonomia e a justiça. O primeiro vem do pai da medicina ocidental, Hipócrates de Cós (460-377 aC), que disse que a finalidade da medicina é “aliviar o sofrimento do doente, diminuir a violência das suas doenças...”.

Esse princípio milenar da beneficência é complementado pelo segundo, da autonomia. O médico não é mais o único sujeito que faz o diagnóstico e determina sozinho o tipo de tratamento que o “paciente” – objeto - deve sofrer, mas ambos, médico e pessoa adoecida são sujeitos autônomos que estabelecem uma relação de parceria e amadurecem juntos as decisões e as escolhas cabíveis, respeitando os direitos de cada um.

O terceiro princípio que ajuda a humanizar as relações é o da justiça. Saúde é para todos e não somente para quem tem condições de pagar planos de saúde.
Há, porém, um quarto princípio particularmente significativo para nós latino-americanos: o princípio da alteridade, o respeito à diversidade de gênero, de etnia, cor, sexualidade, de ciclista e pedestre...

Pensar e agir a partir da vida dos pobres e excluídos e da situação de violência social que as pessoas estão submetidas é a única forma de não excluir ninguém. Princípio que também é estendido para o respeito à diversidade dos seres vivos e o respeito ao planeta Terra. Todas as espécies têm direito à vida.

Por último, um princípio que é caro aos cristãos, a sacralidade da vida humana, que vem da concepção de sermos “criados à imagem e semelhança de Deus”, assumidos pelo “Verbo que se faz carne e habitou no meio de nós”. Não há mais espaço para o sagrado separado da vida. No momento em que Jesus entregou o seu Espírito, “o véu do templo” que separava o santo dos santos, “se rasgou do alto a baixo”. Agora sagrada é a vida.

Há um fato narrado por Marcos que representa bem como Jesus aplicou este princípio ético na sua comunidade em Cafarnaum (Mc 3,1-6). Estava em meio à assembleia um homem da mão paralisada. Jesus o chamou para o meio, justamente onde se costumava ler e explicar a Sagrada Escritura. Depois de fazer a pergunta retórica se é permitido no sábado salvar a vida ou matar, pediu que ele estendesse a mão. Desta forma, Jesus colocou a Bíblia e o doente no mesmo patamar e sacralizou a vida humana.

Uma imagem que vem do hinduísmo, trazida a nós pelo jesuíta indiano Antony de Mello, pode nos ajudar a compreender a sacralidade da vida e de toda a criação. A terra é sagrada (Ex 3,5), a água é a sagrada (Jo 4,14), o ar é sagrado (1 Rs 19,12), o fogo é sagrado (At 2, 3).

Diz a tradição hindu que “Deus dança a criação. Ele é o bailarino e a criação a dança. A dança é diferente do bailarino, e, no entanto, não pode viver sem ele. No momento que o dançarino pára, a dança deixa de existir...” Não é Deus que precisa de nós, somos nós que precisamos Dele para seguir sendo a dança que cuida da vida, das pessoas, de si mesmo, da mãe terra...

Bibliografia:
Associação Brasileira de Homepatia Popular. Homeopatia Popular e Solidariedade Planetária; uma nova Saúde é Possível - Documento Base. Cuiabá: ABHP, 2007.
PASSOS, Luiz Augusto (org). O calor que nos une cura nossos corações. São Leopoldo: CEBI, 2010. (Série Palavra na Vida 274).
UETI, Paulo (org.). A vida é o que interessa. Bíblia, Saúde e outros ingredientes. São Leopoldo: CEBI, 2009. (Saúde e Bíblia 1).
UETI, Paulo (Org.). A terapêutica de Jesus. Corpo, poder e fé. São Leopoldo: CEBI, 2010. (Saúde e Bíblia 2).
 
* Padre jesuíta, Mestre em Teologia (FAJE/BH), coordenador do Centro Burnier Fé e Justiça, e professor no Studium Eclesiástico Dom Aquino Correia (SEDAC).

quinta-feira, 3 de março de 2011

Imposição de mãos sobre bispos marca comunhão plena entre moravos e anglicanos

Nova Iorque, quinta-feira, 3 de março de 2011 (ALC) - Moravos e episcopais anglicanos dos Estados Unidos formalizaram relação plena de comunhão, reconhecendo mutuamente doutrinas essenciais, como a do Batismo e da Eucaristia, a aceitação mútua do clero e a realização de trabalho conjunto de evangelismo e missão. As duas denominações continuam autônomas, mas interdependentes.

A relação plena entre as duas denominações foi oficializada em culto celebrado na Igreja Morava Central de Bethlehem, no domingo, 10 de fevereiro, informa o Serviço de Notícias Episcopal. Na celebração, bispos moravos impuseram as mãos sobre os colegas episcopais, ajoelhados em sua frente, e vice-versa. O ato simbolizou o recíproco reconhecimento e reconciliação dos ministros ordenados das duas denominações.

A primaz da Igreja Episcopal Anglicana dos Estados Unidos, Katharine Jefferts Schori, e os presidentes da Conferência de Anciãos Provinciais Moravos, pastora Elizabeth D. Miller, da Província do Norte de sua denominação, e o pastor David Guthrie, da Província do Sul, oficiaram o culto.

O acordo da plena comunhão reconhece mutuamente a validade das ordenações nas duas igrejas, um ponto controvertido no processo. A Igreja Morava não abriu o ministério ordenado a sacerdotes homossexuais, o que é possível na Igreja Episcopal dos Estados Unidos.

A Unitas Fratrum, ou Unidade dos Irmãos, que congrega as igrejas moravas do planeta, posicionou-se a respeito, alegando que a questão posta não é um assunto doutrinal, abrindo caminho, assim, ao acordo de plena comunhão.

"Sabemos que a solidez dessa relação de plena comunhão não depende de documentos nem das resoluções sinodais, mas de descobrir continuamente para o que Deus nos chama como seu povo, e de permitir que o espírito de unidade de Deus atue em nós", disse o bispo episcopal Steven Miller, da Diocese de Milwaukee e co-presidente da Comissão de Diálogo entre as duas denominações.

O diálogo entre as duas igrejas nos Estados Unidos começou em 1997, e desde 2003 acordaram a celebração conjunta da Eucaristia. A Igreja Morava conta com mais de 900 mil membros, em 19 países. Nos Estados Unidos ela é uma denominação pequena, concentrada nos Estados da Pensilvania, Carolina do Norte e Wisconsin.

Esse é o quinto acordo de plena comunhão da Igreja Episcopal Anglicana dos Estados Unidos. Os outros quatro acordos envolvem as igrejas Evangélica Luterana na América, da União de Utrecht, Independente das Filipinas e a Siria Malabar, da Índia.


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