domingo, 23 de maio de 2010

Sobre a morte e o morrer


Eduardo Ribeiro Mundim

Falar sobre a morte não é fácil. O tema logo provoca desconforto, habitualmente percebido por piadas mais ou menos sem graça, e risos forçados. Os jovens não querem nela falar, porque lhes parece irreal, longe, afeta apenas aos idosos e doentes. Os idosos e doentes frequentemente desejam comentá-la, prepararem-se para ela, para profunda consternação dos familiares e equipes de saúde. Aqueles a negam, na ilusão onipotente da juventude; estes a temem, na certeza de sua proximidade crescente à medida que os dias se passam.

Ela é um evento multifacetado. Várias faces, nenhuma resumindo o todo, e o todo não revelando os detalhes. Elas podem ser agrupadas por similaridade: a forma, o momento, as razões, as pessoas, as repercussões, o luto... Fome, doença, violência, ação estatal, decadência progressiva, etc.

É um evento profundamente humano, inescapável e onipresente.

Um conto lido recentemente marcou meu imaginário a respeito do tema. Provavelmente, ele apenas organizou pensamentos e leituras até então desconexos. Trata-se do “conto dos três irmãos”, de Joane K Rowlingi. Resumidamente: três irmãos bruxos iniciaram uma jornada, onde, a certo momento, encontraram um caudaloso rio. Não havia possibilidade de atravessá-lo à pé ou à nado, nem embarcação disponível. Juntos, conjuraram uma ponte, imediatamente concretizada. Após percorrerem metade da sua extensão, o caminho encontrava-se bloqueado por uma figura negra e encapuzada. Furiosa por não ter conseguido as três vidas (que era o evento habitual para os viajantes naquele ponto da estrada), a Morte se apresentou a eles, dando-lhes o direito de demandarem, individualmente, um desejo. O mais velho, orgulhoso, e o mais forte, exigiu uma varinha mágica imbatível, impossível de ser derrotada, digna daquele que a vencera. Do galho de uma árvore próxima, a Morte tirou um ramo, fabricando dele tal varinha, deixando-o passar. O segundo irmão, arrogante, desejando ampliar a humilhação da inimiga, demandou a capacidade de tornar à vida os mortos. Ela, pegando um pedregulho das margens do rio, infundiu-lhe tal poder, e a entregou. O mais moço a tudo observava, e desconfiado do drama que se desenrolava, pediu-lhe apenas que pudesse dali sair, sem ser achado por ela. Muito a contragosto, a Morte lhe entregou a própria capa. Os irmãos seguiram viajem, e se separaram no devido tempo. O mais velho tinha contas a ajustar com um conhecido. Procurou-o e o venceu em um duelo de mágicos, matando-o. Dirigiu-se a um bar na cidade, onde, em meio aos muitos copos de álcool, vangloriou-se do feito e de sua varinha. Pela madrugada, um dos ouvintes invadiu seu quarto, onde dormia profundamente, roubando-lhe a preciosa varinha. Apenas por precaução, degolou-o. E a Morte recebeu o primeiro irmão. O segundo, sozinho em sua residência, viu, através da pedra, uma moça que sonhara desposar anos antes. Resgatou-a do mundo dos mortos, trazendo-a para junto de si. Contudo, ela não se adaptava ao mundo dos vivos, e preferiu novamente morrer. Desesperado, e como única maneira de reunir-se verdadeiramente a ela, ele se matou. E a Morte recebeu o segundo irmão. Os anos se passaram, e por mais que procurasse, ela não encontrava o caçula. Já muito velho, família constituída até a terceira geração, tendo realizado o que fora possível, o mais novo retirou a capa, passando-a para o filho, e aguardou a Morte. Ela foi recebida como uma velha amiga, e, como amigos e iguais, ele partiu com ela.

Neste conto temos três mortes, três faces. O primeiro, seguindo o ditado popular, morreu como viveu, pela violência. O segundo, incapaz de fazer frente à impossibilidade do seu desejo, suicida-se. O terceiro, sabedor de que o encontro somente poderia ser adiado, viveu a vida com plenitude, e soube encontrar a morte no momento em que ela se encaixava na vida.

O propósito aqui, neste encontro, é refletir sobre a morte e a fé cristã, na sua vertente evangélica. A morte em relação a doença, e a vida como um preparo para a mesma. Estas são as faces que delimitam a presente reflexão.

E a primeira manifestação que vem à mente é o brado do apóstolo Paulo: “onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (I Co 15.55). A morte, torturadora por constituição, é uma inimiga a ser vencida. Mas será esta a única visão possível? Não será a morte nas Escrituras também multifacetada? Será ela sempre a antítese da vida?

A morte carrega o absurdo. O absurdo da não mais existência; o absurdo de chamar o João, falecido há pouco, de corpo; o absurdo de, vendo-lhe a face, não ver-lhe o espírito; o absurdo da cisão, da ruptura, da desagregação violenta de uma unidade bio-psico-espírito-social que se julgava indissociável. O paradoxo de continuar a ser sem um corpo físico, em outra dimensão, separado, na não existência para os que ficam.

A vida é valorizada do início ao fim das Escrituras. Numerosas são as referências bíblicas para desfrutá-la e todo um livro foi escrito para celebrar o amor entre um homem e uma mulher. Em momento algum ordena-se ou estimula-se o suicídio, e uma vida longa é entendida como abençoada. Contudo, mesmo como dom de Deus e dEle procedente, não é valor supremoii. Disto Elas também dão testemunho. O assassinato premeditado era punido, na Antiga Dispensação, com a pena capital, e não havia lugar na face da terra que tal assassino pudesse se refugiar – nem mesmo no altar. Se tal ocorresse, a ordem divina é que ele deveria ser arrastado de lá e executado (Ex 21.14). E mesmo uma vida inocente não valia o preço da apostasia. Sadraque, Mesaque e Abede-nego se recusaram a adorar a estátua de ouro de Nabuconodosor, sabedores da penalidade e do modo de execução (Dn 3), em uma época que a noção de ressurreição não existiaiii. Até então, o destino dos mortos era o “sheol”, o mundo subterrâneo onde não há lembrança de Deus nem o Seu culto, mas uma radical separação dEle – portanto, uma existência que não poderia ser chamada de “vida”iv. Sem nenhuma perspectiva de recompensa posterior, em outra vida, ou naquela, deixam claro ao rei, no julgamento, “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste.” (Dn 3.16-17)

Portanto, temos estes dois eixos: a vida como um dom precioso que não pode ser desperdiçado, e o seu não valor absoluto – há coisas mais valiosas.

As Escrituras são claras em aceitar como fato inquestionável a morte: ela vai ocorrer. Por razões que não nos dizem respeito, apenas dois seres humanos não a sofreram, Enoque e Elias. E Deus mesmo sabe o que ela significa, pois escolheu vestir toda a nossa humanidade em Jesus, sofrendo não só a fome, como a espada e a morte em uma versão cruel e sádica. Ainda que seja um terreno pouco firme usar a atitude dEle diante da morte como parâmetro para nós, é digno de nota o Seu apelo: “se possível, passa de mim este cálice” e “que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isto vim a esta hora” (Jo 12:27). Ainda que seja dito comum de que a morte entrou no mundo através do pecado adâmico, diversos comentaristas apontam que não havia promessa de imortalidade no Éden, e que a morte aconteceria após um longo período de vida frutífera e felizv.

Dentro dos limites propostos, temos a morte como consequência à doença. E nos dias atuais, uma questão é saber quando alguém morreu. Não há dúvida quando o corpo está rompido por um acidente, ou em estado de decomposição. Mas quando a morte (a ruptura bio-psico-espírito-social) chega? Algumas respostas a esta questão são avaliadas pela implicação imediata no extremo oposto: quando a vida começa? Se é possível perscrutar as Escrituras em busca da resposta à segunda questãovi, elas não nos auxiliam na primeira; dependemos exclusivamente de outras fontes para respondê-la.

O avanço tecnológico permite que se mantenha um coração batendo em um corpo incapaz de respirar por si mesmo e sem nenhum contato consciente (e talvez inconsciente) com o mundo exterior (e interior); ou um corpo vivo, que respira espontaneamente, mas absolutamente inconsciente. Paradoxos ocorremvii: “mãe em morte cerebral dá à luz e morre” (é possível um cadáver dar à luz?). Progressos médicos históricos acontecem em um vazio éticoviii: o primeiro transplante cardíaco foi realizado quando não existia o critério de morte encefálicaix. E esta não é uma unanimidade entre os técnicos, a ponto da Federação Evangélica Francesa chamar a atenção para o fato de que “morte encefálica não pode ser considerada por algumas pessoas ou culturas como a verdadeira morte. É um evento mais do que uma realidade.x” E adeptos de teorias conspiratórias vêm nele apenas um mecanismo de lucro no “negócio de transplantes”xi.

Portanto, questões prementes carecem de aprofundamento em todas as áreas do conhecimento (e não somente na de saúde) e aguardam a contribuição cristã evangélica equilibrada, filosófica e abrangente. Por exemploxii:
  1. Quando morre um ser humano?
  2. Quando é lícito deixar de intentar manter vivo um ser humano?
  3. Quando é lícito extrair órgãos de um ser humano com o fim de transplantá-lo a outro?

Na tradição ocidental, a partir da queda do Império Romano, o comportamento em relação àquele que está para morrer, segundo o conhecimento médico do momento, pode ser, genericamente, dividido em quatro fasesxiii:
  1. a da Idade Média, onde prevaleciam os cuidados espirituais, com pouca efetividade sobre os sintomas orgânicos, incluindo a dor;
  2. a do modelo biomédico cartesiano do século XVII, onde a tendência era o abandono por não haver conhecimento suficiente para enfrentar as enfermidades terminais de então;
  3. a do progresso biotecnológico da segunda metade do século XX, onde, após o acúmulo progressivo do conhecimento biológico associado à capacidade de conceber e realizar, resultou na obstinação terapêutica e isolamento daquele que está a morrer;
  4. a da época dos cuidados paliativos (de inspiração cristãxiv), a partir da década de 60, com a busca de se implementar uma série de cuidados planejados buscando atender à todas as necessidades da pessoa “em fase final” (incluindo as biológicas, psicológicas e espirituais) buscando uma melhor qualidade de vida e de morte.

Sendo a morte evento certo, apenas adiável por um período de tempo, não seria arrogância, como aquela do Éden quando o limite imposto foi recusado, esforços médicos heroicos e desesperados, efetuados em nome de uma mínima chance de vida futura e com qualidade questionável? Não seria arrogância a expectativa de um milagre final, evento raro estatisticamente falando? O não deixar morrer interessa a quem: à família, com dívidas por saldar? Ao moribundo, em nome de uma possível “aceitação do Evangelho” nos momentos finais de vida? O que é terapêutico (útil para o paciente)? O que é iatrogênico (causador de mal desnecessário)? O que é útil e o que é fútil?

Qual o impacto que a realidade da ressurreição traz sobre o nosso modo de ver a morte e para ela se preparar? Estamos prontos para vê-la como uma passagem para uma realidade melhor, ainda que desconhecida? A confiança em Nosso Pai Amoroso, definido como sendo Amor (I Jo 4.8), é suficientemente poderosa para que enfrentemos com confiança o desconhecido, terra donde nenhum homem jamais voltou – apenas Jesus? Desejamos ardentemente o corpo espiritual, sucessor deste carnal, cujo exemplo único é aquele testemunhado pelos apóstolos e os seguidores mais próximos?

O momento da morte é cheio de fantasmas: a possibilidade da dor, do isolamento, da falta de significado. Não serão eles que justificam a eutanásia ativa (o fazer morrer, ao contrário da passiva, o deixar morrer), buscando preservar a dignidade da pessoa? Como sustentação deste ponto, há o exemplo do Lar Nossa Senhora da Conceição, dedicado aos cuidados paliativos, onde não houve solicitação de eutanásia ou de interrupção de tratamentoxv, por 14 anos. Cuidados paliativos são definidos como um conjunto de ações multiprofissionais orquestradas que melhoram a qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares através da identificação e alívio do sofrimento em suas diferentes dimensões (física, mental, social e espiritual), tratando enfermo e família como uma unidade de tratamento, privilegiando as vivências e valores subjetivosxvi. A equipe deve revestir-se de compaixão, “o não ter medo do sofrimento outro e assumi-lo dentro de si sem deixar-se nele naufragar”. E para isto é necessário que quem cuida “não tenha medo de frequentar seus próprios momentos de luto, de ruptura e de crise”, de tal forma que seja confiante na impermanência desta atual forma de vidaxvii.

A “boa morte” talvez possa ser definida como aquela que ocorre em circunstâncias ondexviii:
  1. viveu-se o máximo do potencial biológico, emocional, espiritual, vocacional e social;
  2. manteve-se alerta e independente até onde foi possível;
  3. o conhecimento sobre suas condições estava disponível para ser apropriado ou não, conforme o desejo da pessoa;
  4. o acompanhamento foi realizado por profissionais competentes, seguros e sensíveis;
  5. a pessoa foi o juiz final de tudo aquilo que lhe dizia respeito;
  6. foi possibilitado o uso criativo do tempo;
  7. as necessidades e temores dos familiares foram também tratados profissionalmente com segurança, competência e sensibilidade, antes, durante e após o óbito;
  8. houve conforto, dignidade e paz.

Desta forma, morrer continua sendo um ato solitário, assim como o nascer, mas somente naquele ponto em que estas vivências não podem ser vividas por outro, apenas por aquele que a experimenta.

iRowling JK Os contos de Beedle, o bardo Editora Rocco, RJ, Rio de Janeiro, 2008
iiiBrown C Ressurreição em Colin Brown (ed) O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, vol IV, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, pg 162, 1989
ivDavids PH Habitação dos mortos em Walter A Elwell (ed) Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, vol II, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, pg 559-60, 1990
v
viiValls ALM Repensando a vida e a morte do ponto de vista filosófico, em www.ufrgs.br/bioetica/morteamv.htm
viii Valls ALM op. cit.
ixResolução do Conselho Federal de Medicina 1480/1997, disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1480_1997.htm
x Collange JF, Hentz JG, Lehmkuehler K, Olekhnovitch L, Rive JP, Schweitzer L, Sicard D États généraux de la bioéthique 2009 - Éléments de réflexion proposés par la Commission Église et Société de la FPF, disponível em http://www.protestants.org/index.php?id=31566
xiVer, por exemplo, o blog www.juliosevero.com pesquisando o termo
xiiValls ALM op. cit.
xiiiPeralta A Enfermedad terminal em Juan Carlos Tealdi (dir) Diccionario latinoamericano de bioética, vol III, UNESCO – Red latinoamericano e del Caribe de bioética, Universidad Nacional de Colombia, pg 492-495, 2008
xiv Hennezel M e Leloup JY A Morte de morrer, 5ª ed, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2002
xvi Simone G Cuidados paliativos em Juan Carlos Tealdi (dir) Diccionario latinoamericano de bioética, vol III, UNESCO – Red latinoamericano e del Caribe de bioética, Universidad Nacional de Colombia, pg 87-88, 2008
xvii Hennezel M e Leloup JY op. cit.
xviii Peralta A op. cit.

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