Num fim de tarde de domingo, comecei a cascavilhar, nos sítios e blogs da vida virtual, informações sobre a indigesta relação entre a igreja evangélica e as facções beligerantes à época da malfadada e tenebrosa quartelada de 1º de abril de 1964. Gosto de ler sobre determinados temas assim, de bate pronto, sem nenhuma programação anterior, a título de brainstorming individual. Como diria Riobaldo, “todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade”.
Foram textos para todos os gostos, de todos os matizes político-ideológicos existentes em nosso meio. Um dos mais célebres é o ensaio “V
erdades e mentiras sobre o Golpe de 1964, a Ditadura Militar e a postura dos evangélicos à época”, de autoria do pastor assembleiano Silas Daniel, bastante replicado na blogosfera e ainda incompleto, onde o autor procura justificar o posicionamento assumido pelos crentes de direita ao apoiarem o governo dos generais. Repleto de citações de aliados dos militares, e sem nenhuma oitiva dos integrantes do outro lado, o autor delimita bem a sua posição pró-golpe.
Do lado oposto, as substanciosas matérias “
A vida nos anos de chumbo”, da revista Cristianismo Hoje, e “
A fé debaixo dos coturnos”, da sua congênere Eclésia, relatam o alinhamento automático de boa parte dos clérigos evangélicos brasileiros com as atrocidades praticadas pela repressão civil-militar, as perseguições e traições dentro das igrejas (contexto no qual os metodistas são apontados como a única denominação brasileira a pedir perdão pelos pecados praticados por seus membros em prol da repressão) e o contubérnio macarthista entre os ditadores de plantão e quase todas as grandes confissões protestantes, que também resultou na tortura e morte de muitos cristãos da época.
O término dessa leitura me fez constatar uma realidade triste, desoladora mesmo: os evangélicos não souberam escapar da polarização daninha estabelecida na sociedade da época. Naquele período de radicalização política estéril, consequência direta da Guerra Fria, a mesma polarização alcançou a igreja de forma avassaladora. Anos-luz antes de João Alexandre compor “É proibido pensar”, os cristãos dos anos 60 e 70 se guiaram por essa lógica: aderiram a esquemas seculares prontos e acabados, sem questioná-los e sem submete-los, de maneira séria, ao crivo da Palavra de Deus.
À mesma conclusão chegou o Rev. Alderi Souza de Matos, historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil, que assim se expressou na matéria da Cristianismo Hoje:
Havia muito radicalismo, muito extremismo. Na minha avaliação houve excessos de ambas as partes: tanto dos conservadores, que se apossaram do poder na igreja, quanto da oposição, vinculada ao movimento social, ao ecumenismo e ao liberalismo teológico. (…) Era uma época de muita tensão, confrontação, polêmica e polarização; não era fácil alcançar equilíbrio.
É evidente que os resultados foram desastrosos: de um lado, os puristas, defendendo um salutar retorno à ortodoxia, mas com a perversa contrapartida de perseguir os dissidentes, ao invés de chamá-los para o diálogo e a admoestação, além de compactuarem com os ditadores, que violaram a hierarquia militar e usaram a máquina estatal para matar e torturar milhares de concidadãos. Do outro, os liberais e esquerdistas, que se esforçaram por revelar as iniquidades do regime de exceção, mas se esqueceram da obediência à Palavra, enredando-se em heresias frontalmente opostas à Bíblia, como o ecumenismo inter-religioso mais deslavado, adotado, inclusive, como pressuposto teológico pela Igreja Presbiteriana Unida do Brasil.
Mais triste é perceber que esse quadro perdura até hoje, pois a alienação do período ditatorial trouxe pelo menos dois efeitos perniciosos à Noiva de Cristo. Um, a continuação desse esquema conservador podre, que estourou nos episódios vergonhosos de manipulação política em que nos vimos enredados nas Eleições de 2010. O outro, consequência do primeiro, foi o enfraquecimento da coesão interna em torno de temas mais importantes que os deste século (fortalecimento do ensino teológico, prática integral da diaconia, crescimento da obra missionária), o que levou a um afrouxamento do combate à apostasia e ao surgimento e posterior explosão demográfica das igrejas desviantes pseudo-pentecostais, às expensas da paralisia da verdadeira Igreja.
Pessoalmente, sou admirador dos dois bandos contendores, mas não posso deixar de analisar, à luz da Bíblia, sua vivência cristã capenga: os ortodoxos amavam a Deus sobre todas as coisas, mas odiavam o próximo que não pensava igual; os liberais foram sal da terra e luz do mundo ao derrotar política e moralmente a ditadura opressora, mas abraçaram heresias de perdição (2Pe 2:1).
Esta pode até ser considerada uma visão particular do contexto histórico da época, mas procura ao menos ser bíblica. O Nosso Deus não está ao lado de partidos ou facções predeterminados. Reduzi-lo a isso é tentar sistematizá-lo em categorias humanas, o que é impossível, além de ser uma grosseira ofensa Àquele que não faz acepção de pessoas (Ef 6:9). Antes de qualquer coisa, submetemo-nos ao primado da Palavra de Deus, o que não nos impede de tomarmos partido na luta política, à esquerda, à direita ou ao centro, sempre tendo em mente o cuidado de contrastear todas e cada uma das ideias que nossos partidos preferidos defendem ao que o Pai nos fala através do Livro dos Livros, rejeitando aquelas que entrem em confronto com as verdades eternas.
Não é essa, porém, a lógica que guia o pensamento majoritário da liderança eclesiástica tupiniquim, que se orienta por um pensamento meramente utilitarista, o qual encontra eco na membresia de maneira acrítica e irrefletida. Pouco importa se a Constituição de 1946, vigente à época, foi rasgada, os direitos e garantias individuais, abolidos, se pastores e líderes foram despojados ou jubilados sumariamente, se membros foram delatados aos verdugos do DOI-Codi pelos próprios “irmãos” de fé, etc., etc. e etc. O que vale é que Gizuiz (royalties para o Danilo Fernandes) nos livrou da “hidra vermelha”, que só existia na cabeça de alguns. A Bíblia? Ora, a Bíblia...
O fato é que, até hoje, muitos irmãos caem na esparrela reacionária de que o Golpe de 64 e a repressão que se seguiu dentro e fora das igrejas foram males necessários para evitar o florescimento de um regime comunista ateu em nosso país, ou mesmo para expurgar o ambiente eclesiástico de livres pensadores heréticos e descompromissados com a verdade.
Nada pode ser mais falso do que uma interpretação rasa como essa. Aos fatos: o governo de João Goulart caiu por ferir interesses poderosos, a saber, de empresas multinacionais, empresários brasileiros e governo norte-americano, os mesmos que levaram Vargas ao suicídio, e ambos, juntamente com Leonel Brizola, todos estancieiros ricos e capitalistas rurais fervorosos, eram apenas sensatos: queriam salvar nosso capitalismo de araque, dependente químico das benesses estatais, de sua própria ineficiência. Algo que Lula fez eficientemente em seus dois quadriênios, nos quais a igreja não só foi suficientemente livre para pregar seus múltiplos evangelhos (o autêntico e os falsificados), como também o foi para se opor às iniciativas que tendem à restrição de nossa liberdade de culto, a exemplo do PLC 122, além de meter os pés pelas mãos em 2010, caindo na lábia conservadora da máquina de difamações do PSDB paulista.
No que concerne à igreja, o argumento também é despropositado, e por dois motivos:
1) Jesus descreve em Mateus 18:15-17 o procedimento para se combater individualmente o erro no ambiente eclesiástico: “Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão; mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda a palavra seja confirmada. E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano”. O iter é longo e ponderado, obedecendo a uma rigorosa gradação, justamente para evitar precipitações e injustiças. O que os adeptos de Jeová Cerol (mais royalties para o Danilo Fernandes) fizeram foi justamente trazer a última etapa descrita pelo Salvador para o início do processo, acusando, mentindo, assassinando reputações, enxovalhando pessoas em nome da ortodoxia, ou melhor, da ortodoxolatria. Ora, um crente em Jesus jamais deveria adotar os métodos da Inquisição romanista para perseguir seus iguais. Tal sabedoria, cheia de amarga inveja e sentimento faccioso, como bem sustenta Tiago, é “terrena, animal e diabólica” (Tg 3:15).
2) A Igreja Militante não deve compactuar com quaisquer violações à Palavra de Deus, em primeiro lugar, e ao ordenamento jurídico nacional, nem se guiar pela lógica pragmática mundana do “mal necessário”, que também atende pela alcunha de “os fins justificam os meios”. Na Bíblia Sagrada, tanto os meios quanto os fins devem guardar uma escrupulosa relação com a vontade soberana de Deus para o homem. Ou seja, não se justifica o cometimento de um ou mais pecados para se defender a fé ou a sociedade. Essa mentalidade pragmática com aparência de piedade só pode ser oriunda da mente do próprio Satanás, que a urdiu para melhor atrair os fariseus e integristas para a sua ciranda.
O chamado de Deus é para o equilíbrio. Davi nos lembra, no Salmo 83, como deve ser a postura e um servo de Deus diante de fatos como esses: “A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram. A verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus (Sl 83:10-11)”. Após ler este texto, Carlos Drummond de Andrade o resumiu de maneira autêntica: “o outro nome da paz é justiça”. Quase nunca conseguiremos ser imparciais em nossa existência terrena, mas temos a obrigação de sermos isentos e honestos em nossas análises. Se conseguirmos agir de tal forma, o Reino de Deus, que é “justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo (Rm 14:17)”, formado por irmãos tão diferentes em matéria de pensamento, mas unidos pela sujeição a um Deus amoroso e amantes da Sua Santa Palavra, construirá uma igreja limpa dos fermentos ideológicos, concentrada em fazer discípulos, batalhar pela fé e ser sal e luz, dando ao mundo uma ligeira, mas efetiva demonstração do que será o Milênio de Cristo.
Devemos, enfim, ser bereanos também em matéria de política, pois os engodos e cantos de sereia dos dois extremos do espectro ideológico foram (e são) sobremodo sedutores para os incautos. Inclusive os da direita, quase esquecida, tão pouco criticada, mas acostumada a lançar mão da brutalidade, física ou não, para manter o status quo, além de ser hábil em confundir os interesses mais vis de sua vã filosofia com os ensinamentos do Nazareno, o que acaba nos “presenteando” com os Olavos de Carvalho e Júlios Severos da vida.
Thiago Lima Barros é Diácono da Igreja Bíblica Nova Aliança (Maceió/AL), Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas e servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas.