sexta-feira, 23 de julho de 2010

A diabolização do outro só para esconder o pecado!

Luiz Sayão
 
Quando acompanhamos o texto do Evangelho de Mateus discorrendo sobre a condenação de Jesus, falta-nos o fôlego. É muita injustiça e maldade. O texto é forte: “Os chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio estavam procurando um depoimento falso contra Jesus para que pudessem condená-lo à morte” (Mt 26.59). Alguns versículos adiante, a conclusão dos acusadores é sumária e cruel: “‘O que acham?’ ‘É réu de morte,’ responderam eles” (Mt 26.66). Como se diz na linguagem popular, é brincadeira?!

Não é difícil de captar o vetor orientador do julgamento de Jesus aqui. Qualquer que fossem suas palavras, sua prova de inocência, ele já era culpado para os seus acusadores. Esse padrão de perversidade do mal é marcado pela recusa de avaliação dos fatos e da verdade. É tecnicamente uma postura anticientífica! Não me interessam os fatos; eu já sei! A verdade cede espaço para a conveniência. Vale a pena observar a resposta dos fariseus dada a Jesus quando falavam sobre o ministério de João Batista em Mateus 21. Eles pensavam apenas em serem bem aceitos pelo povo. E responderam descaradamente: “Não sabemos” (Mt 21.27).

A grande pergunta que precisa ser levantada diante de tudo isso é por que os líderes religiosos, tão sábios e instruídos, fizeram isso. O que lhes cegou tanto? Como puderam perder o bom senso? A resposta é simples: foi o amor ao pecado e o desejo de escondê-lo. Jesus deixa isso claro em Mateus 23.13-15, quando os chama de hipócritas! A verdade é que o pecado e o desejo de escondê-lo produz uma loucura e uma cegueira na alma. Essa cegueira produz ódio e o desejo de destruição. O mecanismo psicológico, que brota da autodefesa, leva à “diabolização do outro”. O próprio Jesus foi equiparado a Belzebu pelos fariseus da época (Mt 12.24). Historicamente, isso tem produzido milhares e milhares de mortes e muita desgraça.

JOGO MANIQUEÍSTA

Transportados para um cenário mais amplo, o cenário da história, vamos encontrar muitos processos de “diabolização do outro”, geralmente motivados pelo pecado e pelo sentimento de culpa não trabalhado pela graça divina. Como isso tem produzido sofrimento e dor! Há uma espécie de jogo maniqueísta entre “bem-mal”. Muitas dessas polarizações maniqueístas foram bem conhecidas na história. Os judeus sofreram bastante com esse processo. Principalmente no ambiente católico medieval, nos pogroms da Rússia, na época da Inquisição e na Alemanha nazista, eles eram considerados culpados dos problemas da sociedade, e muitas vezes foram castigados e perseguidos injustamente. Os fatos não interessavam. Eles foram diabolizados! Os protestantes também foram diabolizados pelo catolicismo do século 16. A noite de São Bartolomeu ficou na história. Os protestantes devolveram na mesma moeda! Assim que o pensamento racionalista e humanista tomou conta do cenário europeu, foi a vez da cristandade ser diabolizada. Nietzsche deve estar se remexendo no caixão! Todos os problemas da sociedade ocidental têm origem na “ignorância” e no “absurdo conceito de culpa e de pecado” do cristianismo! Hoje, muitos cidadãos secularizados olham com desprezo para os “tolos e ignorantes” religiosos.

Os capitalistas norte-americanos diabolizaram todos os socialistas. Eram vistos como comunistas ateus, filhos de Stálin e Mao-Tsé-Tung.

A “barba” ainda é malvista entre muitos evangélicos, por ser considerada sinal de “apoio ao regime de Fidel Castro”. Já os esquerdistas latino-americanos “sabem” que a culpa dos problemas do mundo é dos Estados Unidos! Todos os americanos são imperialistas, perversos e merecem a morte! Muitos teólogos da libertação diabolizam os EUA e divinizam ditadores esquerdistas cruéis!

INTOLERÂNCIA ENRAIZADA

Nos tempos da Igreja Primitiva, principalmente sob a inspiração de Tertuliano, as mulheres foram bastante diabolizadas. A mulher é o diabo! Essa era a sugestão de muitos cristãos platônicos que transferiam seus pecados e tentações para o elemento feminino. Muitas “bruxas” morreram com base nesse “temor masculino perturbado”. Em nossos dias, a coisa mudou! Agora o homem é o diabo! A mulher é “mais sensível e menos corrupta”, afirmam muitas feministas. Os homens são agressores e violentos e, apesar de milhões de abortos e de crimes praticados por mulheres, o mito prossegue.

Talvez um dos maiores disseminadores desse processo de diabolização das últimas décadas foi o cinema americano. Quase sempre passou-se a idéia “de modo divertido” que os “alemães são frios e racistas”, “os russos são maus e perigosos”, “os italianos são bandidos e mafiosos”, “os chineses e japoneses são frios e maus”, “os latino-americanos são preguiçosos e corruptos”, “os africanos são selvagens e ignorantes”. O pressuposto é que o único “povo normal” é o norte-americano. A intolerância fica enraizada na mente do povo comum. É lamentável!

Essa tendência problemática é assustadora porque justifica a maldade em nome de Deus. O cenário de hoje começa a ficar muito perigoso por causa do crescimento dessa tendência. A direita norte-americana já definiu “o eixo do mal” a ser combatido.

Os radicais islâmicos convocam todos os muçulmanos para a batalha contra os “infiéis”. O mundo árabe é diabolizado pela maioria dos cristãos ocidentais. Os israelitas são diabolizados pelos árabes e pelos anti-semitas de plantão. Para onde iremos se prosseguirmos por esse caminho perverso? Não podemos cair na armadilha desse maniqueísmo escravo de interesses econômicos e políticos. A igreja não pode jamais justificar a violência em nome de Deus. Nem com supostas profecias! A nossa luta não é de natureza física.
O único caminho para resolver tal situação é o humilde arrependimento. É a busca sincera dos próprios erros e falhas. Se isso não acontece no íntimo do nosso ser, nós nos tornaremos vítimas de um processo psicológico perverso que já não raciocina mais, que não quer saber a verdade e que não conhece mais a palavra “ponderação”. Infelizmente, tais polarizações maniqueístas marcam o mundo evangélico. Calvinistas e arminianos, pentecostais e tradicionais, “conservadores e abertos”, modernos e antigos, são algumas dicotomias perigosas que nos têm levado a pecar. Muitos cristãos já diabolizaram seus próprios irmãos de fé! Até uma versão bíblica chega a ser diabolizada!

Está na hora de dar uma parada, meditar um pouco, vasculhar o interior, buscar a humildade e procurar os próprios erros, pois a grande verdade é que quando diabolizamos o outro sem qualquer convicção de nossos erros e limitações, nós o fazemos, apenas, para esconder o nosso próprio pecado!


Fonte: http://www.revistaenfoque.com.br/index.php?edicao=62&materia=544

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Luteranos pedem perdão aos menonitas

Stuttgart, quarta-feira, 21 de julho de 2010 (ALC) - A Assembléia da Federação Luterana Mundial (FLM) programou celebração na qual pedirá perdão a Deus e aos irmãos menonitas de tradição anabatista, pela perseguição que foram vítimas no século XVI. Anabatistas foram executados por seguidores do reformador Martim Lutero.

A Comissão Internacional de Estudos Luterana-Menonita (2005-2008) levantou essa parte dolorosa da história, conduzindo os luteranos ao reconhecimento das injustiças então cometidas e da falsa imagem construída sobre os anabatistas, que perdura até hoje.

Com base nesse estudo, o Conselho de FLM foi unânime em aprovar, na sua reunião de outubro de 2009, o encaminhamento do pedido de perdão aos menonitas, embora persistam diferenças teológicas entre as duas famílias denominacionais.

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domingo, 18 de julho de 2010

Jesus e os fariseus: uma análise de um sistema ético

Eduardo Ribeiro Mundim

Jesus e os fariseus têm um longo histórico de contendas. Certos trechos das Escrituras parecem transmitir, ao menos superficialmente, uma relação de quase-inimigos. É certo que disputas com eles serviram de pano de fundo, ou quadro, para diversos ensinos de Jesus. Igualmente correto é que entre os seus seguidores havia fariseus. Inquestionavelmente fariseus e escribas arquitetaram o falso julgamento, e a condenação, dEle à morte.

Como grupo dentro do judaísmo daquela época, sua origem pode remontar ao tempo de Esdras, e da construção do segundo templo. Eles parecem ter surgido como consequência do estupor provocado pelo exílio: como era possível para a raça dos filhos de Abraão, Isaac e Jacó amargarem o exílio? como era possível que das doze tribos, dez tenham desaparecido enquanto tais? A resposta, biblicamente enraizada, encontrada por eles, foi "não termos cumprido a lei" (Dt 28).

Impactos pela dura lição da realidade, diligentemente procuram um recurso para nunca mais caírem no mesmo erro. Cheios de desejo de fazerem a vontade de Deus, escrutinam a Lei e dela extraem regras para que jamais um judeu piedoso não tivesse referência sobre qual era a vontade expressa de Deus para uma determinada situação. Eles criam um sistema ético.

O evangelista Mateus, no capítulo 23, registra um dos embates mais duros entre Jesus e os fariseus. Duro por causa das palavras, explícitas: hipócritas não é um termo facilmente entendido como gentil ou caridoso. E Jesus o usa 7 a 8 vezes. Contudo, é importante atentar para os versos finais do capitulo (37-39): "Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados! Quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas... e tu não quiseste!" Parece a mim que neste momento Ele chora, porque as palavras ditas são de amor e carinho, de fragilidade e de cuidado para com o indefeso... Longe de chicotear os fariseus com sua força moral e a dureza das palavras, na melhor da tradição bíblica (Pv 3.12), Jesus procura corri-los, e a nós.

E não pode ser esquecido que o debate público, como este registrado pelo Evangelho, era recurso didático naquela época para ensinar e dirimir as dúvidas que existiam.

Jesus não inicia sua argumentação lançando ao lixo o sistema ético cunhado pelos fariseus. Ao contrário, de alguma forma Ele o chancela: "Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes dizem". O defeito não parece estar no sistema, mas na incongruência de quem o prega e mantem: "Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam." A atitude predominante era, ao final, de opressão e de ausência de solidariedade: "Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los."

A opressão e a ausência de solidariedade se materializam no escândalo condenado no verso 14: "Vocês devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações." Na contramão do que ensina do sermão do monte (Mt 6.7) os fariseus se comportam como se fosse pelo muito falar que seriam ouvidos, e não pela insistência da oração diligente (Lc 18.1-8). Também se esqueciam dos berros dos profetas: "Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes...Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras." (Am 5.21-23) e "não posso suportar a iniquidade e o ajuntamento solene!" (Is 1.13). Ao procurarem fazer a vontade de Deus, criaram hipocrisia, opressão e solidão.

E quais são as consequências deste sistema ético, puro nas suas intenções, incoerentemente posto na prática? No verso 13 Jesus lhes diz: "Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo." O testemunho do Reino tem efeito inverso ao desejado, e perverso, segundo o verso 15: "percorrem terra e mar para fazer um convertido e, quando conseguem, vocês o tornam duas vezes mais filho do inferno do que vocês." Este sistema ético mina e destrói o reflexo do Reino do qual deveria ser o mais perfeito espelho.

E Jesus aponta três prováveis causas para este projeto divino que fracassa em direção ao inferno.

Os fariseus de então perderam seus valores básicos: não é mais o sagrado que santifica, aquilo que vem do alto, superior a eles mesmos, mas apenas suas ações. O templo nada significa em si mesmo - ele é santificado pela oferta que nele é depositada! (Mt 23.16-22)

Perderam os valores básicos: o dízimo do mais insignificante detalhe é superior à justiça, à misericórdia e à fidelidade (Mt 23.23-24) Sim, o dízimo é para ser praticado, mas o resumo de toda a Lei é "'ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento" e "ame o seu próximo como a si mesmo" (Mt 22.36-40). Sobre estes dois pilares se desdobra a próxima etapa da relação humana vertical, entre seres humanos: justiça, misericórdia e fidelidade àquele que a tudo origina. Um sistema ético cristão não pode perder seu contato com sua origem, não pode perder a visão de sua base, não pode lançar fora os pilares da justiça e da misericórdia.

A segunda causa apontada por Jesus é perda da autocrítica (versos 29-32): "Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados, não teríamos tomado parte com eles no derramamento do sangue dos profetas". Sim, não teriam tomado parte, assim como nãotomarão parte na crucificação próxima de Jesus, que Ele mesmo lhes anuncia: "Acabem, pois, de encher a medida do pecado dos seus antepassados!".

E a terceira causa é mostrada logo nos primeiros versos (5-12): perderam a motivação real do sistema. O sistema ético farisaico existe apenas para lhes dar visibilidade e respeito, como um texto bem urdido, bonito de se ver, agradável aos ouvidos, mas para ser mantido longe da prática do dia a dia.

O resultado final da incongruência, do velamento do Reino de Deus, da perda dos valores básicos, da capacidade de autocrítica humilde e da motivação verdadeira, é o julgamento público dentro da ideia de que "as próprias pedras clamam". Alguns comentaristas apontam que a visão dos fariseus como sepulcros caiados (versos 25-28) era comum aquela época. Ou Jesus foi o iniciador da ironia, ou dela se apropriou, e, com o peso de Sua autoridade ímpar, lançou-lhes no rosto, em lágrimas, a zona de total descrédito que eles mesmos se colocaram.

Dentro do melhor estilo protestante, usar as Escrituras contra nós mesmos, pontuo quatro aplicações:
a) somos solidários com a grávida em dificuldades, sejam elas de que natureza forem, de modo que a alternativa ao aborto realmente exista, de modo executável, sem fantasias e "pé no chão?" O dono do espermatozoide é chamado, e amparado, ao exercício das suas responsabilidades?
b) somos solidários com aqueles que estão morrendo, amparando-os de modo profissional, a fim de que não exista a necessidade de se cogitar na eutanásia como recurso de reduzir o sofrimento?
c) somos impregnados pelo Evangelho a ponto de nos adaptarmos de forma saudável às limitações que podem (e elas acontecem) cair sobre nós, e que não podem ser revertidas (a chamada resiliência)?
d) como somos conhecidos por nossa ação no nosso meio profissional e social? e enquanto políticos? somos coerentes como sistema ético que livremente abraçamos em resposta ao amor de Deus?

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Reconciliação para superar a violência

Antonio Carlos Ribeiro


Belo Horizonte, quarta-feira, 14 de julho de 2010 (ALC) - A comunicóloga Magali do Nascimento Cunha, da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), apresentou palestra sobre Religião e violência: conflitos e contribuições à paz, refletindo sobre o conflito religioso e a violência, assunto que se insere no tema Religiões e paz mundial, do 23º Congresso Internacional da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter), reunido na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
A conferencista é doutora em ciências da comunicação, mestre em memória social, jornalista, professora de comunicação na Universidade Metodista de São Paulo e membro do Conselho Mundial de Igrejas.
Ela partiu da ideia de que os movimentos ecumênicos da atualidade surgem na esteira da proposta da Conferência Mundial de Missão, realizada em Edimburgo em 1910. Este é o momento de elaboração do germe do que é chamado de teologia das religiões, baseado na universalidade que marca a influência da cultura céltica. Neste contexto surgem esforços pela unidade visível dos cristãos, na busca pela paz entre povos cristãos, gerando reflexões que provocaram o surgimento de organismos ecumênicos, das ações diaconais e teológico-doutrinárias.

A professora assumiu como motivação a noção de memória de Cornelius Castoriadis, para quem o homem não existe para dizer o que é, mas para ser e fazer além do que é. Magali baseou-se na noção de ecumenismo com ênfase na paz e na vida, retomando o conceito de oikoumene, como tratado por Julio de Santa Ana no livro Ecumenismo e Libertação. Com isso, mostra as raízes, a partir das quais reflete sobre o movimento cristão pela paz e a justiça, e o esforço para superar conflitos religiosos e, após a Conferência de Edimburgo, como ação missionária.

No seu desenvolvimento, a noção de ecumenicidade apóia-se em Leibniz, o filosofo e matemático luterano, afirmando que o cristianismo deva ser compreendido como uma igreja universal que defenda e abrigue os sentidos da fé cristã. Daí se desenvolve uma preocupação com a vida e com a universalidade da fé. Isso fez crescer a preocupação com a intervenção e o testemunho cristão num mundo que começa a ser marcado por tensões.
Após a Conferência Mundial de Missão, realizada em Edimburgo, surgiram outros eventos, como a Conferência de Paz, de 1926, da qual participou o eclesiólogo católico Yves Congar. Em seguida, ocorreu também a Conferência de Paz 1929, em Praga, com a participação de 500 delegados. Esse encontro assumiu como afirmação categórica o "supremo dever da igreja cristã de lutar pelo desarmamento mental e moral dos povos em todos os países", observou a jornalista.
É nesse contexto político, social e religioso europeu, profundamente abalado pela Segunda Guerra Mundial (1939-45), que se desenvolveu a noção de responsabilidade social cristã frente ao mundo. A reflexão sobre o tema se torna a base para o surgimento do Conselho Mundial de Igrejas, em 1948. Em seguida, surgiu a Conferência Mundial sobre Igreja e Sociedade (Genebra, 1966), tendo como tema Paz e Justiça se beijam, na qual a América Latina esteve presente através do teólogo presbiteriano Richard Shaull.
Na etapa final da palestra, a professora concentrou-se na Década Ecumênica de Superação da Violência (2001-2010), que trouxe à tona a violência nas suas diversas formas: interpessoal, econômica, ambiental, militar, mostrando-se presente na sociedade, nas famílias e nas igrejas. Também tornou-se a primeira grande campanha de igrejas a afirmar com ênfase a reconciliação. O encerramento dessa década será celebrado na Jamaica em 2011.
A autora ressaltou questões candentes como a situação dos dalits (impuros), também conhecidos como intocáveis, na mesma esteira da qual surgiram as redes de defesa das pessoas com deficiência e o programa de acompanhamento do conflito entre palestinos e israelenses, propugnando pela paz com justiça e instituindo o Programa Kairos Palestina (www.eappi.org), com acompanhantes ecumênicos, em número de 100 por ano.
Ela concluiu sua fala referindo-se às questões da América Latina, para as quais recorreu à metáfora da tentativa de represamento do rio ecumênico, em que "as águas correm, fracas, mas correm". Reportou-se ao Projeto Brasil: nunca mais e, chegando à atualidade, denunciou o reforço do individualismo, do conservadorismo, da competição, do individualismo, que ganham forma no jogo de computador Guerra Espiritual, produzido e vendido pela Nintendo, que predomina na mídia cristã e é baseado na teologia do Reinado do Antigo Testamento, enfatizou.
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segunda-feira, 12 de julho de 2010

Das Heresias no “Louvor”

Robinson Cavalcante
Vamos fazer um exercício de honestidade intelectual e espiritual? Selecione 100 das mais populares músicas, “gospel” ou “não-gospel”, cantadas nas igrejas das mais diversas denominações protestantes. As mais populares pérolas da nossa Corinhologia.  Fez a Lista? Muito bem! Agora observe quantas delas um muçulmano não teria problema em cantá-las. Achou várias, não é? Agora veja quantas um judeu se sentiria à vontade entoando. São muitas, não é verdade? Continue com os espíritas kardecistas. Se o eixo das musicas é uma ode à Divindade (Deus, Pai, Senhor, Javé) e a recepção de bênçãos para quem canta, há muito de teísmo, de unitarismo, e os seguidores daquelas religiões não-cristãs não veriam problemas em seu canto, na realidade pan-religioso, mas que transmite muita “energia”, “luz”, “paz”.

Continue com a lista na mão, e procure aqueles em que há a palavra Jesus. Agora pense em nossos “parentes distantes” religiosos, das seitas para-cristãs: Mórmons, Testemunhas de Jeová, os da Ciência Cristã, ou os sincréticos como os do Santo Daime. Eles ficariam à vontade cantando essas músicas de um “Cristo genérico”? Numa boa. Ou seja, como o negócio é alimentar o subjetivo com sentimentos positivos, promover catarse e, até, transe, não há conteúdo doutrinário, com os pilares conceituais do Cristianismo bíblico, apostólico, ortodoxo. Por outro lado, aquelas músicas que falam de Jesus Cristo, cantadas nas igrejas protestantes, são adotadas, tranquilamente, por católicos romanos ou orientais, porque nelas não há nada de especificamente reformado.

Se não há musicas específicas para o Calendário Cristão (Advento, Natal, Quaresma, etc.), fica difícil harmonizá-las com os temas dos sermões, exatamente porque elas se destinam ao sentir e não ao pensar.

A rejeição aos Hinos históricos não se dá porque eles têm melodias “antiquadas”, mas porque eles são teologia cantada, o que é uma chatice... Ninguém está a fim de refletir, mas de curtir! Como uma igreja é a sua teologia, e é o que ela canta, estamos numa pior.

Mas, os pastores não estão nem aí, pois não querem contrariar a freguesia, nem atingir o que traz resultados. Enquanto isso, uma música recente, que fala em Zaqueu, era tocada em radiola de ficha no “Bar do Zé”, alternada com clássicos de Reginaldo Rossi, enquanto a galera prosseguia em seus exercícios lúdico-erótico-etílicos.

Canta meu povo!
Olinda (PE), 11 de julho de 2010

fonte: http://www.dar.org.br/bispo/50-artigos/1280--das-heresias-no-louvor-reflexao-episcopal.html

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A resposta de Deus ao mal

Eduardo Ribeiro Mundim

Há enigmas que, enquanto o Reino de Deus não vier em sua completa plenitude, permanecerão objeto das mais variadas especulações. E, honestamente, não sei se, frente à grandeza deste Reino (afinal, o apóstolo Paulo afirma que "Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam" - cf I Co 2.9) estaremos preocupados em buscar respostas às então velhas questões que nos aborreciam nos dias de hoje. Um deles é a presença constante do mal.

O mal acompanha o ser humano por onde quer que ele vá. É inescapável. Tanto pelas suas próprias ações, quanto pelas ações exteriores, os chamados "desastres naturais" (ainda que muitos possam ser, direta ou indiretamente, atribuídos a sua ação, outros seguramente não o são) atingem a todos, sem distinção facilmente perceptível.

Há diversas explicações, nenhuma satisfatória. Uma, baseada no livro da Antiga Aliança, propõe que o mal é resposta de Deus as ações inadequadas ou pecaminosas do homem. Raciocínio que remete a cada um de nós à infância, onde havia muito da relação boa ação = premiação e má ação = punição. Poderosa regressão, que transmite a subjetiva certeza de que o raciocínio está correto.

Contudo, Jesus adverte no Sermão da Montanha de que Deus Pai "faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos" (cf. Mt 5.45). Ele desafia a noção simplista de que todo (e este advérbio é que faz diferença) mal é punição. Sim, pode acontecer, e exemplos bíblicos não faltam. Mas há uma certa porção de mal distribuída a todos, indistintamente (aparentemente), sem que faça sentido muitas vezes. Por que Estêvão tinha de morrer? e o apóstolo Tiago? por que Paulo sofreu tanto no seu ministério*? por que boas pessoas, incluindo cristão verdadeiros, morrem em terremotos, tsunamis, enchentes, acidentes, doenças potencialmente curáveis...?

Outra explicação afirma que Deus aperfeiçoa seus filhos através do sofrimento. Ideia algo trágica...por que o crescimento em santidade e caráter somente pode ser moldado por graus extremos de sofrimento? Não seria moldado pelas pequenas (ao menos na superficialidade) dificuldades do cotidiano, sendo o mal maior apenas o efeito colateral de vivermos neste mundo que "jaz no maligno"? Contudo, as Escrituras afirmam que "o Senhor disciplina a quem ama, e castiga todo aquele a quem aceita como filho" (cf. Hb 12.6). Mas o contexto do versículo é a luta do cristão contra o pecado, sua busca de santificação, e não o mal...

Na oração do Pai Nosso Jesus ensina a orar suplicando para sermos livres do mal (cf Mt 6.13) e na sua oração na última ceia, intercedeu para que não fôssemos retirados do mundo, mas, sim, livres do mal (cf Jo 17.15). A oração dEle não é ouvida? Ou nós entendemos errado o significado da palavra "mal"?

A encarnação de Deus em Jesus me parece ser a única resposta adequada, mas insatisfatória frente ao nosso sofrimento. Ele se faz homem, e habita entre nós. Por livre e soberana decisão, opta por ser companheiro de seus compatriotas em todos os sofrimentos da época. E por livre e soberana decisão, tomada mesmo antes da criação do mundo, aceita ser vítima de injustiça: não foi julgado por um crime ou ofensa real, mas inventada - portanto, sua morte não foi consequência de suas ações humanamente falando. Identificando-se com nossa necessidade de redenção, aceita ser o sacrifício perfeito. Associando-se ao nosso sofrimento, sua execução não é rápida, mas lenta e dolorosa. Ele não sentiu todos os sofrimentos que somos capazes de experimentar, mas vivenciou duríssimas provas, tanto físicas como psicológicas e espirituais.

A resposta de Deus ao mal é solidariedade. É empatia. É estar junto. É oferecer ombro amigo. É oferecer compaixão. Não fala da origem, ou da razão, do mal. Mas combate-o da forma mais poderosa possível, destruindo a solidão, a falta de sentido, dando suporte firme as nossas fraquezas e temores.

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* cf II Co 11.23ss: entre outros, 195 açoites,1 apedrejamento, 3 naufrágios

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A visão cristã do Estado

Guilherme de Carvalho

"Ai dos que descem ao Egito em busca de socorro e se estribam em cavalos; que confiam em carros, porque são muitos, e em cavaleiros, porque são mui fortes, mas não atentam para o Santo de Israel, nem buscam ao SENHOR! Pois os egípcios são homens e não deuses; os seus cavalos, carne e não espírito. Quando o SENHOR estender a mão, cairão por terra tanto o auxiliador como o ajudado, e ambos juntamente serão consumidos." (Is 31.1,3)

Há uma perspectiva cristã do Estado? Há quem pense que o cristianismo não tem nada que ver com Estado - nem com política; que a religião não tem nada a ver com política. Não no sentido de que a religião não se mescle com a política, pois isso sim, acontece sempre, mas no sentido de que a religião não deveria se misturar com a política nem se intrometer em coisas de Estado. Alguns mais radicais sustentam, inclusive, que a verdadeira política é incompatível com a religião.

As razões para isso variam; uns pensam que a política poderia macular a pureza da religião; outros entendem que a religião é irracional e corrompe a racionalidade da boa política. De um jeito ou de outro, os dois lados podem até chegar a uma espécie de cessar fogo pragmático: "cada um no seu quadrado". Na igreja Deus é Jesus; na câmara, é o Estado.

Mas há quem realmente tome essa solução pragmática como princípio teológico/ideológico – que Jesus nos leva para o céu, e o Estado cuida de nós aqui na terra. Portanto o bom cristão deveria ver em um projeto de Estado secular a cura para as mazelas da sociedade.

Mas será isso possível? Que intenções têm o Estado moderno ao propor (ou impor) essa solução à religião? É possível identificar a política cristã com uma aceitação tranquila dessa ordem de coisas?

A política secular: religião em cárcere privado
Tomemos como referência aqui, um filósofo contemporâneo; um francês, (previsivelmente): Christian Delacampagne. Não porque ele seja muito importante no campo (não é), mas porque representa bem o tipo de mentalidade que pretendemos pôr em questão. Podemos nos sentir gratos pela sua formulação sucinta e clara do problema: "como o religioso, na sua ambição de constituir o 'laço' social por excelência (esse é o sentido do latim "religio"), pode coexistir com o político, cuja ambição é análoga?"1

Delacampagne tenta lidar seriamente com o problema, perguntando se o poder político "deve", e se "pode" se separar do poder religioso. A sua resposta à primeira questão é que ele deve se livrar da tutela religiosa, por uma questão de sobrevivência. Porque, segundo ele, a democracia depende, para funcionar, de uma abordagem pragmática das questões; um partido, por exemplo, deve representar os interesses de certo grupo, não uma verdade absoluta, que deva ser imposta a todos. A política seria um jogo, cujas regras excluem a universalidade, mas a religião, por sua natureza, não pode respeitar essas regras. Ela atua a partir de absolutos, não de considerações meramente pragmáticas. Com efeito, "Na medida em que considera o pluralismo desejável, como deve fazer se quiser ser democrático, o poder político deve opor-se à simples ideia de 'partido religioso', isto é – pois todas as religiões tendem a formar partidos desse gênero – opor-se à religião em geral.2"

Mas pode, a política, separar-se da religião? Sim, desde que ela delimite com clareza as duas esferas. Para o filósofo, temos uma esfera "privada" e uma esfera "pública", que ele define como "sociedade civil" ou Estado. O caminho, seguido pelo ocidente, foi o de "dar a extensão mais vasta possível à esfera 'pública' (incluindo progressivamente nela a maioria das atividades sociais, de maneira a subtraí-las à influência da religião)."3 O homem seria perfeitamente capaz de atingir a "virtude cívica" necessária para manter todo o espaço público funcionando bem, sem o auxílio da religião, que seria mantida na esfera da consciência individual.

E desde que a religião traz, dentro de si, a tendência de lutar para recuperar a sua "essência", ou "fundamento", é imperativo que ela seja mantida em seu devido lugar; do contrário, o fenômeno universal e periódico do fundamentalismo ameaçará a própria base do Estado Moderno, que seria, para Delacampagne, nada menos que "uma verdadeira separação entre o político e o religioso".4 Contra essas ameaças, ele enuncia seu "princípio regulador": "[...] que a tolerância mais ampla possível seja dada a todas as confissões – desde que nenhuma delas seja autorizada a intrometer-se no funcionamento das atividades sociais. Em resumo, desde que o Estado continue sendo a única instância capaz de determinar aquilo que, no interior do espaço público, é ou não legítimo.5"

O programa deste filósofo francês é claro como o meio-dia: a repressão da expressão pública da religião, e a garantia de sua manutenção na esfera privada, ou no cárcere privado, para sermos claros também. Mantendo esse "monstro" no cárcere, veremos a liberdade e a política florescerem na esfera pública...

Contra a idolatria política
Somente a admissão tácita de certa concepção totalista de Estado pode fazer alguém ler as palavras de Delacampagne sem perceber que há algo muito problemático em seu argumento. O filósofo supõe, em toda a discussão, uma identidade entre "esfera pública" e "Estado", "sociedade civil" e "Estado", o que é patentemente falso. O público, e o civil, não é o mesmo que "o político". Há uma diversidade de esferas além da esfera "privada" e da esfera "política": há a moralidade, a arte, a economia, a ciência e as relações de sangue. Essas esferas compõem o todo da vida social, mas são anteriores ao Estado, e não devem sua lógica interna ao Estado. A política e o Estado têm responsabilidade por apenas uma dimensão da vida pública, que é a da justiça. A dimensão da arte, por exemplo, é responsabilidade dos artistas e apreciadores da arte, e não do Estado.

Mas, como Delacampagne observou, o Estado Moderno se constituiu por meio de uma expansão na qual reprimiu a influência religiosa "da maioria das atividades sociais", por meio do controle de cada uma delas, para garantir a sua "laicidade" e eliminar nelas os absolutos religiosos.

É claro que tudo isso já estava embutido na primeira pergunta do autor: quem produz o laço social, por excelência? Pode a religião e a política conviverem, se tem a mesma ambição? Uma pergunta deliciosamente reveladora, ao pôr diante de nós a fantástica pretensão do Estado Moderno de se constituir no laço social por excelência, tragando as formas mais antigas de associação humana em seu divino estômago.

Então há, acima de qualquer dúvida, um conflito entre a política e a religião! Há, na medida em que a política deseja ser, ela mesma, a religião. O Estado Rousseauniano de Delacampagne, totalista e vigilante, cioso de sua secularidade, absoluta e indivisivelmente soberano, não passa de uma divindade concorrente com o Teísmo. A política laica de Delacampagne é mais uma das expressões da religião do humanismo secular, que pretende controlar cientificamente o homem, para garantir a sua liberdade – mesmo que, para tanto, tenha que torná-lo seu escravo.

A responsabilidade atribuída por Delacampagne ao Estado, de determinar sozinho o que é legítimo no espaço público, é absolutamente ridícula. Deverá o Estado decidir qual o método científico legítimo? E o que é arte? E qual a melhor ética sexual? Ou o que é e o que não é prejudicial à família? Ou se, afinal, precisamos de famílias? Pode-se, naturalmente, objetar que o termo "público", aqui, tem sentido restrito. Talvez, na mente do autor; mas não em seu argumento. De todo modo, o ponto é que o Estado, e a política, tem uma esfera própria, que é a esfera da justiça. Compete ao Estado a justiça pública, e o que for estritamente necessário à realização dessa justiça; e cabe à política a luta por sua representação e implementação adequada.

Essa forma de pensamento estatista me faz lembrar da saga fantástica "O Senhor dos Anéis", de Tolkien. A maldição da Terra Média estava na existência do um anel, que concentrava todo o poder. Os teóricos do Estado absoluto parecem não perceber – e isso fica maravilhosamente claro nas especulações de Delacampagne – que a religião, ironicamente, é uma indispensável salvaguarda à liberdade dos indivíduos e das diferentes esferas da sociedade, na medida em que fere Leviatã no próprio coração, desmascarando as pretensões teológicas do Estado de instaurar-se como Deus e Senhor da sociedade.

Uma política cristã existe, assim, tendo obrigações para com Deus e para com o homem. Para com Deus, é seu dever combater a idolatria política. Li, em certa ocasião, a declaração de um grupo de cristãos (do "MEP" – Movimento Evangélico Progressista), para os quais "a visão cristã do Estado é de que o Estado não deve ser cristão". Um princípio importante, embora excessivamente concordista com a modernidade. Adverte muito bem contra a forma errada de interagir com o Estado, mas nada diz sobre a forma justa. Tornou-se assim politicamente corretíssimo. Rousseau, Delacampagne, Dawkins e a ala anti-religiosa do PT diriam amém (talvez até um "glória a Deus").

Parodiando essa declaração, no entanto, eu diria que a visão cristã do Estado é, antes de tudo, que o Estado não deve ser Deus. A tarefa teológica da política cristã é a luta contra a idolatria política; é a luta pela reforma do Estado, para que ele se veja redimido de sua fome totalista, e se dedique à sua tarefa divinamente ordenada, é respeitando a soberania das outras esferas da sociedade.

Sem dúvida, isso não diz tudo sobre a visão cristã do Estado. A igreja tem uma tarefa teológica, de combater a idolatria política, mas também uma tarefa antropológica, de promover a justiça política; isso significa que uma política cristã precisa, sem dúvida nenhuma, educar o Estado para a justiça. Mas ela não poderá realizar essa tarefa se colocar os carros na frente dos bois: cumprir a segunda tábua da Lei, deixando de lado a primeira. Não: combata-se a idolatria, e então seguir-se-á a justiça.

O Brasil: um país Politicamente idólatra
No universo verde-e-amarelo florescem as condições adequadas a um Estado tirânico. Em 2002 ou 2003, eu tive a oportunidade de assistir a uma entrevista sobre a atitude política brasileira, veiculada pela Globo, do famoso antropólogo brasileiro Roberto da Matta, que à época já estava trabalhando como professor na universidade de Notre Dame, em Indiana. Da Matta, talvez sob o impacto da mudança cultural, fez uma breve comparação entre os norte-americanos e os brasileiros. Segundo ele, há uma nítida diferença de postura entre os dois povos; os americanos não constroem suas esperanças sobre o Estado; a sociedade civil é fortíssima, no sentido de que as pessoas se organizam de modo voluntário e quase automático para resolver seus problemas. O brasileiro, em contrapartida, raciocina em termos paternalistas, esperando que um "poder superior" solucione suas dificuldades sem que ele precise agir diretamente. Como exemplo, ele apontou a temática de certa escola de samba (já não me lembro qual), no carnaval daquele ano. O desfile inteiro apresentou as mazelas sociais do Brasil, denunciando a pobreza, a corrupção, etc; ao final, o último carro alegórico trazia uma imagem enorme de Lula, de braços abertos, representando a esperança para o futuro.

E, enquanto aguarda com expectativa a vinda do seu "Cristo Redentor" político, o brasileiro cruza os seus próprios braços. Quando alguém toma uma atitude e organiza algum projeto social, as pessoas dizem – pessoas do governo, empresários e cidadãos comuns – que a sociedade civil está entrando onde o Estado não está cumprindo o seu papel – ora, ninguém duvida de que o Estado Brasileiro não cumpre o seu papel, mas a tarefa de construir uma sociedade justa é da própria sociedade, não do Estado. O Estado é uma ferramenta do povo, não seu Pai.

Eu diria, bem ao contrário, que precisamos agir rápido, tomar a frente e desenvolver projetos de transformação em todas as áreas da vida brasileira, antes que o Estado tome o controle delas! Os cristãos precisam fazer isso, não só porque a soberania de Deus precisa encontrar expressão em cada esfera da vida brasileira, mas também por que somente assim a nossa obrigação política para com Deus será cumprida: a obrigação de desmascarar a idolatria política e combater as pretensões teológicas do Estado.

Alugar os egípcios?
Noutro dia desses a Norma Braga escreveu um provocativo texto para a Ultimato, intitulado Por que não sou de esquerda. Gerou muitas respostas indignadas. Bem, eu discordo de muita coisa que a Norma costuma dizer em suas defesas do conservadorismo. As razões são compreensíveis para quem já leu algo do que publicamos sobre cristianismo e sociedade aqui na Ultimato.

Mas há um ponto em que a Norma está certíssima, e sei que vou exasperar meus amigos socialistas, do tipo que se sente atraído de um jeito ou de outro por ideais Rousseaunianos: sim, o Estado não é o Messias. Sim, o capitalismo é idólatra. Não, não podemos alugar os egípcios para nos livrar dos assírios. Chamar o Estado para nos salvar do mercado também é idolatria. Pura e simples idolatria.

É claro que o Estado deve zelar pela justiça pública. É claro que deve intervir quando o sistema econômico se torna injusto. Mas o Estado não deve deter em suas mãos o projeto nacional. Porque o Estado não é o país; o Estado não é a sociedade; sua soberania é limitada e não vem do povo, mas de Deus. E o mais essencial na visão cristã do Estado é exatamente que o Estado não é Deus, nem deve cobiçar o seu trono.

Vamos esperar em Jesus Cristo. E que ele nos salve dos assírios, dos egípcios e dos israelitas que confiam na cavalaria de Faraó.

Notas
1. Delacampagne, Christian, A Filosofia Política Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 31.
2. Ibid, p. 34.
3. Ibid, p. 35.
4. Ibid, p. 39.
5. Ibid, p. 41.


• Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, é obreiro de L'Abri no Brasil e presidente da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares. É também organizador e autor de Cosmovisão Cristã e Transformação e membro da associação Christians in Science (CiS). guilhermedecarvalho.blogspot.com

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Ouvidos tapados, olhos fechados

Karl Heinz Kienitz

Em 1884, vinte anos antes de receber o Prêmio Nobel de Física, Lord Rayleigh dizia ao plenário da 54a Reunião da Associação Britânica para o Avanço da Ciência: "Muitas pessoas excelentes temem a ciência como tendendo ao materialismo. Não é surpreendente que tal apreensão exista, pois, infelizmente, há escritores, falando em nome da ciência, que se fixaram a fomentá-la. É verdade que entre os homens de ciência, como em outros ramos, pontos de vista pouco refletidos podem ser encontrados a respeito das coisas mais profundas da natureza; mas que as crenças professadas por Newton, Faraday e Maxwell toda uma vida seriam incompatíveis com o hábito científico da mente é, sem dúvida, uma proposição que eu não preciso me delongar em refutar".

De Rayleigh até hoje cientistas de renome têm reiterado a compatibilidade de fé cristã e ciência. Para Max Planck, "religião e ciência natural combatem unidos numa batalha incessante contra o ceticismo e o dogmatismo, contra a descrença e a superstição. E a palavra de ordem nesta luta sempre foi e para todo sempre será: em direção a Deus!". Em outra oportunidade Planck foi ainda mais incisivo: "A prova mais imediata da compatibilidade entre religião e ciência natural, mesmo sob análise detalhada e crítica, é o fato histórico de que justamente os maiores cientistas de todos os tempos, homens como Kepler, Newton, Leibniz, estavam imbuídos de profunda religiosidade". Muitos outros nobéis, como Mott, Townes, Penzias, Schawlow e Phillips expressaram-se de forma semelhante.

No entanto, mais de um século após a palestra de Lord Rayleigh, persiste a situação por ele mencionada. Como evidência tupiniquim, confira-se uma recente entrevista feita com Marina Silva, candidata à presidência da república ("Época", edição 627, 24/05/2010). Uma das perguntas foi: "Como a senhora lida com a contradição entre ciência e religião?". A hipótese está enunciada de forma inequívoca. Independe do que a entrevistada teria a dizer, ou pior, independe do que os cientistas citados acima têm dito sobre o assunto há séculos. Em sua pergunta, a jornalista elevou a (imaginária) contradição entre ciência e religião à condição de verdade absoluta, fato incontestável.

Rodney Stark, professor de sociologia da Baylor University, apresenta uma possível explicação para atitudes como a da entrevistadora de Marina Silva. Um conflito entre fé e ciência tem sido "o principal dispositivo polêmico usado no ataque ateu contra a fé... afirmações falsas sobre religião e ciência têm sido usadas como armas na batalha para 'libertar' a mente humana dos 'grilhões da fé'. A verdade é que não há inerente conflito entre religião e ciência. De fato a realidade fundamental é que a teologia cristã foi essencial para a acensão da ciência".

A explicação alternativa à de Stark é a de que o formador de opinião engajado na difusão do imaginário conflito desconhece Kepler, Newton, Leibniz, Rayleigh, Planck, Mott, Townes, Penzias, Schawlow, Phillips e suas manifestações sobre a compatibilidade de fé e ciência. Infelizmente tal desconhecimento só é possível se esse formador de opinião não fizer corretamente seu trabalho de pesquisa ou "se fingir de morto" diante do vasto material disponível sobre o assunto, o que novamente implicaria motivações pouco louváveis. Enquanto isto, mentiras sobre fé cristã e ciência continuam a ser impingidas ao público.

Seja como for, os Newtons, Rayleighs e Plancks têm sido amplamente ignorados – muitas vezes deliberadamente – quando o assunto é fé e ciência. Isto me faz lembrar de uma frase de Jesus, na qual ele se refere ao assunto ignorância deliberada: "Eles taparam os ouvidos e fecharam os olhos. Se eles não tivessem feito isso, os seus olhos poderiam ver, e os seus ouvidos poderiam ouvir; a sua mente poderia entender, e eles voltariam para mim, e eu os curaria!" (Mt 13.15). Assim, para reverter o quadro é necessário destapar os ouvidos e abrir os olhos. Simples, não?


• Karl Heinz Kienitz recebeu o doutorado em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica Federal de Zurique, Suíça. É professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica em São José dos Campos. Karl mantém uma página na internet sobre fé e ciência no endereço www.freewebs.com/kienitz.

fonte: Revista Ultimato, http://www.ultimato.com.br/?pg=show_conteudo&util=1&categoria=5&registro=1317