sexta-feira, 29 de outubro de 2010

As paixões eleitorais e os líderes evangélicos

Segundo os especialistas em interpretação de sonhos, há dois recorrentes na psiquê humana de caráter quase universal. Um deles é que estamos, de repente e sem nenhum aviso, nus em público, expostos em nossa intimidade de forma desesperadora. O outro, também muito comum, é que estamos despencando, de algum lugar muito alto, em queda livre.

Há diversas explicações e interpretações para esses sonhos, e não vou me deter sobre isso para não ir além de minhas chinelas. Faço a menção, porque nestas eleições esses pesadelos estão na linha da realidade no meio evangélico. Não é sonho. É verdade. Estamos nus e em queda livre.

Por conta das opções eleitorais de cada um, líderes evangélicos, especialmente no meio pentecostal e neopentecostal, disparam as mais diversas acusações um contra o outro. E as adjetivações que um e outro assacam contra si estão ao nível do esgoto. Não há crítica consistente em relação à opção política que um determinado líder fez ao escolher apoiar este ou aquele candidato. O que se faz é partir para a mais pura adjetivação negativa do caráter pessoal do irmão na fé e adversário político. E tudo isso em público, em vídeos que são lançados na internet para todos verem. Ou seja, não se trata de um impropério lançado num momento de desaviso, mas de detrair a moral alheia de modo planejado e com fins de conferir à ofensa a maior repercussão possível.

É certo que não se vê líderes das igrejas históricas adotando a mesma posição. O problema é que dificilmente o público em geral fará essa distinção. E o vale-tudo verbal da guerra política que estamos assistindo acaba respingando na imagem de toda a igreja.

Como chegamos a esse quadro? Seja qual for a resposta o que parece certo é que a forma de nossa participação política deve ser repensada, já que tudo indica que a origem desse campeonato de baixarias é o apoio político-partidário que foi expressado por líderes evangélicos no período eleitoral.

E um ponto que deve ser considerado é que política partidária constitui divisão por excelência e, em período eleitoral, divisão apaixonada. No momento em que um líder evangélico, com forte representatividade institucional, posa ao lado de um candidato de certo partido, estará suscitando no meio de seu rebanho aquilo que é próprio da política partidária nas eleições: discussões e divisões apaixonadas.

Para evitar esse efeito, a liderança evangélica deve omitir-se do debate político? É óbvio que não. Mesmo porque a igreja tem interesses políticos que são legítimos. Há valores cuja proteção estatal nos interessam e é importante para nós que as opções éticas que o Estado manifesta na edição de sua vontade (fazendo leis ou executando as políticas públicas) estejam de acordo com os princípios que formam nossas convicções. Desejamos que o programa de educação para as escolas públicas siga uma certa diretriz, que a família tenha uma certa conformação, que a liberdade de culto seja garantida, que a compaixão faça parte das ações sociais, que a política de meio ambiente tribute honra à criação etc.

Enfim, queremos participar politicamente porque temos interesses a defender e é impossível defendê-los sem participar do debate político.

Porém, a nossa participação institucional, isto é, como igreja, na arena pública, não precisa ser feita pela via da política partidária ou pela escolha deste ou daquele candidato. Cristãos podem ser candidatos e é bom que tenhamos candidatos que sigam a linha de valores que nos interessam (aqui cabe uma ressalva: a partir do momento em que alguém se investe da condição de político de um partido, não representa mais a igreja, embora possa ser um político identificado com os valores da igreja). Mas institucionalmente a igreja deve exercer sua influência política expressando publicamente quais os valores que lhe são mais caros e exigindo dos candidatos que se apresentam - e dos poderes públicos - um compromisso com esses valores. A igreja não pode negociar apoio no balcão da política partidária sem perder sua legitimidade.  Mas a igreja pode e deve expressar no debate político quais valores considera fundamentais para a conformação ética da vontade do Estado. E isso deve ser feito o tempo todo e não apenas no período eleitoral. Nas comissões do Parlamento, nos órgãos e conselhos do Executivo, nas universidades, na imprensa etc.

Enfim, a igreja não tem candidato, tem valores a defender. E se um líder com forte representatividade na igreja apoia publicamente certo candidato, estará jogando seus seguidores na trincheira das paixões partidárias. Todos temos nossas preferências eleitorais. Mas transformar essa preferência numa sinalização para toda a igreja, resulta nessa ópera-bufa que se desenvolve diante de nossos olhos.


João Heliofar de Jesus Villar, 45 anos, é procurador regional da República da 4ª Região (no Rio Grande do Sul) e cristão evangélico.
 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Rebeldes com causa, assim se faz um país

http://www.ultimato.com.br/inc/show_img.php?file=/image/principal/ultimas/opiniao/2010/outubro/opi_23_10_lausanne.jpg&largura=180&altura=170&opt=adaptativa
A indiana Pravitha Thimoty tem feição de menina, voz de menina, saga de mulher. Foi colocada de frente com os números da escravidão no mundo. Só na Índia, 15 milhões de crianças, sem contar mulheres e homens, vivem em condição de escravidão. Muito desse legado passa de geração em geração e as crianças que nascem escravas, nem se dão conta que o são e que existe um mundo com condições além daquelas em que vivem.

Ela infiltrou-se em uma fazenda de fabricação de tijolos. Fez relatos secretos do que viveu ali, conseguiu fugir, apresentar tudo à policia que, claro, sabe dessas realidades. Para a surpresa de todos, a justiça acolheu suas denúncias e prendeu o dono da fazenda, condenando-o a cinco anos de prisão, algo inédito na região e que tem produzido um efeito em cadeia muito positivo.

Um dado especial foi a história de um dos escravos dessa fazenda, sr. Ramen, terceira geração de escravos da família. Pravitha percebia que Ramen era especialmente humilhado pelo dono da fazenda e aproximou-se dele. Falou que existia uma pessoa que nos libertava de toda a escravidão e seu nome era Jesus Cristo. Contou a ele a história de Jesus, ao que ouviu: “Quero ser liberto por Jesus Cristo”. O dono da fazenda percebeu que Ramen estava diferente e intensificou as situações de humilhação. Parte de um vídeo gravado secretamente, mostra um dos momentos de intimidação e ameaças feitas a Ramen: “Ele nunca sairá daqui, nunca. Nasceu aqui e aqui ficará para sempre. É meu e não pode pagar pelo preço de sair daqui, nem com todo o seu trabalho”. O vídeo terminava com uma longa gargalhada do dono da fazenda.

Será que hoje, preso e condenado, ele daria a mesma risada do vídeo? Tudo isso aconteceu porque Pravitha se rebelou contra o que viu. Santa rebeldia a rebeldia de Cristo!


Fabrício Cunha, casado, pai de três filhos, é pastor de jovens na Igreja Batista de Água Branca (SP), mestrando em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo, e também está envolvido com o Fórum Jovem de Missão Integral, com a Fraternidade Teológica Latino Americana, com o Usina 21, com a JUMOC, com o comitê de Lausanne e com a formação de uma Aliança Evangélica no Brasil. www.fabriciocunha.com.br

fonte: http://www.ultimato.com.br/conteudo/rebeldes-com-causa-assim-se-faz-um-pais

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Como não transformar o município de Santa Evangélica do Norte numa Zâmbia

Paul Freston

A seguinte carta, que caiu por acaso nas minhas mãos, foi enviada ao prefeito recém-eleito de Santa Evangélica do Norte. Como todos sabem, o novo prefeito é evangélico, pertencente a um partido que nunca governou aquele município. Da mesma forma, lá nunca houve um prefeito evangélico, situação muito diferente da de Santa Evangélica do Sul, onde o prefeito, renomado cantor evangélico, se encontra em segundo mandato, tendo sido eleito primeiro pelo PFL, transferindo-se logo para o PPB e em seguida para o PTB, estando atualmente (pelo menos, até a semana passada) no Prona.

O autor da carta é pastor de uma igreja na capital do Estado.



Meu caro amigo e irmão …,

Escrevo estas linhas logo após o meu retorno de Santa Evangélica do Norte, ainda sob o impacto dos últimos acontecimentos. Foi um privilégio estar presente na sua posse e no culto de ação de graças que a seguiu. Quando nos conhecemos, há seis anos atrás, você era apenas um jovem militante sindical. Nunca imaginei que um dia chegasse a prefeito; e prefeito evangélico! Você, que era ateu e achava que evangélico era a pior coisa que já apareceu neste país. Levou tempo para superar essa idéia, não é? Mas, quando mudou, mudou para valer.

Sabe, quando você se converteu, eu, que estava longe aqui na capital, tinha um certo receio. Temia que você abandonasse a política, renunciasse ao mandato de vereador e mergulhasse somente no trabalho da igreja. Estranho um pastor dizer que temia isso, não é? Mas eu temia, sim, porque você era claramente um vocacionado para a política, mas andava com um grupo de crentes avessos a tudo isso. Esse grupo foi bom para você em muitas coisas, mas dizia que a única coisa que melhorava o mundo era Jesus no coração e que a política era perda de tempo. Não sabiam que Jesus, que precisa estar no coração de todos, é também o transformador da cultura.

Na época, você não tinha argumentos contra eles, mas continuou a atividade política como que por costume. Vivia uma vida cindida: na igreja, era o super crente; na política, era o militante de sempre, com a nova identidade evangélica acrescentada mas não integrada. Ficava uma coisa postiça. Era uma situação que não podia durar para sempre, e eu temia que se resolvesse com a sua saída da política.

Felizmente, meus temores não se concretizaram. Você ficou na política (e na igreja!). E cresceu nas duas. E agora que o evangelista da igreja virou prefeito da cidade, meu medo é outro. Você vai achar que nunca estou contente! Mas é assim: a política é importante, mas é sempre perigosa, porque mexe com o poder. Relacionar fé e política é como andar na corda-bamba; nunca se pode relaxar e achar que já dominou a técnica.

Meu medo é outro porque ultimamente você anda com evangélicos que não têm nenhuma rejeição à política. Pelo contrário, acham que são iluminados por Deus para consertar a política. Acham que os evangélicos têm o direito de governar, pelo simples fato de serem evangélicos. Acham que as promessas do Antigo Testamento a Israel se aplicam aos evangélicos hoje. Estão empolgadíssimos com a sua vitória porque acham que será o ungido de Deus para transformar Santa Evangélica do Norte em protótipo da Nova Jerusalém. Na cadeira de prefeito, você será canal para as bênçãos divinas. “Deus entregou esta cidade nas nossas mãos”, um deles orou no culto de sua posse.

Então, meu medo agora não é que você rejeite a política, ou que continue sem integrar a política com a sua fé, mas que você integre fé e política sem tensões, de uma forma ingênua e triunfalista, se esquecendo que todos nós somos falhos e pecaminosos. Essa turma da teologia do domínio não aprendeu bem a teologia, nem a história. Se os seus primeiros amigos evangélicos demonizavam toda e qualquer política, os seus novos amigos demonizam a política dos outros e divinizam a sua própria. Você precisa se lembrar que a política é sempre feita por homens e mulheres imperfeitos e pecadores, mesmo que sejam cristãos sinceros. É por isso que precisamos da transparência democrática, de pecadores vigiando outros pecadores, pois na política ninguém é digno de receber uma carta branca para governar.

Esse pessoal faria bem em conhecer um pouco a experiência de dois países onde evangélicos com essa teologia se tornaram presidentes. Na Zâmbia, um evangélico chamado Frederick Chiluba ganhou uma eleição para presidente em 1991. Todo mundo ficou contente, porque foi um dos primeiros países africanos a restaurar a democracia. Chiluba, como você, entrou na política por meio da militância sindical. O regime lá era de partido único, e Chiluba acabou na prisão. Lá, ele se converteu. Quando a democracia começou a ser restaurada, ele se tornou candidato da oposição a presidente. Ganhou folgado. Mas as expectativas que o povo tinha foram frustradas. Não demorou para Chiluba começar a imitar o antigo regime. Só não instituiu um partido único. Mas intimidou a oposição, mudou a constituição para seu maior adversário não poder concorrer na eleição seguinte, e agora está querendo mudar a constituição de novo para poder se reeleger pela segunda vez. Desrespeitou os direitos humanos, não cumpriu muitas promessas eleitorais, favoreceu o próprio grupo étnico dele e mergulhou na corrupção.

Bem, isso acontece em muitos lugares do mundo, mas Chiluba não só se desmoralizou; desmoralizou também o cristianismo. Quando assumiu a presidência, Chiluba fez três atos significativos. Primeiro, ele chamou um grupo de evangélicos para fazer uma cerimônia de purificação do palácio do governo, botando para fora os espíritos maus que ele associava ao governo anterior. Em segundo lugar, ele fez uma cerimônia de unção, inspirada na unção do rei Davi. E em terceiro lugar, ele fez uma cerimônia declarando a Zâmbia uma “nação cristã”. Dizendo que “uma nação é abençoada quando entra num pacto com Deus”, ele se arrependeu em nome do povo “de nossos maus caminhos de idolatria, feitiçaria, ocultismo, imoralidade, injustiça e corrupção:

Eu submeto o governo e a nação inteira ao senhorio de Jesus Cristo. Ainda declaro que a Zâmbia é uma nação cristã que procurará ser governada pelos justos princípios da Palavra de Deus. A retidão e a justiça devem prevalecer em todos os níveis de governo, e aí veremos a justiça de Deus exaltando a Zâmbia.

Parece que Chiluba fez essa coisas influenciado por uma teologia que acha que tais atos simbólicos trazem benefícios quase que automáticos. Ele disse que

Zâmbia entrou num pacto com Deus e por isso Deus está abençoando esta nação de tal forma que vamos deixar de ser um país devedor e nos tornaremos um país credor.

A reação dos líderes eclesiásticos foi variada. Alguns disseram que a declaração de uma “nação cristã” foi um erro, porque não tinha havido um debate democrático a respeito, criaria cidadãos de segunda classe, incentivaria a hipocrisia e traria descrédito sobre o cristianismo. A Zâmbia se tornaria realmente uma nação cristã, disseram, quando cristãos vivessem plenamente sua fé, e não por meio de uma declaração.

Outros líderes evangélicos, porém, ficaram empolgados. Não precisava de debate democrático, disseram, porque o que é bíblico não precisa ser submetido a procedimentos democráticos! Achavam que, já que era “nação cristã”, pastores deveriam ter posições no governo, o governo deveria dar terrenos para as igrejas construírem e a construção de mesquitas muçulmanas deveria ser proibida. Alguns queriam um Ministério de Assuntos Evangélicos, cadeiras cativas no parlamento e acesso ilimitado ao palácio presidencial.

Mas depois de um tempo, mesmo alguns dos adeptos mais fervorosos do presidente começaram a ficar desgostosos. Chiluba convidava pessoalmente alguns evangelistas famosos a fazerem cruzadas evangelísticas no país. O próprio Chiluba falava nessas cruzadas também. Mas quando ele tentou convidá-los de novo, muitos líderes evangélicos se recusaram a apoiar, dizendo que as igrejas, e não o governo, é que deveriam fazer os convites. Você vê que um governo “evangélico” acaba dividindo os próprios evangélicos, porque não há concordância sobre o que é tarefa do governo e tarefa das igrejas. E porque não há dinheiro e favores e cargos suficientes para todos!

O maior evangelista da Zâmbia era grande defensor de Chiluba. Mas, depois de certo momento, ele se desvinculou e virou um dos maiores opositores. Fundou um partido e quer se candidatar a presidente no final deste ano, dizendo que “não se deve entregar o país a incrédulos”. Diz que a Zâmbia não é uma nação cristã porque os líderes não vivem segundo as normas do cristianismo. Segundo ele, Chiluba não deveria ter declarado uma “nação cristã” até que todos os membros do governo fossem nascidos de novo. O país não precisa de alguém com muita competência e conhecimento para mudar a economia; precisa apenas de alguém com moral e integridade. Alega que Chiluba manteve o apoio de alguns líderes cristãos somente porque distribui dinheiro do governo para eles e porque ameaça retirar os passaportes diplomáticos que os principais pastores têm, se criticarem o governo.

Está vendo como as coisas ficam embaralhadas? Aconteceram coisas parecidas na Guatemala, o país com maior porcentagem de evangélicos na América Latina. Lá, já houve dois presidentes evangélicos. O primeiro era um general extremamente repressivo, que enquanto presidente aparecia na televisão todo domingo para pregar para o povo. Hoje ele diz que, para ele, não havia diferença entre ser chefe de estado e ser ancião de sua igreja: “Como presidente, eu apenas ministrava a uma congregação maior”! Ele via a nação como uma megaigreja, e o chefe de estado como um mestre de verdades espirituais. O segundo presidente evangélico era líder leigo de uma grande igreja. Na época de sua campanha para presidente, ele também dirigia uma campanha de batalha espiritual chamada “Jesus é Senhor da Guatemala”. Era uma campanha para livrar o país de uma suposta maldição colocada sobre ele há três mil anos por causa de religiões pré-cristãs. Como era de uma igreja de elite, os membros alugavam aviões para expulsar os demônios da região que sobrevoavam. Como presidente, ele foi um desastre: não aprofundou a democracia, continuava as velhas práticas de compra de votos e foi corrupto. Aí, tentou um golpe, fechando o congresso e suspendendo a constituição. Não deu certo, e ele teve de fugir para o exílio.

Cuidado, então, com esse triunfalismo político evangélico. Cuidado com os evangélicos que se acham capazes de governar! Temos de entender a diferença entre o Antigo e o Novo Testamentos. Nenhum país hoje está na posição de Israel no Antigo Testamento. Nenhum grupo pode reclamar um direito divino de governar. Esse pessoal que diz que os evangélicos devem governar nunca promove debates dentro da comunidade evangélica. Como estabelecer um projeto comum? Quais evangélicos estarão no poder? Isso eles nunca discutem.

A nossa política pode ser confessional (inspirada pela nossa fé), mas não devemos querer um Estado confessional. Não é bom que o Estado se torne juiz de doutrinas e práticas religiosas. Você também, como prefeito, terá de entender a diferença entre ser um legislador evangélico e um governante evangélico. São papéis diferentes, com implicações diferentes para sua responsabilidade cristã. Como bom governante cristão, você precisará ser neutro entre todas as religiões (inclusive aquelas de que não gostamos), e entre religiosos e ateus. Você precisará perceber, também, a fronteira entre as tarefas de um governante e as de um cidadão evangélico comum. Chiluba, promovendo cruzadas enquanto presidente, se complicou nesse ponto.

Ah, e mais uma coisa para terminar. Você obviamente se lembra daqueles pastores que o atacaram durante a campanha, dizendo que você era candidato do diabo. Pois bem, logo você vai perceber que esses mesmos pastores estão querendo se aproximar de você e te tratando com (aparentemente) o maior respeito. Sabe por quê? Porque agora você não é mais candidato mas “autoridade instituída por Deus”. Vão te cortejar porque têm uma teologia que quase diviniza o poder; e porque querem estar próximos do prefeito, seja quem for, para não perder vantagens. Mas fique sabendo que, do mesmo jeito que te abraçam agora, podem te esfaquear pelas costas depois. Estou falando, obviamente, dos piores entre eles. É possível que alguns outros passem realmente por uma mudança de visão, principalmente se você fizer um bom governo. O importante é você tratar todo mundo igual, mas não acreditar em tudo que ouve. Às vezes se brinca no meio evangélico que a última coisa que se converte é o bolso. Mas não é; é o fascínio pelo poder.

Você agora é prefeito, é “autoridade”. Mas para mim, você continua a ser uma pessoa de pouco tempo na fé, que precisa de discipulado. Tomara que você esteja mais maduro na fé quando deixar a prefeitura do que quando entrou. E que Santa Evangélica do Norte seja um pouco melhor também!

Um grande abraço fraterno.



Paul Freston é professor de sociologia na Universidade Federal de São Carlos, SP. É autor de, entre outros, Neemias — um profissional a serviço do reino (ABU Editora).

fonte: www.ultimato.com.br/revista/artigos/270/como-nao-transformar-o-municipio-de-santa-evangelica-do-norte-numa-zambia 

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Sinagoga, a Praça e a Academia: O Evangelho em Diálogo com o Religioso, o Profano e o Erudito. Reflexões a partir de Atos 17.16-34

Estevan F. Kirschner*
 
Introdução1
Nos dias de hoje, ainda no início do século XXI, há nitidamente um declínio de influência do Cristianismo
na sociedade ocidental e, por extensão, na sociedade brasileira. Algumas razões para esse declínio
poderiam ser:  
– a privatização da fé, a partir de um individualismo exacerbado do ser humano moderno, e que se estende intensamente na assim chamada era pós-moderna;
– o pluralismo religioso, com uma grande ênfase no sincretismo religioso e no retorno (romântico) a religiões mais primitivas (paganismo);

– o acanhamento e, muitas vezes, o acovardamento do Cristianismo diante de diversos desafios candentes do mundo pós-moderno. Como exemplo, basta mencionar a questão ambiental e o “silêncio quase ensurdecedor” sobre o assunto, da parte da igreja e da teologia;


– o ostracismo (reclusão) no “gueto” evangélico, com forte tendência para a alienação em relação ao mundo (“Lugar de crente é ... na Igreja [?]”)


O Protestantismo brasileiro atual deixou de lado uma importante percepção que marcou fortemente a Reforma Protestante do séc. XVI, que via o Evangelho, e a Palavra de Deus no seu todo, como juiz da sociedade e do mundo (além, é claro, da própria Igreja). Mais do que trazer a mensagem de salvação ao mundo, a Igreja, munida do Evangelho, também deveria assumir uma postura crítica em relação à sociedade. Para que isso acontecesse, seria necessário haver algum tipo de interação entre Igreja e sociedade. Isso está tornando-se cada vez mais difícil, dadas as razões alistadas acima.


Seria muito importante que a Igreja Protestante (Evangélica) retornasse aos ideais da Reforma, como por exemplo ao princípio da
sola Scriptura, não só na teoria, mas principalmente na prática. A fim de ilustrar o que seria uma possível proposta bíblica de interação e diálogo entre o Evangelho e o mundo que Deus deseja resgatar por meio do Filho, tomamos como modelo a atividade missionária de Paulo descrita em Atos 17.

Algumas observações básicas sobre o texto de At 17 serão importantes aqui, especialmente, o perfil missionário de Paulo apresentado nesta passagem.


O apóstolo Paulo está em Atenas, centro da arte, da cultura, da filosofia e da religião do mundo greco-romano em meados do século I AD. O ponto de partida para a atuação de Paulo em Atenas (da sua atividade descrita na sinagoga, na praça e no Areópago) é uma profunda indignação contra a idolatria reinante na cidade (At 17.16).

O primeiro aspecto a destacar é o contato de Paulo com o ambiente religioso, a sinagoga.

1. O Evangelho em diálogo com o Sagrado (o Religioso) — At 17.16s
A estratégia missionária de Paulo foi sempre a de visitar primeiramente a sinagoga judaica por onde quer que ele passasse, a partir do princípio da prioridade do judeu quanto ao Evangelho, normatizado pelo apóstolo em Rm 1.16s. At 17.2 exemplifica o costume paulino. Certamente o apóstolo Paulo sentia-se à vontade na sinagoga, o ambiente religioso judaico, onde encontrava judeus, prosélitos e simpatizantes do Judaísmo, e a prática litúrgica e piedosa da oração, da leitura e da interpretação da Bíblia Hebraica (o AT). No livro de Atos encontramos um exemplo mais detalhado, e provavelmente representativo, da pregação de Paulo numa sinagoga no capítulo 13.14-41. Nessa passagem, Paulo faz uma retrospectiva dos pontos principais da história de Israel, concluindo com o lugar central da morte e da ressurreição do Messias Jesus nessa “história da salvação” proposta por Deus.

Em At 17.17 Lucas nos diz que Paulo “discutia” com os judeus na sinagoga. Seu estilo evangelístico não era o monólogo, mas o diálogo, não era a imposição (unilateral) de ideias (e que ideias!), mas a interação, envolvendo um intenso debate com seus ouvintes e interlocutores. Isso é característico de Paulo em Atos, como Lucas apresenta no contexto imediato à passagem sobre Paulo em Atenas, At 17.2s.


Quando observamos o treinamento e a formação de pastores nos seminários e faculdades teológicas notamos que nem sempre se privilegia esse estilo “dialético” de evangelização. Pior ainda, na maioria das vezes, o futuro pastor-teólogo é preparado unicamente para atuar na esfera do “sagrado”, do religioso. O teólogo americano Walter Wink fala da preparação teológica recebida nos seminários evangélicos (americanos, mas seria diferente no Brasil?) na década de 1980 como uma “incapacidade treinada para lidar com os problemas de pessoas reais em suas vidas diárias”
2.

O problema é que, muitas vezes, pastores e teólogos cumprem mal a sua responsabilidade no âmbito religioso e, além disso, não têm qualquer abertura para os horizontes do lado de fora da “sinagoga”. Paulo, logo, sai da sinagoga e chega à praça principal de Atenas (At 17.17). Sua interação, apesar da familiaridade com o ambiente da sinagoga, se estende com uma naturalidade intrigante para o ambiente do não-sagrado, a praça.
 
2. O Evangelho em diálogo com o Profano (o Mundano) — At 17.17s
Paulo, agora, vai para a agora, a praça principal da cidade. A praça é um lugar movimentado e palco de manifestações, das mais diversas, tanto de caráter religioso pagão, como filosófico e cultural. Na praça, Paulo encontra todo o tipo de pessoa, trabalhadores e desocupados, marginais e imorais, eruditos e ignorantes – algo bem diferente do ambiente religioso e solene da sinagoga.

O “discutia” do início do versículo 17 (na sinagoga) continua regendo a atuação paulina na praça pública. É interessante notar que Paulo não escolhe interlocutor. Não precisa fazer primeiro uma “curso”, ou um seminário, para depois responder às indagações de quem quer que seja; ele simplesmente debatia “com aqueles que por ali se encontravam”.


O assunto não poderia ser mais bombástico: a crítica ao paganismo na cidade de Atenas, incluindo, como é possível imaginar, uma refutação contundente da idolatria, que tanto irritara o apóstolo. Em outra parte do livro, Lucas fornece também uma ilustração da pregação do apóstolo num ambiente predominantemente pagão e idólatra. Em At 14.14-18 encontramos um resumo da abordagem paulina em relação aos pagãos, na qual ele parte da revelação de Deus na natureza criada para argumentar sobre a necessidade de se atentar para o agir de Deus em Jesus Cristo, as “boas notícias”, o Evangelho (At 14.15).


A exposição pública do Evangelho num ambiente profano (comum) requer a coragem de assumir riscos bastante reais: em primeiro lugar, o risco da rejeição. Paulo é chamado de “tagarela” (grego spermologos), cf. 17.18b, uma alcunha ofensiva; em segundo lugar, o risco de confusão com ideias alheias ao Evangelho de Cristo. Alguns ouvintes na praça pensavam que Paulo pregava dois deuses estrangeiros, um tal de Jesus e uma certa
Anastasis, cf. 18c. Anastasis é o substantivo feminino grego para “ressurreição”. Como não criam na ressurreição dos mortos, a tendência natural era tomar a palavra como nome próprio que designaria uma divindade feminina. Assim, para a mente confusa de alguns pagãos atenienses, Paulo falava de um estranho casal de divindades, “Jesus e Anastasis”.

Mesmo correndo o risco desse tipo de confusão, Paulo nos dá um exemplo dessa difícil, mas necessária, interação do Evangelho com o profano, em especial, da persistência em contradizer a idolatria, mesmo com os possíveis mal-entendidos que isso implicava. Em meados do séc. XX, o teólogo suíço Karl Barth advertia seus estudantes sobre a importância fundamental de se ter a Bíblia na mão e o jornal do dia na outra mão, a fim de estarem atentos às possibilidades e à própria necessidade de interação do Evangelho com o mundo e a sociedade em que vivemos.


Os protestantes e evangélicos, porém, têm problemas sérios aqui: primeiramente, há uma nítida falta de atenção ao que acontece no mundo e, até mesmo, ao contexto mais próximo da igreja (monasticismo evangélico?). No séc. XVI, os adeptos da reforma de Lutero na Alemanha “protestaram” (palavra de tonalidade claramente política) diante das autoridades imperiais, demandando o direito de exercitarem a fé cristã a partir dos ensinos de Lutero. Daí vem o nome “protestante”; um nome que por si só (embora de conotação negativa) sugere uma forte interação com a sociedade, ainda que seja uma postura de não-conformismo. Em segundo lugar, é perceptível uma incapacidade generalizada de articulação do Evangelho num ambiente não-religioso, a falta de comunicação apropriada. Até mesmo inventamos um novo dialeto: o “evangeliquês”. Exigimos que as pessoas de fora aprendam esse dialeto para se relacionarem com Deus – na língua que, supostamente, somente Deus e os crentes entendem. Mas a encarnação do
logos de Deus (Jo 1.14), bem como a prática missionária paulina, demonstra exatamente o oposto disso: Deus vem ao encontro do ser humano, dentro das limitações da “carne”, em seu próprio Filho que revela a Divindade com um rosto humano (Jo 1.18).

Na
agora de Atenas, Paulo se torna um incentivo para que nos esforcemos na promoção e na comunicação do Evangelho por todos os meios possíveis, inclusive a mídia, sem comprometer, é claro, a integridade da mensagem em troca de comunicação eficaz.

A passagem de Paulo por Atenas ainda reserva um terceiro momento, que sintetizamos a seguir.
 
3. O Evangelho em diálogo com o Erudito (a Academia) — At 17.19-31
O Areópago (At 17.19), o monte (ou colina) de Marte (Ares), era a sede da academia e do conselho máximo da cidade de Atenas. Ali seus líderes – as autoridades intelectuais, os educadores e os filósofos de Atenas –, se reuniam para deliberar sobre diversas questões civis, filosóficas e religiosas.

Havia dois grupos principais de filósofos em Atenas, com os quais Paulo discute no Areópago, cf. 17.18: a) os epicureus, discípulos de Epicuro, que se notabilizaram por promover uma justificativa filosófica para o hedonismo, i.e., a busca pelo prazer como a única razão que dá sentido à existência humana no mundo; e b) os estoicos, discípulos de Zenão que se reuniam, originalmente, na porta (
stoa) da cidade. Promoviam a vida de conformidade com a natureza, defendendo um tipo específico de panteísmo (como a alma está no corpo, assim “deus” está na natureza).

O conteúdo do sermão de Paulo no Areópago, resumido por Lucas em At 17.22-31, tem alguns pontos salientes dignos de nota no que diz respeito à interação do Evangelho com a academia:


– Paulo parte de um ponto de contato, o altar “ao deus desconhecido” (grego,
agnôstô[i] theô[i]), cf. 17.23, que a própria idolatria propiciava. Paulo aproveita a curiosidade, tão característica dos atenienses (17.19-21), para levar o diálogo adiante. Ele não recorre à alguma forma de defensivismo obscurantista diante dos desafios da idolatria. — O apóstolo vai do abstrato e impessoal (“aquilo que vocês adoram”, v. 23b) para o concreto e pessoal, “o Deus que fez o mundo” (17.24a).

– Ele explica que Deus, ao contrário de ser uma abstração, distante e desengajada do mundo, é o Criador e o Sustentador de toda a Criação (17.24); Deus está envolvido com o mundo. Além disso, podemos facilmente imaginar Paulo apontando para os grandes templos na Acrópolis, visíveis do Areópago, e dizer que Deus “não habita em santuários feitos por mãos humanas” (17.24b). Ou seja, não é possível “domesticar” o Deus verdadeiro. Ao relatar o que Paulo disse, Lucas nos oferece um ótimo exemplo de desmonte e “desconstrução” das filosofias pagãs gregas, quando confrontadas com a mensagem do Evangelho.


– Paulo, ainda, destaca a origem comum do ser humano em Deus (17.26). Os atenienses criam ser uma “raça” superior até mesmo aos demais habitantes da Grécia. Os estrangeiros eram meramente os
barbaroi, os incultos que falavam numa língua incompreensível (daí o “bar-bar”, de bárbaros).

– O apóstolo esclarece que a revelação geral, da qual acaba de tratar, ainda que importante não é suficiente para o conhecimento de Deus: “talvez, tateando, pudessem encontrá-lo” (17.27).


– Ele cita, no vers. 28, dois poetas gregos conhecidos, respectivamente, Epimênides (“nele vivemos, nos movemos...”) e Arato (“somos descendência dele”), para deixar patente que vestígios da verdade de Deus podem ser encontrados tanto na natureza como no próprio ser humano, inclusive na sabedoria helênica.


– A desconstrução do paganismo continua no vers. 29, destacando a total “falência” da idolatria e do panteísmo diante desse conhecimento básico de Deus – ele não pode ser confundido com aquilo que ele mesmo criou.


– O juízo de Deus (17.30s) agora entra em cena: até o momento, a tolerância divina; mas o dia da prestação de contas está chegando. O Juiz, cuja qualificação especial e extraordinária é a “ressurreição dentre os mortos” (prova do agir e da aprovação de Deus) está aí.


– Há um detalhe importantíssimo aqui: a ressurreição era rejeitada como absoluta impossibilidade pelos gregos; tida como algo absurdo pelos filósofos, os quais sempre tendiam para a idéia clássica da imortalidade da alma (Sócrates, Platão).


O diálogo com a erudição⁄academia (filosofia) é difícil, pois será sempre um “diálogo crítico”, do Evangelho em relação ao pensamento meramente humano. Por essa razão, não é de admirar que a reação dos filósofos à mensagem paulina fosse a rejeição (17.32s). Ainda assim, é importante observar que a pregação de Paulo não foi infrutífera (17.34), pois alguns poucos creram (Dionísio, membro do conselho da cidade, e Dâmaris).


Contudo, é muito importante ressaltar que Paulo foi alguém especialmente moldado por Deus para esse tipo de diálogo “multidisciplinar”, pois ele mesmo era cidadão de três mundos: nasceu em Tarso, cidade helenista; foi criado no Judaísmo e era cidadão romano.


Ao final dessas reflexões em torno da atividade missionária de Paulo em At 17, é possível formular o esboço de uma tese fundamental no que diz respeito às possibilidade de interação e diálogo do Evangelho (Cristianismo) com o mundo (sociedade) hoje:
 
Tese:
Não é só necessário e possível, como também desejável, que haja um diálogo crítico entre o Evangelho de Jesus Cristo e a sociedade, em todos os níveis
. Esse diálogo crítico de modo algum invalida, compromete ou diminui a piedade cristã que a Palavra de Deus exprime e requer dos cristãos. Pelo contrário, é até incentivador e motivador da piedade, como se vê na experiência do apóstolo Paulo no livro de Atos. Mas é piedade qualificada como engajada e relevante no mundo.

Conclusões
À luz dessas observações em At 17.16-34, é preciso destacar algumas coisas que devemos desenvolver, a fim de promover o Evangelho de maneira mais relevante no contexto multidisciplinar (sinagoga, praça e academia) em que vivemos hoje. Cito apenas algumas preocupações mais recentes. Precisamos, urgentemente:

Recuperar a capacidade (cristã) de indignação. Paulo reage contra a idolatria crassa de Atenas. Às vezes, parece que estamos anestesiados diante do mundo e do seu panteão. É claro que devemos aprender com Paulo que a nossa reação diante da idolatria não deve ser a de “chutar a santa”, ou algo parecido. Embora muito indignado com a idolatria reinante, o apóstolo usa essa constatação como ponto de contato com os eruditos atenienses e como ponto de partida para sua apresentação do Evangelho (cf. At 17.22-23).

Desenvolver a capacidade de entendimento crítico do mundo. Precisamos sair do nosso “gueto” e saber o quê e como o mundo pensa. Um modo de avaliar até que ponto fazemos isso é perguntar se temos (principalmente, nós os teólogos e líderes) amizades fora do contexto eclesiástico.

Implementar oportunidades de interagir criticamente, a partir do Evangelho, com setores da sociedade. É necessária a coragem de enfrentar os desafios que o mundo (urbano) moderno e pós-moderno oferece ao Cristianismo. Será que o cristianismo não tem algo a dizer (e a fazer) sobre o problema do aquecimento global e das mudanças climáticas? E as artes? Cremos, de fato, que Deus é o Criador daquilo que é belo? Então por que encontramos tão poucos artistas cristãos? Além do estético, também existem numerosos desafios éticos na atualidade brasileira. Raramente, por exemplo, se ouve algum teólogo protestante falando sobre a questão do aborto no Brasil.

O Evangelho de Jesus Cristo abre possibilidades variadas de diálogo e interação para o Cristianismo com o mundo no qual vivemos. O apóstolo Paulo é um excelente modelo para nós hoje. Ele demonstra essas possibilidades tanto no campo religioso, como no profano e no erudito. Num mundo carente de ideias e ideais, eis a nossa oportunidade de apresentar o Cristianismo como algo relevante, que responde às questões mais importantes que preocupam as pessoas no mundo. Tudo isso vem envolvido numa mensagem revolucionária e resgatadora, o Evangelho de Jesus Cristo. Estamos dispostos e prontos para assumir essa tarefa?

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Notas:
1  Este artigo foi publicado originalmente na revista teológica Vox Scripturae vol. XVIII no 1 (2010).
2
WINK, W. The Bible in Human Transformation. Filadélfia: Fortress Press, 1983, p. 6.

fonte: http://www.vidanova.com.br/teologiadet.asp?codigo=185 

* É mestre em Interpretação Bíblica [1984-1985] e Ph.D. em Novo Testamento [1985-1988], pela London School of Theology, em Londres, Inglaterra. É professor de Bíblia, teologia bíblica e exegese no Seminário Teológico Servo de Cristo. Trabalhou como pastor na IECLB (Igreja Evangélica da Confissão Luterana no Brasil). Lecionou por vários anos no Seminário Bíblico Palavra da Vida, em Atibaia, SP, e na Faculdade Luterana de Teologia, em São Bento do Sul, SC. Foi editor da revista teológica Vox Scripturae. É um dos tradutores e membro das comissões de tradução da NVI (Nova Versão Internacional) e da Almeida Século 21. Casado com Rachael, tem três filhos e dois netos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Vai encarar?

"Sou contra o aborto. Não preciso de religião para viver, não acredito em Papai Noel, sou da elite intelectual, sou PhD, pód-doc., falo línguas estrangeiras, escrevo livros 'cabeça' e não tenho medo de cara feia. Vai encarar?

Prefiro pensar que a vida pertence a Deus. Já vejo a baba escorrer pelo canto da boca do 'habitué' de jantares inteligentes, mas detenha seu 'apetite' porque não sou uma presa fácil.

Lembre-se: não sou um beato bobo e o niilismo é meu irmão gêmeo. Temo que você seja mais beato do que eu. Mas não se deve discutir teologia em jantares inteligentes, seria como jogar pérolas aos porcos.

Esse mesmo 'habitué' que grita a favor do aborto chora por foquinhas fofinhas, estranha inversão..."

É desta forma provocante, atitude comum em suas crônicas na Folha de São Paulo, que Luiz Felipe Pondé, no dia 11/10/10 inicia a discussão do tema aborto. "É claro que esse retorno é retórico", ele afirma. É retórico porque a democracia é um regime político para o discurso bem articulado mas não necessariamente válido.

Pondé afirma que o argumento teológico contra o aborto é desnecessário, pois considera o feto uma criança. E a atitude dos favoráveis à prática que, através de um duro trabalho, procuram des-humanizar o feto é uma evidência da solidez do argumento: o feto é uma criança, um bebê.

Também refuta o apelo à definição científica do início da vida, porque assim que ela for firmada "compraremos cremes antirrugas 'babyskin' com cartão Visa".

Posiciona-se contrário à prática por considerá-la homicídio. Assim sendo, não é possível concordar que cada um faça sua própria escolha, pois seria o mesmo que aceitar que cada um decida se deseja assassinar ou não o seu próximo.

Dentro da retórica das democracias, o marketing é ferramenta antiga, mesmo que o nome seja novo. Onde há necessidade de convencer, há a necessidade de uma técnica que o torne possível. E a face sombria da democracia é o sofisma, a mentira travestida de verdade. E os dois principais candidatos usam o tema para auferir ganhos em votos.

O autor não vê avanço moral na legalização do aborto; o que é evidente, em termos morais, é a des-humanização do feto através da argumentação dele não ser humano. Este fato dá um novo aspecto à expressão "sexo seguro": "se algo der errado, lavo".

Infelizmente não desenvolve a argumentação contrária à noção de que a legalização do aborto seja caso de saúde pública. Cita apenas que esta visão é fundamentada economicamente, e não pelas mortes maternas decorrentes de abortamento por meios invasivos.

Provoca outras argumentações: o feto "é dele mesmo", e não da mãe. Ponto que somente pode ser sustentado, o feto (e porque teimamos em não dizer criança) como um parasita ou órgão descartável da mãe, caso ele seja despojado da condição de ser humano.

Se há diversos países avançados que já o legalizaram, a argumentação apenas estimula a busca por estar na moda, para não ser uma nação exceção, solitária. Neste ponto, toca a ferida que diz aborto permitido = avançado, aborto proibido = retrógrado.

Coerentemente pergunta se não seria mais produtivo discutir-se como podemos receber as crianças indesejadas que debater sua legalização? Por que não imitar a Igreja Católica no seu esforço de criar redes para recebê-las? Por que não facilitar a adoção por casais homossexuais masculinos?

Encerra seu texto com o dedo na ferida correta: "quem é a favor do aborto não o é por razões 'técnicas', mas por 'gosto' ideológico".

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Política, Israel e Igreja: pensamentos sobre dois modelos de ação e testemunho

Eduardo Ribeiro Mundim

Gradativamente os evangélicos brasileiros, em suas mais variadas cores, assumem posturas políticas. E isto deve ser visto como um progresso. Quando ingressei na faculdade, nos anos 80, a cabeça do jovem evangélico era formada para que evitasse ser "inocente útil"; política era coisa com a qual não se devia envolver. Bem, os tempos mudam, e, felizmente, também para melhor.

Um ditado popular diz que religião, política e futebol não se discutem. Talvez seja o ditado que menos credibilidade merece, pois todos os três assuntos são exaustivamente debatidos. E apaixonadamente! E a paixão exila a racionalidade, a visão ampla, a busca (que nunca é completa) de todas as possíveis visões de um assunto.

Em artigo denominado "Lobby cristão e casamento gay" publicado no dia 30/09/10 na Folha de São Paulo, Contardo Calligaris diz que "as igrejas gostariam de uma sociedade em que seja crime tudo o que, para elas, é pecado".

Parte da igreja evangélica assim se comporta. Parece que seu exemplo é a aliança do Antigo Testamento. Quais eram as suas características?
- firmada com os pais valia para toda a descendência. A adesão dos filhos e netos era por nascimento, automática, compulsória;
- visava a construção de uma sociedade política, cultural e religiosa uniforme, com pouca possibilidade de troca de costumes;
- etnicamente centrada, exclusivista, não buscava convertidos (embora os aceitasse, caso houvessem);
- tinha o respaldo do poder de polícia, pois era uma unidade politica-cultural-religiosa, onde previa-se pena de morte para crimes religiosos (como trabalhar no sábado), sexuais (adultério) e sociais (homicídio doloso).

Esta parcela não mira na nova aliança trazida pela morte e ressurreição de Jesus Cristo. Esta, exposta pelo Novo Testamento caracteriza-se por:
- adesão voluntária, pessoal e intransferível. O preço a pagar na adesão é a confissão de que Jesus é Senhor, e o Cordeiro de Deus morto pelos pecados daquele que adere;
- visa a construção de uma sociedade religiosa, a igreja, conjunto dos que se confessam pecadores e estão arrependidos, e que buscam, de modo solidário, uma vida progressivamente mais próxima do padrão divino;
- aberta a todas as culturas, sociedades, povos, nações e línguas, não coagindo nenhuma delas a negar a si mesmas, mas a terem transformados os seus aspectos contrários às normas do Reino;
- prescindir da força física, excluindo da comunidade aqueles que dela se afastam.

O contraste entre Israel e Igreja é uma evidência histórica, ou uma parábola profética, onde Deus mostra que não é possível a criação de um novo mundo baseado na coação, na cultura. Israel fracassou na sua missão interna (ser povo de Deus) e externa (ser luz para os que não O conheciam). E quando a Igreja é formada, não é o modelo de estado que os apóstolos escolhem, mas o de comunidade inclusiva (escravos, livres, senhores, servos, brancos, negros, etc) que busca ser luz e viver segundo ela!

Quando segmentos evangélicos querem impor a todos os que não são cristãos valores cristãos o espírito do Evangelho é violado! Somos enviados em missão para, simultaneamente (porque não há um aspecto prioritário em relação ao outro), servir ao próximo necessitado e pregar o Evangelho do Reino. Não somos enviados a forçar mudanças de comportamento, mas a oferecer opção melhor que pode ou não ser aceita.

A busca por uma sociedade cristã não se dá por intermédio das leis, ou da força bruta. Seria apenas uma sociedade cristianizada, sem alma, sem compromisso, sem busca pela santidade.
A quem estamos enganando? A nós mesmos? A Nova Jerusalém não será uma construção nossa, mas um presente de Deus vindo dos céus e por Ele preparado!

O comportamento deste segmento apequena as Boas Novas, mundaniza-as, busca um modelo fracassado e, nesta busca, confessa o próprio fracasso em ser Igreja pecadora e santa!

A lição do Sermão do Monte é clara: a comunidade cristã é para ser luz. É para convencer pelo modo de vida, pela santidade pessoal e vida em comum. E a visão de como cada sociedade humana deveria se organizar apresentada ao mundo descrente em bases racionais, inteligíveis para o ouvinte que não é cristão e nem deseja sê-lo, mas que se convence da superioridade dos argumentos apresentados.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Pastores são homens: Fardos depositados nos ombros errados e a nossa grande culpa

Danilo Fernandes

Ao ouvir esta declaração corajosa do Rev. Caio Fábio sobre o episódio de “sua queda”, não tive como não olhar para o espelho e perceber em mim mesmo o erro tantas vezes cometido de descontextualizar a humanidade dos pastores com quem já convivi ou convivo hoje, seja de forma consciente ou inconsciente.

Esta declaração é um alerta para os perigos das desHUMANIZAÇÃO dos servos de Deus e a nossa tendência para nos gloriarmos em homens (1Co 3:21).

Se por um lado é importante e desejável ter no pastor um modelo humano do esforço de exercer o cristianismo de forma integral, por outro, é de uma covardia absurda exigir destes servos algo que a natureza comum e pecadora de todos nós homens nos nega por definição.

Contudo, agimos assim.

De uma forma ou de outra é minha responsabilidade, ainda que não intencional, se me permito seguir buscando modelos mais palatáveis de SER SANTO, diante da minha enorme culpa por não conseguir seguir o exemplo da Cruz, por mais que meu coração deseje, minha alma clame e o meu viver se volte para tal.

Caio e caio todos os dias de minha vida, me levanto na certeza do viver sob a Graça, mas em algum lugar o tentador me faz sentir indigno da Cruz.

Não me glorio na minha eleição. Percebo esta astúcia maligna sobre a vida de todos nós e não me deixo abater por isto, mas não nego a reincidência do erro. E pior: Estou certo de que uma das razões para a manutenção deste meu convívio sofrido com a culpa deriva do fato de, em muitas ocasiões, esta mesma culpa ser benção na minha vida, pois me faz olhar para a Cruz, quando eu insistia em olhar para mim.

Miserável eu sou com a minha culpa. Tanto mais tamanho pecador. Contudo, é justo da minha parte buscar alivio para esta culpa jogando este meu fardo nas costas de meu pastor? Ou não deveria eu jogar aos pés de QUEM realmente pode suportá-lo? (Mt 11:28-30)

Todos os dias somos surpreendidos por escândalos e mais escândalos envolvendo lideres. Crimes financeiros, falsas doutrinas, corrupção e estelionato religioso. Isto sem falar dos “crimes” comportamentais que parecem causar ainda mais embaraço entre a membresia.

Nestes momentos, somos levados a extrema decepção e alguns se desviam da igreja. Um erro causado por outro erro, do qual nós mesmos somos os maiores culpados.

E que fique claro que não falo do erro (escândalo financeiro, ético, etc.) per se, mas do NOSSO erro pessoal de: idolatrar; desHUMANIZAR; colocar em maior conta; os nossos amados líderes, esperando deles, como disse Caio Fábio, uma projeção de nosso ideal de ética, moral, fé, etc.

A responsabilidade de um pastor é imensa e este peso extra colocado pelas ovelhas é um fardo de injustiça!

Devemos lembrar que, no fim das contas, os nossos discipuladores são pecadores como nós. Estão em posição de nós ajudar e pastorear, mas são homens e falhos e, pior, são cobrados e testados em dobro.

Se isto não é nem de longe uma carta branca para que não se toque no ungido, coisa que poucos ainda acreditam, também não nos autoriza a dobrar a carga já pesada destes servos.

Um servo de Deus, que leva á sério o seu ministério e se faz presente na vida de suas ovelhas e de suas lutas e não se rende a estes modismos que fazem encher as igrejas está abraçando uma tarefa imensa, que somente a Graça e a eleição do Senhor podem justificar (e tornar possível).

Nestes meus 14 anos de Evangelho acompanhei a vida de muitos pastores, pastoras, missionários e missionárias que se levantam todos os dias para ser benção na vida de centenas, trabalham (as vezes pagam para trabalhar!) o dia todo, pau para toda obra, e quando chegam em casa e tiram os sapatos, toca-lhes o telefone por conta de um chamado para atender a um irmão doente, um enterro, um desesperado, uma abandonada, etc. Quantas vezes estes chamados urgentes não acontecem quando a presença do pastor era requerida pelos de sua própria casa necessitando de apoio, carinho, presença...

Há muito amor chegando aos líderes, mas há muita fofoca também. Muita maledicência, mesquinharia e, posso dizer, pois não sou pastor: Muitos líderes são sugados (sinto dizer isto, mas tem ovelha que é vampiro mesmo) até o tutano.

Neste processo, cansei de ver servos verdadeiros enfrentando problemas com seus filhos, esposas, parentes, reflexo da extrema cobrança, fofoca, inveja (sabe lá Deus do que, mas tem!) e disputas políticas.

Eu vi famílias desfeitas, filhos que se tornaram ateus e toda a sorte de problemas e, confesso a vocês de todo o coração: Nunca conheci pessoalmente um caso onde o pastor pudesse ser responsabilizado inteiramente por isto, a menos que lhe fosse cobrada coerência a esta capa de super-homem que suas ovelhas lhes imputaram.

Ainda não conheci um único líder que tenha se dado tal envergadura de super-herói, que na verdade não fosse um farsante destes que batemos tanto por aqui. Entrementes, conheci muitos que receberam esta capa de super-homem (ou mulher maravilha), sem pedir e sem desejar, mas a receberam de gente que nunca conseguiu SER e VIVER CRISTIANISMO na essência (no Pai e no Outro) e se projetam no HOMEM, que ainda se muito virtuoso é HOMEM e só.

Não é fácil se livrar desta armadilha. O servo (a) deve, a todo momento, se policiar. Se deixa correr solto, o “manto do sagrado” vira esconderijo até mesmo para a sua família.

Um amigo pastor me disse: Danilo, eu só vivo bem e seguro em minha casa e com minha família, porque o Senhor nos sustenta e porque dou conta da minha vida a algumas pessoas que me servem de conselheiros em Cristo. Sem isto, caímos todos.

Pastores levam muito “trabalho para casa” e quando o fazem, levam também o “pastor” e o “espiritual” e deixam o “homem”, o “pai” e o “marido” na porta. Eu já ouvi algumas vezes declarações deste tipo: “quantas vezes me vi sendo pastor de minha mulher, presbítero de meus filhos, quando tudo o que eles queriam era o homem e o pai deles.”

Meus irmãos: Ser pastor não é fácil não. Eu não sou pastor, mas sou amigo de uma dezena ou mais. O que eu vejo é exercício constante de humildade no vigiar das atitudes e escolhas. É muito fácil ser dominado pelo orgulho e a soberba destrutiva após um belo sermão. É muito fácil se sentir acima da crítica e das tentações.

A Igreja brasileira enfrenta muitos problemas, mas é impossível viver sem Igreja. A congregação deve assumir a sua parcela de responsabilidade. Devemos ser bereianos e vigilantes, como fazemos por aqui (blogosfera), mas também devemos assumir a nossa parcela de responsabilidade na vida de nosso líderes.

Devemos orar pelos nossos pastores, motivá-los, ajudá-los, nos fazer presentes no bom e no ruim. Propondo servir, ao invés de sempre querer ser servido. E aos mais velhos da igreja, que assumam o seu papel de apoiar e ouvir o pastor em suas angústias. O pastor é gente também!

Vamos olhar para CRISTO e para a CRUZ, sempre. E diante dos erros, que todos nós cometemos, devemos ter apenas a Cruz no foco, lembrando que aquele a quem o Senhor confiou a tarefa de nós pastorear é HOMEM. 
 

domingo, 3 de outubro de 2010

Eleições 2010 e os aproveitadores da boa fé e da credulidade evangélica

Rev. Sandro Amadeu Cerveira (02/10/10)

Talvez eu tenha falhado como pastor nestas eleições. Digo isso porque estou com a impressão de ter feito pouco para desconstruir ou no pelo menos problematizar a onda de boataria e os posicionamentos "ungidos" de alguns caciques evangélicos. [1]

Talvez o mais grotesco tenham sido os emails e "vídeos" afirmando que votar em Dilma e no PT seria o mesmo que apoiar uma conspiração que mataria Dilma (por meios sobrenaturais) assim que fosse eleita e logo a seguir implantaria no Brasil uma ditadura comunista-luciferiana pelas mãos do filho de Michel Temer. Em outras o próprio Temer seria o satanista mor. Confesso que não respondi publicamente esse tipo de mensagem por acreditar que tamanha absurdo seria rejeitada pelo bom senso de meus irmãos evangélicos. Para além da "viagem" do conteúdo a absoluta falta de fontes e provas para estas "notícias" deveria ter levado (acreditei) as pessoas de boa fé a pelo menos desconfiar destas graves acusações infundadas. [2]

A candidata Marina Silva, uma evangélica da Assembléia de Deus, até onde se sabe sem qualquer mancha em sua biografia, também não saiu ilesa. Várias denominações evangélicas antes fervorosas defensoras de um "candidato evangélico" a presidência da república simplesmente ignoraram esta assembleiana de longa data.

Como se não bastasse, Marina foi também acusada pelo pastor Silas Malafaia de ser "dissimulada", "pior do que o ímpio" e defender, (segundo ele), um plebiscito sobre o aborto. Surpreende como um líder da inteligência de Malafaia declare seu apoio a Marina em um dia, mude de voto três dias depois e à apenas 6 dias das eleições desconheça as proposições de sua irmã na fé.

De fato Marina Silva afirmou (desde cedo na campanha, diga-se de passagem) que "casos de alta complexidade cultural, moral, social e espiritual como esses, (aborto e maconha) deveriam ser debatidos pela sociedade na forma de plebiscito" [3], mas de fato não disse que uma vez eleita ela convocaria esse plebiscito.

O mais surpreendentemente, porém foi o absoluto silêncio quanto ao candidato José Serra. O candidato tucano foi curiosamente poupado. Somente a campanha adversária lembrou que foi ele, Serra a trazer o aborto para dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) [4]. Enquanto ministro da saúde o candidato do PSDB assinou em 1998 a norma técnica do SUS ordenando regras para fazer abortos previstos em lei, até o 5º mês de gravidez [5]. Fiquei intrigado que nenhum colega pastor absolutamente contra o aborto tenha se dignado a me avisar desta "barbaridade".

Também foi de estranhar que nenhum pastor preocupado com a legalização das drogas tenha disparado uma enxurrada de-mails alertando os evangélicos de que o presidente de honra do PSDB, e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso defenda a descriminalização da posse de maconha para o consumo pessoal [6].

Por fim nem Malafaia, nem os boateiros de plantão tiveram interesse em dar visibilidade a noticia veiculada pelo jornal a Folha de São Paulo (Edição eletrônica de 21/06/10) nos alertando para o fato de que "O candidato do PSDB à Presidência, José Serra, afirmou nesta segunda-feira ser a favor da união civil e da adoção de crianças por casais homossexuais." [7]

Depois de tudo isso é razoável desconfiar que o problema não esteja realmente na posição que os candidatos tenham sobre o aborto, união civil e adoção de crianças por homossexuais ou ainda a descriminalização da maconha. Se o problema fosse realmente o comprometimento dos candidatos e seus partidos com as questões acima os líderes evangélicos que abominam estas propostas não teriam alternativa.

A única postura coerente seria então pregar o voto nulo, branco ou ainda a ausência justificada. Se tivessem realmente a coragem que aparentam em suas bravatas televisivas deveriam convocar um boicote às eleições. Um gigantesco protesto a-partidário denunciando o fato de que nenhum dos candidatos com chances de ser eleitos tenha realmente se comprometido de forma clara e inequívoca com os valores evangélicos. Fazer uma denuncia seletiva de quem esta comprometido com a "iniqüidade" é, no mínimo, desonesto.

Falar mal de candidato A e beneficiar B por tabela (sendo que B está igualmente comprometido com os mesmo "problemas") é muito fácil. Difícil é se arriscar num ato conseqüente de desobediência civil como fez Luther King quando entendeu que as leis de seu país eram iníquas.

Termino dizendo que não deixarei de votar nestas eleições.

Não o farei por ter alguma esperança de que o Estado brasileiro transforme nossos costumes e percepções morais em lei criminalizando o que consideramos pecado. Aliás tenho verdadeiro pavor de abrir esse precedente.

Não o farei porque acredite que a pessoa em quem votarei seja católica, cristã ou evangélica e isso vá "abençoar" o Brasil. Sei, como lembrou o apóstolo Paulo, que se agisse assim teria de sair do mundo.

Votarei consciente de que os temas aqui mencionados (união civil de pessoas do mesmo sexo, descriminalização do aborto, descriminalização de algumas drogas entre outras polêmicas) não serão resolvidos pelo presidente ou presidenta da república. Como qualquer pessoa informada sobre o tema, sei que assuntos assim devem ser discutidos pela sociedade civil, pelo legislativo e eventualmente pelo judiciário (como foi o caso da lei de biossegurança) [8] com serenidade e racionalidade.

Votarei na pessoa que acredito representa o melhor projeto político para o Brasil levando em conta outras questões (aparentemente esquecidas pelos lideres evangélicos presentes na mídia) tais como distribuição de renda, justiça social, direitos humanos, tratamento digno para os profissionais da educação, entre outros temas. (Ver Mateus 25: 31-46) Estas questões até podem não interessar aos líderes evangélicos e cristãos em geral que já ascenderam à classe média alta, mas certamente tem toda a relevância para nossos irmãos mais pobres.
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NOTAS
[1] As afirmações que faço ao longo deste texto estão baseadas em informações públicas e amplamente divulgadas pelos meios de comunicação. Apresento os links dos jornais e documentos utilizados para verificação.
[8] http://www.eclesia.com.br/revistadet1.asp?cod_artigos=206

fonte: http://www.segundaigreja.org.br/noticias_view.asp?id=340

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

ELEIÇÕES 2010 - UMA PALAVRA PASTORAL

Rev. Sandro Amadeu Cerveira*

 

Depois de muita cobertura pela imprensa, horário eleitoral, conversas ao pé do ouvido além de debates mais ou menos sem graça finalmente as eleições 2010 aconteceram. Durante a semana que antecedeu o pleito pensei muito sobre o que diria a minha igreja .

 

Não queria fazer uma pastoral "espiritualizada" chamando a oração pelos candidatos e eventuais eleitos. Isso é obrigação mais do que conhecida de todo cristão. Dizer o óbvio sobre um tema polêmico parece-me uma forma (algo sonsa) de fugir do assunto.

 

Por outro lado não me pareceu apropriado usar das prerrogativas e espaços do cargo de pastor para fazer a defesa dos candidatos(as) de minha preferência. Embora eu acredite que não seja possível não misturar religião e política (afinal somos seres atravessados por ambas as dimensões) isso não significa que essa "mistura" possa ser feita de qualquer jeito. Usar o púlpito como palanque ou fazer de conta que sou apolítico é, para mim, algo fora de cogitação. A título de exemplo cito um certo vídeo que circulou pela internet no qual um pastor diz que não vai dizer em quem os irmãos deveriam votar mas utiliza toda sua retórica (inclusive com dados e associações equivocadas) para ensinar sua congregação em quem não votar. Imagino que algumas pessoas tenham sentido que sua inteligência estava sendo insultada. Os que se interessarem em ler mais sobre esse episódio sugiro o editorial de Marcos Bomtempo (Revista Ultimato) que pode ser acessado em nossa página eletrônica da Segunda Igreja.

 

Que dizer então?

 

Por fim cheguei a conclusão de que a melhor coisa a fazer a partir de minha formação e do lugar que ocupo era dizer que devemos evitar tanto a sacralização da política como a instrumentalização política da religião.

 

Acredito que seja consensual que não se deve permitir a instrumentalização da igreja, da fé, dos símbolos e espaços sagrados pelo mundo da política. A espiritualidade pertence ao mundo da transcendência e seu uso com outros fins transforma o que deveria ser santo num arremedo sacrílego e nauseante. Jesus demonstrou isso quando expulsou os comerciantes do templo e pagou com sua vida por denunciar o aparelhamento político do judaísmo promovido pelos partidos religiosos de sua época. Para que possa cumprir seu papel profético e ser espaço genuíno de salvação a igreja não pode vender sua independência por um prato de lentilhas mesmo que elas venham misturadas com estações de tv, bancos para a igreja, telhados, dinheiro e cargos que entre outras benesses tanto fazem brilhar os olhos cobiçosos de alguns líderes religiosos.

 

 Por outro lado os efeitos de sacralizar a política, isto é querer e agir para que a política se transforme numa extensão da igreja, também pode ter efeitos perversos. O Estado tem como missão organizar o mundo dos homens garantindo a todos seus direitos fundamentais. Querer que o Estado faça o papel de igreja é atribuir uma função perigosa ao poder político. Não aprendemos nada com a história de Constantino? Não temos vergonha das execuções perpetradas por católicos e protestantes contra seus respectivos hereges? Não nos assustam os estados teocráticos contemporâneos que apedrejam mulheres apanhadas em adultério e punem severamente aqueles que se convertem a outra religião? Queremos mesmo incentivar essa lógica em nosso país? Atribuir ao Estado o papel de evangelizar, construir igrejas, ensinar religião, transformar em crime o que consideramos pecado é uma sacralização da instituição que detêm o monopólio do uso da violência legitimada que pode ter efeitos danosos de grandes proporções. Neste cenário ganha a religião dominante (que pode não ser a nossa) e perdem todos os demais.

 

Parafraseando o aposto Paulo, o político cuida das coisas desse mundo e não tem como não faze-lo. Aliás, é disso mesmo que se trata. Votar é um ato político e precisa ser pensado nessa perspectiva. Não estamos elegendo nossos líderes espirituais. Achar que eleições são oportunidades para "evangelizar" os políticos é contribuir (não importa se por ingenuidade ou má fé) para a profanação de nossos púlpitos e altares por candidatos oportunistas e lideres religiosos corruptos. Estamos elegendo homens e mulheres para que cuidem bem da parte terrena e "mundana" da criação de Deus. Isso já é muito.


* pastor da 2ª Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte