domingo, 28 de abril de 2013

O Banho de Lágrimas


Eduardo Ribeiro Mundim

Esta história (Lc 7.36-50) tem três principais personagens, e um secundário: Jesus, o profeta; a mulher, a pecadora; Simão, o fariseu; as pessoas à volta, em número ignorado. Os primeiros têm um relacionamento triangular, com duas faces. Abertamente a mulher e o se relacionam, de diferentes maneiras e com expectativas divergentes, com Jesus. Mas há uma interação sutil entre a pecadora e o guardião da moral, que Jesus, para o bem de todos, e causando dor, expõe ao público de então, e aos leitores de todas as épocas.


O Contexto

O evento provavelmente ocorre nos primeiros tempos do ministério de Jesus, na região da Galileia “dos gentios”. Assumindo que Lucas mantenha uma ordem cronológica, àquela altura Jesus já não era um desconhecido. Sua interpretação do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré resultou na sua expulsão e quase execução; havia pronunciado seu programa ministerial, o “Sermão da Montanha”, onde delineou as atitudes esperadas dos seus discípulos em contraste com as dos que não são seus discípulos e os pilares éticos do Reino – chamou os ouvintes a uma “contracultura”. E não só de palavras a sua fama se difundira: expulsara demônios, curara face a face (a sogra de Pedro, um leproso, um paralítico), curara à distância (o servo do centurião em Cafarnaum), devolvera o falecido filho de uma viúva à vida em Naim. Isto sem contar os milagres não registrados.

A “contracultura” que apresentava, e o Seu papel especial na nova aliança, interferia na prática religiosa pública do judaísmo de então: o sábado não era um fim em si mesmo e os seus discípulos não jejuavam como os de João Batista. A cunha inserida por este, separando os publicanos e os fariseus, também foi acentuada por Jesus. Uns, sinceramente arrependidos, buscavam um batismo que fosse a expressão pública desta mudança de vida; outros, cientes da tradição, da Lei e dos Profetas, foram advertidos com franqueza:

Pois veio João Batista, que jejua e não bebe vinho, e vocês dizem: “Ele tem demônio”. Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e vocês dizem: “Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores”.

E, um pouco antes, o Evangelista registra esta cisão:

Todo o povo, até os publicanos, ouvindo as palavras de Jesus, reconheceram que o caminho de Deus era justo, sendo batizados por João. Mas os fariseus e peritos da lei rejeitaram o propósito de Deus para eles, não sendo batizados por João.

Jesus, portanto, não era um desconhecido. Seu ensino já se espalhara, assim como as notícias dos sinais e prodígios que efetuara, bem como o reconhecimento do caráter excepcional da autoridade da Sua palavra.


Simão, o fariseu

Os fariseus acompanharam Jesus durante todo o seu ministério, às vezes com simpatia, às vezes com beligerância explícita. Ainda que, como classe, não fossem abastados como os saduceus, havia muitos economicamente favorecidos. Um destes, o convida para jantar. Só não é anônimo porque Lucas lhe cita o nome ao registrar o diálogo ocorrido.

Qual a razão do convite? O texto não esclarece, nem o contexto. Mas algumas inferências são possíveis. Por exemplo: a refeição foi um evento razoavelmente público, pois uma mulher anônima tomou conhecimento do fato; a casa parece que estava aberta às várias pessoas, pois esta aparentemente não enfrentou dificuldades para nela entrar; é razoável supor que havia os convidados e a plateia curiosa e talvez sedenta de notícias sociais.

Também é razoável supor que o anfitrião não parecia estar completamente à vontade no evento, pois por qual razão ele foi um tanto quanto rude, à vista de todos? Segundo Jesus, diversas convenções sociais não foram respeitadas por ele. Itens mínimos de conforto foram negados ou não ofertados: água para lavar os pés e perfume para refrescar o corpo. Tão pouco o cumprimento social do beijo, o correspondente ao moderno apertar as mãos, fora realizado. Qual a razão de tal falta de traquejo social?

Há um evidente contraste com outra refeição, na casa de um publicano, Zaqueu. Refeição esta onde Jesus, apesar de ter se convidado, foi recebido com festa e alegria por parte daquele chefe de cobradores de impostos.

Parece razoável supor que Simão o convidara sem muito regozijo; talvez tenha “sobrado para ele” aquela tarefa, que tratou de desempenhar da melhor maneira possível, por um lado, mas com mensagens do seu desagrado, subliminares, do outro.

Sua avaliação da atitude de Jesus para com a mulher revela que ele não estava seduzido pela mensagem renovadora pregada pela simples existência de Jesus. E sua antipatia disfarçada é trazida à tona pelo seu pensamento conclusivo: “Se este homem fosse profeta, saberia...”

Simão tem um roteiro em sua mente, e uma certeza lhe governa o coração. O verdadeiro profeta não se mistura, mantém cerimonialmente (?!) puro; não é admissível o contato entre a pureza da palavra divina e o ser humano pecador.

Simão tem ideias preconcebidas que lhe são caras, e mesmo os milagres realizados e o ensino repleto de autoridade não são suficientes para fazê-lo rever seus conceitos. Talvez, inconscientemente, ele quebrasse o primeiro mandamento da Lei de Moisés, idolatrando-os.

Mas, plenamente consciente, Simão faz uma distinção clara e cortante a respeito da sua moralidade e pecaminosidade. A mulher não deveria tocar em Jesus, se Ele fosse profeta, pois definitivamente era uma “pecadora”, “mulher de má fama” - seja lá o que isto signifique. Seria ela uma prostituta comum, ou uma prostituta cultual? Uma adúltera, ou sexualmente promíscua? Ladra? Fofoqueira? Mas ele se encontrava em um nível bem acima, pois lhe era lícito convidar um profeta para cear com ele, não pecador. Sua atitude lembra a parábola posteriormente transmitida por Jesus, que fala do publicano que não tem coragem de entrar no templo, nem de levantar os olhos ao céu, e que apenas reza pedindo para que Deus tenha dele misericórdia, por ser pecador; e do fariseu que, postado o mais próximo possível do altar, faz uma oração de louvor agradecendo a Deus por não ser...como aquele pecador lá na porta.

Simão se aproxima de Jesus cônscio de ser o juiz qualificado sobre o caráter de quem se diz profeta, e seguro de sua relação com Deus – nada Lhe deve.


A pecadora

É uma mulher anônima que se aproxima de Jesus. Seu nome não é citado. Mas a história que ela cria atravessa gerações, firmemente ancorada no Evangelho. É uma história incômoda, que seria melhor fosse uma parábola ou uma metáfora, pois assim questionaria menos, confrontaria menos. É uma história que somente pode ser integralmente compreendida se nos aproximarmos dela a partir do sofrimento desta mulher, vivenciando em nós mesmos a forte emoção nela presente.

Interessante que nosso Deus não escolheu Se revelar através de um tratado de teologia sistemática ou dogmática. Ele se dá a conhecer para nós através de histórias que Ele mesmo cria e conduz – a parte expositiva da Revelação habitualmente está atrelada à vida. E não tem limites. Não foi a um profeta que disse “vai, toma uma mulher de prostituições, e filhos de prostituição”? Sim, Simão, o cuidadoso fariseu, esqueceu-se que Oseias pregou através do relacionamento íntimo com uma “mulher da má fama”...

O grau de humilhação que esta mulher assume é constrangedor. Não conheço se era culturalmente aceito o seu gesto, de modo a nada existir de embaraçoso.

Como foi possível a Jesus aceitar que ela tomasse as atitudes que tomou? Quem Ele era, afinal, para permitir tão grande servilidade? Conseguimos imaginar Ganhdi neste papel? Ou Desmond Tutu? Ou Chico Xavier?

Não nos enganemos. Ao aceitar o ritual dela, Ele proclama, silenciosamente, ser este ritual, e a sua motivação, plenamente adequados a Ele. Que tipo de homem faria isto?

As ruas daquela época, principalmente nas cidades do interior, eram de terra. Sandálias, o calçado mais comum. Simão não ofereceu a Jesus água para que lavasse os pés. Portanto, a mulher estava banhando pés sujos com a poeira e terra de um dia inteiro. E se ela os enxugava, é porque, provavelmente, as lágrimas eram copiosas. Seriam tantas assim a ponto de lavar eficazmente dois pés imundos? E ela os secava com os próprios cabelos – transferindo, talvez, parte da sujeira que as gotas dos seus olhos não eram suficientes para limpar. Seus cabelos, longos, devem ter ficado sujos. Estaria ela, inconscientemente, ao sujá-los, confessando suas culpas e, ao limpá-los, confessando Sua pureza? Ao final, após limpos, ela os perfuma e beija incessantemente.

Nada há no texto que sugira ser ela uma lunática. O único juízo a respeito do seu caráter era ser ela “de má fama”, “pecadora”.

Publicamente ela se humilha aos pés de Jesus.

Ela dEle se aproxima com plena consciência do seu pecado, de sua impossibilidade de agradar a Deus ou ao Seu profeta. Ela sabe da mensagem, de primeira ou de segunda mão; ela sabe dos sinais e prodígios realizados, que correram céleres à frente dEle. Ela sabe ser juíza de si mesma, reconhece sua indignidade frente a “contracultura” pregada e confessa ver em Jesus o mensageiro habilitado a restaurá-la aos olhos de Deus. Ela nada tem de bom e Ele é a fonte do bem que necessita.


Jesus, o Profeta

Simão não dá crédito a Jesus, enquanto profeta. Mas seu coração deve ter parado quando Jesus lhe dirige a palavra e ele a ouve, com um “mestre” apenas polido o suficiente. Percebe que Jesus o conhece mais do que ele gostaria. Descobre-se preso na parábola contada, onde a resposta imediata é óbvia. E Jesus expõe ao público a interação silenciosa e inconsciente entre a mulher e o fariseu.

Um denário era o equivalente monetário de um dia de trabalho braçal. Portanto, ambos os devedores tinha grandes débitos: 50 dias brutos de trabalho um, 1 ano e 5 meses de trabalho bruto, o outro. O credor, magnânimo, apenas porque lhe foi do seu interesse perdoar, cancela-lhes as dívidas.

A mulher era, sem dúvida aos olhos de todos, a que mais devia.

Para ser justo, talvez não somente Simão tenha pensado o que pensou, mas diversos outros também.

A parábola somente tem sentido no contexto em que Jesus a usou, e ela explica as frases finais. Os pecados dela são perdoados não em função das atitudes servis que tomou, mas porque ela reconheceu em Jesus aquele que poderia perdoá-la e, antes disto, aquele que poderia escutar sua confissão e desejo de mudança. Suas lágrimas, seu cabelo talvez enlameado, os pés beijados e perfumados, são expressões do que lhe ocorria no interior: culpa, confissão, gratidão e entrega. Suas atitudes são consequência, e não causa.

E Jesus proclama a si mesmo como tendo autoridade de perdoar os pecados alheios; proclama ser correto que as pessoas se aproximem dEle como aquela pessoa se aproximara.

O triângulo se fecha. Um homem específico, em um momento específico da história, arroga-se com tranquilidade e poder o direito de direcionar a vida das pessoas, de receber os mais pessoais e profundos votos de lealdade e dedicação servil. Há duas maneiras de nos aproximarmos dEle: que o Senhor nos auxilie para que nos aproximemos da forma correta.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Homofobia ou ágape?

Como se sabe, o “ágape” aparece na Bíblia em vários lugares. Aparece no sermão da montanha, quando Jesus constata, referindo-se ao dinheiro e às riquezas, e não a pessoas: “Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (Mt 6.24).
 
Mas os exemplos de um amor ativo e construtivo são ainda mais abundantes na Bíblia. Em João, vemos Cristo exortando os seus discípulos dizendo: “Como o Pai me amou, assim eu os amei; permaneçam no meu amor” (Jo 15.9).
 
Aparece na carta de Paulo aos Coríntios, principalmente no trecho de 1 Cor. 13 que, de tão famoso virou música popular no Brasil, o hino ao amor, que começa: “Ainda que [...]”, e segue: “sem amor [...]”.
 
Será que isso também se aplica à nossa atitude em relação aos homossexuais? Mas o que é “homofobia”? Como se sabe “fobia” significa “medo”, “pavor”, no sentido de “repulsa”.
 
Voltemos à Bíblia. Em 1 João, somos instruídos sobre o “mistério” de toda a vida e espiritualidade cristãs: “Assim conhecemos o amor que Deus tem por nós e confiamos nesse amor. Deus é amor. Todo aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele” (1 Jo 4.16).
 
Mais adiante, em 1 João ainda, diz-se sobre o medo que o amor é seu antídoto: “No amor não há medo; pelo contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1 João 4.18, grifos meus).
 
Ou seja, somos advertidos de que as atitudes de medo revelam a falta do verdadeiro e autêntico amor cristão.
 
Mas o trecho que considero mais importante é quando perguntaram a Jesus, qual ele achava ser o maior mandamento de todos, e ele responde: “‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’ e ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’” (Lc 10.27).
 
Muitos cristãos têm se escandalizado ultimamente com a legalização de casamentos entre pessoas homoafetivas. Por outro lado, muitos não cristãos (e cristãos, como eu), se escandalizaram com as palavras homofóbicas daquele deputado e pastor Marco Feliciano, que gerou tanta polêmica no país (que até se esqueceu de assuntos tão mais urgentes quanto os “finalmentes” do mensalão). Mas qual lado está certo?
 
Quer um cristão apoie o movimento gay, quer seja contra ou esteja em cima do muro, uma coisa é certa: temos que amá-los (las) de todo o nosso coração, sem acepção de pessoas. Foi isso que Jesus ensinou e é isso que temos que fazer diante das polêmicas. Acontece que muito cristão não vê as árvores em meio ao bosque. E parte para uma justiça do tipo “olho por olho” ou “com as próprias mãos”.
 
Isso está errado, e quem comete esse tipo de erro deve desculpas às vítimas dos seus preconceitos. Então, não é questão de “lado a tomar”, mas da expressão de amor para com aqueles que “Deus amou primeiro”.
 
Isso não quer dizer que o cristão deve dizer que “está tudo liberado”. Ou ser conivente com algum comportamento que a Bíblia desaprova. Não. Sabemos muito bem o que a Bíblia diz sobre a sexualidade (ou ao menos, espera-se que um cristão saiba).
 
Isso me faz lembrar um especialista em educação quando dizia em um programa televisivo: “Sexo não é questão de opção, como se escolhe uma roupa para vestir, como fazem crer muitos chavões sobre a homossexualidade, que tem confundido a cabeça de crianças e adolescentes”. E temos que ser muito firmes nessa abordagem.
 
Mas temos que cuidar para não jogar o bebê com a água do banho. O bebê, no caso, é a pessoa, cuja dignidade está acima de qualquer lei moral, pelo simples fato de ser criatura de Deus. É simples assim, ainda que extremamente complicado para nós, humanos, praticarmos. Em todo o caso, está em nossas mãos, pela graça que nos foi dada, dar um exemplo de equilíbrio e sabedoria à sociedade.

Gabriele Greggersen
É mestre e doutora em educação (USP) e doutoranda em estudos da tradução (UFSC). É autora de O Senhor dos Anéis: da fantasia à ética e tradutora de Um Ano com C.S. Lewis e Deus em Questão. Costuma se identificar como missionária no mundo acadêmico. É criadora e editora do site www.cslewis.com.br
 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

SOBRE A IGREJA EVANGÉLICA, O DEPUTADO MARCO FELICIANO, A COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS E A DEMOCRACIA BRASILEIRA

O Conselho Coordenador da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil – CC-IPU torna público seu pronunciamento a respeito da recente discussão em torno da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados ocupada pelo deputado Marco Feliciano.

Este pronunciamento é consequência do coerente histórico desta igreja, herdeira da Reforma Protestante, ramo presbiteriano originário do trabalho missionário do Reverendo Ashbel Green Simonton, em 1859, fundador do presbiterianismo no Brasil. A IPU se originou de homens e mulheres, pastores e leigos sob a perseguição eclesiástica e política instaurada no Brasil a partir da década de 1960, que ceifou vidas de pastores e de leigos ministros religiosos e eclesianos. Dentre seus membros de primeira hora, conta-se o Reverendo Jaime Wright, defensor incondicional dos direitos humanos e participante do projeto “Brasil: Nunca Mais”, junto com Dom Paulo Evaristo Arns.
Em vista desses fatos, o CC-IPU:

1 - Afirma:
• A democracia representativa é a forma de governo que melhor se aproxima do ideal em um mundo desequilibrado e injusto;
• É essencial o respeito às instituições democráticas, que só o serão se reguladas por legislação justa, equilibrada e sensata;
• Não ser compatível com a democracia o cerceamento da palavra e o uso da violência física ou verbal;
• A todos os políticos eleitos cabe o direito de exercer o mandato em sua plenitude, trabalhando dentro das responsabilidades que lhes forem outorgadas por voto popular e dos seus pares.

2 - Esclarece à sociedade em geral:
• Que a igreja protestante, mais conhecida pelo termo “evangélica”, é um dos três grandes ramos da Igreja de Jesus Cristo, composta por todos/as aqueles/as que O reconhecem como Senhor e Salvador. Este ramo nasceu com a Reforma do século XVI, que fez originar uma ampla diversidade de comunidades de fé autônomas, que, paralelamente às semelhanças, têm posturas teológicas divergentes em assuntos não centrais;
• Que não há, no Brasil, nenhuma entidade ou associação que represente ou fale em nome de todas as igrejas descendentes da Reforma e que não há nenhum político nem bloco de políticos, em especial o chamado “Bloco Evangélico”, autorizado a se pronunciar em nome da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil – IPU ou do conjunto dos/as cristãos/ãs protestantes.

3 - Defende:
• Que o/a cristão/ã que aceita o mandato político, deve fazê-lo em benefício do bem comum e não por seu interesse pessoal ou de suas próprias estruturas eclesiásticas, o que lamentavelmente não se pode verificar nas chamadas operações Sanguessuga, Entre Irmãos e Pandora, nas quais se verificou a presença de deputados intitulados evangélicos;
• Que a ética cristã deve ser explicada e proposta democraticamente como alternativa e jamais imposta, pois, para o cristão, ela é uma consequência natural de sua opção religiosa, do novo nascimento, livremente abraçada como resposta à Graça divina;
• Que os princípios religiosos das diversas igrejas cristãs devem ser respeitados e suas cerimônias litúrgicas devam ser imunes à interferência estatal ou de pessoas alheias a estes princípios e que seus ministros religiosos não venham a ser vítimas da violência de agirem contra suas próprias consciências.

4 – Alerta:
• Que o deputado Marco Feliciano defende uma agenda política própria, que interessa a um grupo restrito de brasileiros, muitos deles denominados evangélicos;
• Que, embora qualquer deputado tenha o direito de exercer a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, considera-o sem condições políticas para o pleno exercício deste cargo;
• Que, não obstante reconheça que o eleitorado do deputado Marco Feliciano seja composto por evangélicos, nega que ele, ou qualquer político, bloco parlamentar ou partido, represente todos os evangélicos brasileiros e lamenta seu despreparo teológico, vergonhosamente demonstrado na sua defesa da interpretação da origem dos povos africanos e no desconhecimento e desrespeito aos direitos das minorias.

O CC-IPU conclama o povo de Deus que se reúne nesta igreja que se una em oração e esforços, para que tenhamos uma sociedade brasileira justa, em que todos os cidadãos e cidadãs tenham seus direitos e liberdades individuais respeitados e que, cada vez mais, pelo nosso testemunho de verdadeiro amor cristão, mais e mais vidas venham ao pleno conhecimento da Verdade, a saber Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Este Pronunciamento poderá ser revisto ou revogado pela Assembleia Geral da IPU.

Vitória/ES, 19 de abril de 2013.

 
Presbª Anita Sue Wright Torres – Moderadora
Rev. Dagoberto Santos Pereira – Vice-Moderador
Presb. Wertson Brasil de Souza – 1º Secretário
Rev. Luciano Fuly – 2º Secretário
Presb. Obadias Alves Ferreira - Tesoureiro

terça-feira, 16 de abril de 2013

“Caso Marco Feliciano”: um paradigma na relação religião-mídia-política no Brasil

Texto: Profa. Dra. Magali do Nascimento Cunha – UMESP

Nestes meses de março e abril de 2013 temos lido, ouvido e assistido a um episódio sem precedentes no Congresso Nacional, que coloca em evidência a relação religião-política-mídia. Em 5 de março foi anunciada pelo Partido Socialista Cristão (PSC), a indicação do membro de sua bancada o pastor evangélico deputado federal Marco Feliciano (SP) como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (CDH). Foram imediatas as reações de grupos pela causa dos Direitos Humanos ao nome de Marco Feliciano, com a alegação de que o deputado era conhecido em espaços midiáticos por declarações discriminatórias em relação a pessoas negras e a homossexuais.  O PSC se defendeu dizendo que seguiu um protocolo que lhe deu o direito de indicar a presidência dessa comissão, um processo que estava dentro dos trâmites da democracia tal como estabelecida no Parlamento brasileiro. Isto, certamente, é fonte de reflexões, em especial quanto ao porquê da defesa dos Direitos Humanos ser colocada pelos grandes partidos como “moeda de troca barata”, como bem expôs Renato Janine Ribeiro em artigo publicado no Observatório da Imprensa (n. 740, 2/4/2013). Soma-se a isto o fato de o deputado indicado e o seu partido não apresentarem qualquer histórico de envolvimento com a causa dos Direitos Humanos que os qualificassem para o posto.

O que tem chamado a atenção neste caso, e que é objeto desta reflexão, é a “bola de neve” que ele provocou a partir das reações ao nome do deputado, formada por protestos públicos da parte de diversos segmentos da sociedade civil,  mais a criação de uma frente parlamentar de oposição à eleição de Feliciano, e pelo estabelecimento de uma guerra religiosa entre evangélicos e ativistas do movimento de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT), e entre evangélicos e não-cristãos. E esta bola de neve é produto de fatores que se apresentam para além da CDH, e a expõem como um elemento a mais no complexo quadro da relação entre religião e sociedade no Brasil. Pensemos um pouco sobre estes fatores; vamos elencar quatro.

1. A reconfiguração do lugar dos evangélicos na política
Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira Bancada Evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se mete em política” construída com base na separação igreja-mundo foi sepultada. A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”.

Depois de altos e baixos em termos numéricos, decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo, a bancada evangélica se consolidou como força no Congresso Nacional, o que resultou na criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) em 2004, ampliada nas eleições de 2010 para 73 congressistas, de 17 igrejas diferentes, 13 delas pentecostais. Os parlamentares evangélicos não são identificados como conservadores, do ponto de vista sociopolítico e econômico, como o é a Maioria Moral nos Estados Unidos, por exemplo. Seus projetos raramente interferem na ordem social e se revertem em “praças da Bíblia”, criação de feriados para concorrer com os católicos, benefícios para templos. Basta conferir o perfil dos partidos aos quais a maioria dos políticos evangélicos está afiliada e os recorrentes casos de fisiologismo.
Mais recentemente é o forte tradicionalismo moral que tem marcado a atuação da  FPE, que trouxe para si o mandato da defesa da família e da moral cristã contra a plataforma dos movimentos feministas e de homossexuais, valendo-se de alianças até mesmo com parlamentares católicos tradicionalistas, diálogo impensável no campo eclesiástico.

Os números do Censo 2010 são fonte para a demanda de legitimidade social entre os evangélicos, e certamente de conquista de mais espaço de influência. Estudos mostram que desde 2002, período da legislatura em que a FPE foi criada, a cada eleição, o número de evangélicos no Parlamento (Câmara e Senado) aumenta em torno de 30% do total anterior. A estimativa, mantido este índice, é de chegarem a 100 cadeiras em 2014, o que representaria em torno de 20% das 513 do Congresso, refletindo a representatividade dos evangélicos no Brasil revelada pelo Censo 2010. Este é um projeto cada vez mais nítido deste segmento social que certamente visa, como os demais grupos políticos, muito mais do que cadeiras no Congresso, mas também presidências de comissões e de ministérios relevantes (para além do único atual tímido Ministério da Pesca, sob a liderança do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo Crivela).

A polêmica com Marco Feliciano deixa este projeto em evidência, já que não só uma presidência inédita de comissão foi alcançada, mas também maior visibilidade aos evangélicos na política e ao próprio PSC, que tem o nome “Cristão”, mas sempre se caracterizou como um partido de aluguel para quem desejasse candidatura independentemente de confissão de fé. Pelo fato de estar nas manchetes durante semanas, o PSC já prevê que Feliciano, eleito com 212 mil votos por São Paulo em 2010, se tornará um “campeão de votos” nas próximas eleições, podendo atingir um milhão de votos, e ainda alavancará a candidatura do pastor Everaldo Pereira (PSC/SP) a presidente da República. Aliado de Marco Feliciano, o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, figura sempre presente nas mídias, declarou: “Se o Feliciano tiver menos de 400 mil votos na próxima eleição, eu estou mudando de nome”.

Mais uma vez, é possível afirmar que a cada novo episódio, a relação evangélicos- política é dinâmica complexa que inclui disputas por poder e hegemonia no campo religioso, ambição dos políticos que veem no pragmatismo dos evangélicos fonte para suas barganhas de campanha, concorrência de grupos que competem por poder sociopolítico e econômico como as empresas de mídia, como veremos adiante.

2. O conservadorismo de Marco Feliciano e de seus “soldados”
A imagem dos “evangélicos” foi construída fundamentalmente com base na identidade de dois grupos de cristãos não-católicos:  os protestantes de diferentes confissões que chegaram ao Brasil por meio de missões dos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século XIX, e os pentecostais, que aportaram em terras brasileiras na primeira década do século XX, vindos daquele mesmo país. Esta imagem sempre mostrou ao Brasil um segmento cristão predominantemente conservador teologicamente, marcado por um fundamentalismo bíblico, um dualismo que separava a igreja do “mundo”/a sociedade e um anticatolicismo.

Desta forma, não é surpresa que um pastor evangélico, no caso Marco Feliciano, reproduza em seus sermões modernos e de forte apelo emocional, uma abordagem teológica tão antiga como a que embasa a ideologia racista, por meio da leitura fundamentalista de textos do Gênesis que contêm a narrativa da descendência de Noé. Também não é surpresa que Marco Feliciano conduza sua reflexão teológica por meio de bases que justifiquem a existência de um Deus Guerreiro e Belicoso, que tem ao seu redor anjos vingadores, que destrói do Titanic a John Lenon ou aos Mamonas Assassinas, continuando o que já fazia com os povos africanos herdeiros do filho de Noé, e que, nesta linha, certamente fará aos que assumem e apregoam o homossexualismo. Menos surpreendente é ainda que o líder religioso reaja a quem lhe faz oposição ou tenha posição diferente da sua classificando-o como agente do diabo e assim foram sinalizadas a própria formação anterior da Comissão de Direitos Humanos e celebridades como o cantor Caetano Veloso.

Quem se surpreende com o que Feliciano diz e com o apoio que ele recebe de diversos segmentos evangélicos desconhece o DNA deste grupo. Não há nada de novo aqui. O que há é maior visibilidade pela projeção que a mídia religiosa e não-religiosa têm dado a este discurso. Em 2010, por exemplo,  o pastor estadunidense  Pat Robertson, dono de um canal de televisão, declarou que o trágico terremoto no Haiti naquele ano era consequência de um pacto dos haitianos com o diabo no passado para se tornarem independentes da França. A declaração de Robertson, amplamente veiculada, provocou manifestações contrárias em todo o mundo. As palavras de Marco Feliciano no Brasil de 2013 são apenas o eco da mesma teologia.

Há algo novo, sim, neste processo, relacionado à articulação dos apoios a Feliciano que coloca em evidência o conservadorismo, antes atribuído mais diretamente aos evangélicos, que reflete uma tendência forte na sociedade brasileira de um modo geral.

É nesse contexto que o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), suplente da CDH, afirmou que se sente como “irmão” do presidente da comissão. “Como capitão do Exército, sou um soldado do Feliciano”, declarou Bolsonaro, em matérias divulgadas pelas mídias em 27 de março, e acrescentou: “A agenda antes era outra, de uma minoria que não tinha nada a ver. Hoje, representamos as verdadeiras minorias. Acredito no Feliciano, de coração. Até parece que ele é meu irmão de muito tempo. Não sinto mais aquele cheiro esquisito que tinha aqui dentro e aquele peso nas costas. Aqui, era uma comissão que era voltada contra os interesses humanos, contra os interesses das crianças e contra os interesses da família. Agora, essa comissão está no caminho certo. Parabéns, Feliciano”.

O deputado Bolsonaro tem um histórico de posicionamentos racistas e de conflito com ativistas sociais e militantes de movimentos gays. Em novembro de 2011, ele chegou a pedir, da tribuna da Câmara, à presidente Dilma Rousseff  para que ela assumisse se gostava de homossexuais.  Em março do mesmo ano, respondeu que “não discutiria promiscuidade” ao ser questionado em um programa de TV pela cantora Preta Gil sobre como reagiria caso o filho namorasse uma mulher negra.

No campo das igrejas, o já citado pastor Silas Malafaia, conhecido por polêmicas midiáticas desde a campanha presidencial de 2010, se alistou nas fileiras do deputado Feliciano e se tornou seu árduo defensor e colaborador desde o início da controvérsia da presidência da CDH. Até a Igreja Católica, explícita em suas posições quanto à ampliação de direitos civis de homossexuais, mas clássico “inimigo” dos evangélicos, é colocada por Feliciano na lista de aliados. Em entrevista à TV Folha-UOL (2/4/2013), o deputado explicitou: “Tenho alguns contatos com algumas pessoas da CNBB, mas com os grandes líderes do movimento católico não tive contato até porque quase não tenho tempo. Acredito que, nesse momento, todos eles me conhecem até porque o que eu sofro hoje de perseguição dado ao movimento LGBT, a Igreja Católica sofre isso no mundo todo. Inclusive, o novo papa, o papa Francisco, na Argentina quase foi linchado por esse grupo. Então, nós temos algumas coisas que, acredito, nos fazem pensar igual.(…) Eu fiquei feliz por termos ali um papa que ainda é bem ortodoxo, é bem conservador e que prima por aquilo eu acredito também, que a família é a base da sociedade. Aliás, a família é antes da sociedade”.

Estas alianças estão produzindo efeitos até na qualidade do discurso de Marco Feliciano. Os benefícios proporcionados pela aproximação com lideranças mais experientes ficam evidentes nas mudanças no discurso do deputado como: “Só saio da presidência da CDH morto” para “Só saio da presidência da CDH se os deputados condenados pelo julgamento do mensalão, José Genoíno e João Paulo Cunha, deixarem a Comissão de Constituição e Justiça”. Com isso, Feliciano atraiu para si a simpatia da mídia que se fartou na cobertura do julgamento do Superior Tribunal de Justiça e de segmentos conservadores, que, embora não concordem com seu nome na presidência da CDH, querem “a cabeça” dos condenados. Feliciano usa uma controvérsia ética para justificar a controvérsia de sua própria eleição – a CDH como moeda de troca partidária.

Alianças do religioso com o não-religioso formando exércitos que marcham em defesa da moral e dos bons costumes – em defesa da família – não é algo novo no Brasil, mas é bastante novo no espaço político que envolve os evangélicos e suas conquistas na esfera pública. Em matéria na Folha de São Paulo, de 7/4/2013, o diretor do instituto de pesquisa Datafolha, Mauro Paulino, declarou que o discurso de Feliciano atinge preocupações de parte da população: “Entre os brasileiros, 14% se posicionam na extrema direita. As aparições na imprensa dão esse efeito de conferir notoriedade a ele.” Isto significa que apesar dos tantos slogans divulgados em manifestações presenciais e nas redes sociais – “Feliciano não me representa” – Feliciano, Bolsonaro e tantos outros são eleitos e ganham espaço e legitimidade. Portanto, há quem se sinta representado, sim, não somente do ponto de vista da popularidade mas do peso das articulações ideológicas em curso na sociedade brasileira.

3. Inimigos, um componente do imaginário evangélico
Exércitos precisam de inimigos. A teologia de um Deus Guerreiro e Belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade da identificação de inimigos a serem combatidos. Historicamente a Igreja Católica Romana sempre foi identificadas como tal e sempre foi combatida no campo simbólico mas também no físico-geográfico. Da mesma forma as religiões afro-brasileiras também ocupam este lugar, especialmente, no imaginário dos grupos pentecostais.

Periodicamente, estes “inimigos” restritos ao campo religioso perdem força quando ou se renovam, como é o caso da Igreja Católica, a partir dos anos de 1960, ou quando aparecem outros que trazem ameaças mais amplas. Assim foram interpretados os comunistas no período da guerra fria no mundo e da ditadura militar. Há também um imperativo imaginário de se atualizar os combates, quando a insistência em determinados grupos leva a um desgaste da guerra. Durante o processo de redemocratização brasileira nos anos 80, o espaço que vinha sendo conquistado pelo Partido dos Trabalhadores, interpretado como nítido representante do perigo comunista, foi reconhecido como ameaça e campanhas evangélicas contra o PT reverberaram de forma religiosa o que se expunha nas trincheiras da política.

Com o enfraquecimento do ideal comunista nos anos 90 e com o PT chegando ao poder nacional com o apoio dos próprios evangélicos, a força das construções ideológicas estadunidenses abriu lugar à atenção à ameaça islâmica e houve algum espaço entre evangélicos no Brasil para discursos de combate ao islam. No entanto, como esta ameaça está bem distante da realidade brasileira – não se configura um inimigo tão perigoso nestas terras -, emerge,  mais uma vez, o imperativo de se atualizar os combates. Não mais catolicismo, nem comunismo, não tanto islamismo… quem se configuraria como novo inimigo?  Desta vez, um inimigo contra a religião e seus princípios, contra a Bíblia, contra Deus, contra o Brasil e as famílias: o homossexualismo.
Declarações de Marco Feliciano na mídia noticiosa expressam bem este espírito belicoso: “É um assunto tão podre! Toda vez que se fala de sexo entre pessoas do mesmo sexo ninguém quer colocar a mão, porque é podre. Por causa disso, um grupo de 2% da população – os gays – consegue se levantar e oprimir uma nação com 90% de cristãos, entre católicos e evangélicos, e até pessoas que não têm religião, mas que primam pelo bem-estar da família, pelo curso natural das coisas” (Rede Brasil Atual, 1/3/2013). “Existe uma ditadura chamada (…) “gayzista”. Eles querem impor o seu estilo de vida e a sua condição sobre mim. E eles lutam contra a minha liberdade de pensamento  e de expressão. Eles lutam pela liberdade sexual deles. Só que antes da liberdade sexual deles, que é secundária, tem que ser permitida a minha liberdade intelectual. A minha liberdade de expressão. Eu posso pensar. Se tirarem o meu poder de pensar, eu não vivo. Eu vegeto e morro”. (TV Folha-UOL, 2/4/2013).

Consequência da eleição de inimigos e do combate a eles é o discurso de que há uma perseguição a quem se faz contrário, promovida pelo maior inimigo de Deus, Satanás. Esta ideia está claramente presente em afirmações de Feliciano como: “Eu morro, mas não abandono minha fé”; “A situação está tomando dimensões muito estranhas. É assustador, estou me sentindo perseguido como aquela cubana lá. Como é o nome? A Yoani Sánchez”; “Se é para gritar, tem um povo que sabe o que é grito. [...] Nós (evangélicos) sabemos qual é o poder da nossa fé.”

A insistência da mídia noticiosa em enfatizar a guerra Feliciano-homossexuais, com o lado “inimigo” representado por um deputado, na mesma condição do primeiro, Jean Wyllys (PSOL/RJ), ativista do movimento LGBT, só faz reforçar a reconstrução do imaginário evangélico da guerra aos inimigos e da perseguição consequente. Isso tem gerado manifestações diversas de apoio a Feliciano entre evangélicos dos mais diferentes segmentos e ações como a da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), realizada em Brasília neste abril, que aprovou uma moção de apoio a Feliciano, aprovada em votação simbólica por unanimidade. Feliciano agradeceu o apoio dizendo que “nunca houve uma comissão com tanta oração. Os pastores estão orando pela minha vida e pela comissão. Venceremos esta batalha”.

Há ainda uma explosão de postagens em nas mídias digitais, em especial nas redes sociais. Por exemplo, uma montagem com foto de Marco Feliciano com uma faixa presidencial tem sido veiculada por usuários do Facebook, e, na primeira semana de abril já havia superado a marca de 65 mil compartilhamentos. A campanha pede que favoráveis à candidatura do pastor à presidência da República em 2014 compartilhem a imagem para demonstrar força nas redes sociais: “Campanha urgente: Marco Feliciano presidente do Brasil”, diz o texto.

Uma segunda imagem com comparações entre Marco Feliciano e Jean Wyllys  também veiculada no Facebook, já havia superado 100 mil compartilhamentos em meados de abril, registrando mais de 7,5 mil comentários. Na imagem, há dados sobre o número de votos de cada um dos deputados, além de comparações entre as bandeiras políticas defendidas por cada um deles. A imagem quando compartilhada revela declarações pessoais de quem “curtiu” com texto que manifesta apoio ao pastor Feliciano: “Eu sou cristão, a favor da democracia, da vida e da família brasileira. Marco Feliciano me representa”.
A declaração de Silas Malafaia à Folha de São Paulo (7/4/2013) sobre a repercussão do caso entre os evangélicos e simpatizantes reflete bem este espírito: “Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014″.

Toda e qualquer análise e ação em torno da presença dos evangélicos nas mídias e na política não pode ignorar esta dimensão do imaginário da necessidade da criação de inimigos e da consequente perseguição. Isto é característico de religiões numericamente não-majoritárias, sendo portanto, fruto, entre outros aspectos, do caráter minoritário da presença evangélica em terras brasileiras.

4. As transformações e as revelações na relação mídia-religião
O histórico da presença evangélicas nas mídias não-religiosas no Brasil revela a hegemonia católica-romana que vem pouco a pouco sendo diminuída por conta do espaço que os evangélicos vêm conquistando na esfera pública. Enquanto católicos sempre apareceram para expressar sua fé nas datas clássicas do calendário religioso e para se manifestar sobre temas amplos, à exceção dos casos controversos inevitáveis como a pedofilia praticada por clérigos, cuidadosamente tratados, evangélicos tinham espaço garantido quando se tratava de escândalos de corrupção ou situações bizarras.
Na última década, a expressiva representatividade dos evangélicos no país com o consequente declínio do catolicismo, e a ampliação de sua presença nas mídias e na política, torna este segmento não só visível mas um alvo mercadológico. As mídias passam a prestar a atenção no segmento e na lucratividade possível, em torno da cultura do consumo vigente.
Um exemplo ilustrativo se dá quando um personagem, por vezes protagonista, por vezes coadjuvante, como o pastor Silas Malafaia, que assume o papel da pessoa controvertida em todo este contexto e constrói sua imagem midiática como “aquele que diz as verdades”, é convidado para uma conversa com o vice-diretor das Organizações Globo, João Roberto Marinho (PINHEIRO, Daniela. Vitória em Cristo. Revista Piauí, n. 60, set 2011). Aí é possível identificar o patamar em que se encontra o segmento evangélico nas mídias. Segundo depoimento do pastor depois da conversa, Marinho teria alegado precisar conhecer mais o mundo dos evangélicos já que a emissora teria percebido que Edir Macedo não seria “a voz” dos protestantes no Brasil. O pastor Malafaia ganhou, então, trânsito em um canal destacado de comunicação e teve várias aparições no programa de maior audiência da Rede Globo, o Jornal Nacional.

Além do contato com Malafaia, as Organizações Globo, por meio da gravadora Som Livre, já contrataram grandes nomes do mercado da música evangélica que têm, a partir daí, espaço garantido na programação da Rede Globo. A Globo tirou da Rede Record, em 2011, o evento de premiação dos melhores da música evangélica, tendo criado o Troféu Promessas. A Rede Globo é também, a partir de 2011, patrocinadora de eventos evangélicos como a Marcha para Jesus e de festivais gospel. Noticiário inédito do mundo evangélico tem ganhado espaço na Rede, como por exemplo, a matéria sobre a reeleição de José Wellington Bezerra à presidência da Convenção Geral das Assembleias de Deus veiculada em matéria de 1’44 no Jornal da Globo, de 1’52 na Globo News, em 11 de abril, além de nota na CBN e no portal G1.

Neste contexto, o caso Marco Feliciano tem sido amplamente tratado pela grande mídia. Feliciano já foi entrevistado por todos os grandes veículos de imprensa e já participou dos mais variados programas de entretenimento – de talk-shows a games. Foi tratado com simpatia na entrevista de Veja e defendido pelo jornalista Alexandre Garcia em comentário na Rádio Metrópole (5/4/2013) com o argumento de “liberdade de opinião”.  Fica nítido que estes veículos não desprezam a dimensão do escândalo e da bizarrice relacionada ao caso, somada à atraente questão da homossexualidade que mexe com as emoções e paixões humanas e expõe a vida íntima de celebridades, como o caso da cantora Daniela Mercury que veio à tona na trilha desta história.

No entanto, o amplo espaço dado para que Feliciano e seus aliados exponham seus argumentos e sejam exibidos como simpáticos bons sujeitos revela que estas personagens ganham um tratamento bastante afável em comparação à execração imposta a outras em situações críticas da política brasileira, como a que envolveu os parlamentares do PT. Não temos aqui apenas os evangélicos como um segmento de mercado a ser bem tratado, mas, retomando a constatação de que Feliciano, Malafaia e Bolsonaro representam uma parcela conservadora da sociedade brasileira, é possível que haja uma identidade entre estes líderes e quem emite e produz conteúdos das mídias. Afinal, é a mesma mídia que constrói notícias sobre crimes protagonizados por crianças e adolescentes de forma a promover uma “limpeza” das cidades por meio de campanha por redução da maioridade penal no Brasil, ou que veicula programas que trazem enquetes durante um noticiário sobre crimes urbanos que indagam: “Ligue XXX ou YYY para indicar qual pena merece o criminoso? XXX para prisão ou YYY para morte”.

São transformações na relação mídia e religião, com efeitos políticos, que merecem ser monitoradas e esclarecidas, tendo em vista a complexidade das relações sociais, em especial no que diz respeito à religião, e que devem ser potencializadas no ano eleitoral que se aproxima.

Um paradigma
O caso Marco Feliciano pode ser considerado um paradigma pelo fato de ser a primeira vez na história em que os evangélicos se colocam como um bloco organicamente articulado, com projeto temático definido: uma pretensa defesa da família.  Com a polarização estimulada pelas mídias entre o deputado Feliciano e ativistas homossexuais foi apagada a discussão de origem quanto à indicação do seu nome em torno das afirmações racistas e de seu total distanciamento da defesa dos direitos humanos.

Torna-se nítida uma articulação política e ideológica conservadora em diferentes espaços sociais – do Congresso Nacional às mídias – que reflete um espírito presente na sociedade brasileira, de reação a avanços sociopolíticos, que dizem respeito não só a direitos civis homossexuais e das mulheres, como também aos direitos de crianças e adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e da Comissão da Verdade, e de políticas de inclusão social e cidadania. Nesta articulação a religião passa a ser instrumentalizada, uma porta-voz.

A postagem de um pastor de uma igreja evangélica no Facebook reflete bem este espírito: “Devemos nos unir cada vez mais, já somos milhões de evangélicos no Brasil, fora os simpatizantes. Temos força, é claro que nossa força vem de Deus. Precisamos nos mobilizar contra as forças das trevas, que querem desvirtuar os bons costumes e a moral e, principalmente que querem afetar a honra da família. Se o meu povo que se chama pelo meu nome se humilhar e orar, não tem capeta que resista”. E as palavras de Marco Feliciano ecoam como profecia: “Graças a Deus permanecemos firmes até aqui. Chegará o tempo que nós, evangélicos, vamos ter voz em outros lugares. O Brasil todo encara o movimento evangélico com outros olhos”.

Nesse sentido é possível afirmar que os grupos políticos e midiáticos conservadores no Brasil descobriram os evangélicos e o seu poder de voz, de voto, de consumo e de reprodução ideológica. A ascensão de Celso Russomano nas eleições municipais de São Paulo, em 2012, já havia sido exemplar: um católico num partido evangélico, apoiado por grupos evangélicos os mais distintos. A eleição da presidência da CDH é paradigmática no campo nacional e ainda deve render muitos dividendos a Feliciano, ao PSC, à Bancada Evangélica e a seus aliados. O projeto político que se desenha, de fato, pouco ou nada tem a ver com a defesa da família… os segmentos da sociedade civil, incluindo setores evangélicos não identificados com o projeto aqui descrito, que defendem um Estado laico e socialmente justo, têm grandes tarefas pela frente.

Magali do Nascimento Cunha é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora da Universidade Metodista de São Paulo e autora do livro A Explosão Gospel. Um Olhar das Ciências Humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo (Ed. Mauad)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Pelo direito de discordar


Fui advertido de que nesse momento, que estamos vivendo na Igreja evangélica brasileira, discordar do Presidente do CDHM, em exercício, é concordar com o movimento GLBTS, e vice versa.

Discordo!

Eu respeito o irmão e oro por ele, mas, discordo da forma como o Deputado está conduzindo o mandato que recebeu de seus eleitores.

Eu respeito os seres humanos que optaram pela homossexualidade, mas, entendo que os direitos que estão a reivindicar já estão contemplados nos direitos da pessoa humana, cobertos por nossa constituição, e que o que passa disso constitui reclamos por privilégios, o que não é passível de ser concedido numa democracia, sob pena de contradizê-la.

Eu respeito o direito das uniões homossexuais terem garantida, pelo Estado, a preservação do patrimônio, por eles construídos, quando da separação ou do falecimento de um dos membros da união. Entretanto, discordo que seja possível transformar uma união voluntária de duas pessoas do mesmo sexo, a partir de opção comum e particular, em casamento, pois isso insinua haver um terceiro gênero na humanidade, o que não se explicita na constituição do ser humano. Assim como não entendo que a conjunção da maternidade e da paternidade, necessária para um desenvolvimento funcional do infante humano, seja substituível por mera boa vontade.

Eu respeito e exerço direito de pregar o que se crê, mas discordo do pregador, quando diz que Deus matou John Lennon ou aos Mamonas Assassinas, por terem desacatado o Altíssimo, como se o pecado humano não o fizesse desde sempre. A Trindade matou a todos os que a desacatam, em todo o tempo, no sacrifício do Filho, manifesto por Jesus de Nazaré (1 Pe 1.18-20), na Cruz do Calvário, oferecendo a todos o perdão e a ressurreição.

Eu respeito o direito de ter religião e o reivindico sempre, mas, discordo de tachar como agentes do inferno quem não concorda com o que penso, como se Deus, por sua graça, não estivesse, desde sempre, cuidando que a raça humana não sucumbisse à rebeldia inerente à sua natureza, o que explica o triunfo do bem frente a maldade explícita. Por isso discordo do pregador quando afirma que o sucesso de um artista, a quem Deus, por sua graça, cumulou de talentos, como Caetano Veloso, só se explique por ter feito pacto com o diabo. Como se ao adversário de nossas almas interessasse qualquer manifestação do Belo.

Eu respeito e pratico o direito ao livre exame das Escrituras Sagradas, conquistado pela Reforma Protestante, e, por isso, enquanto respeito o direito do teólogo expressar suas conclusões, discordo do teólogo quando suas considerações sobre o significado de profecias do texto que amo e reverencio, não corresponderem ao que entendo ser uma conclusão pautada pelas regras da interpretação bíblica, assim como, no meu parecer, ferirem a uma das maiores revelações desse Livro dos livros: Deus é Pai de todos, está em todos e age por meio de todos (Ef 4.6).

Reconheço a qualquer ser humano o direito de protestar contra o que não concorda, mas, nunca em detrimento do direito do outro, o que inclui o direito ao culto. Uma coisa é discordar do político outra coisa é cercear o direito do religioso, e de quem o convide para participar de um culto da fé que pratica. Uma coisa é denunciar o político por suas posturas, outra, e inadmissível, é atentar contra a integridade física ou emocional dele e dos seus.

Não admito, contudo, como cristão, ser sequestrado no direito de discordar, ou ser tratado como se fosse refém das circunstâncias, sejam elas quais forem. Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5.1).

Lamento que haja, entre os cristãos, quem trate a nossa fé como se fosse frágil e necessitada de proteção. Nossa fé foi preponderante na construção do Ocidente, e resistiu às mais atrozes perseguições.

Nós sempre propugnamos pela liberdade. Nós impusemos a Carta Magna ao Príncipe John, na Inglaterra; construímos o Estado Laico na revolução americana, quando, numa nação majoritariamente cristã, todas as confissões religiosas foram tidas como de direito. Nós lutamos entre nós pelo fim da escravidão, seja na guerra da Secessão, seja por meio de Wilberforce, premier Inglês, e de tantos outros movimentos. Nós denunciamos e enfrentamos os que entre nós quiseram fazer uso da nossa fé para legitimar a opressão. Os maiores movimentos libertários nasceram em solo cristão, e mesmo quando renegavam ao que críamos, não havia como não reconhecer a nossa contribuição à emancipação humana.

Nós construímos uma sociedade de direitos, lutamos por e reconhecemos direitos civis, e não podemos abrir mão disso; não podemos abrir mão da civilização que ajudamos a construir e a solidificar, onde mulheres, homens e crianças são protegidos em sua integridade e garantidos em seus direitos. Na democracia que ajudamos a reinventar, onde cada ser humano vale um voto, tudo pode e deve ser discutido segundo as regras da civilidade.

Nossa fé foi construída por gente que foi a toda luta que entendeu justa, pondo em risco a própria vida, e por mártires, por gente que se recusou a matar, por gente que não capitulou diante do assassínio, pois nós cremos que Deus é amor, e que o amor de Deus é mais forte do que a morte (Rm 8.38). E por amor a Deus e ao seu Cristo lutamos pela unidade e pela liberdade da humanidade.

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Ariovaldo Ramos é escritor, articulista e conferencista sobre a missão da igreja. Foi presidente da AEVB (Associação Evangélica Brasileira), missionário da SEPAL e presidente da Visão Mundial no Brasil. Atualmente é um dos presbíteros da Comunidade Cristã Reformada, em São Paulo (SP).


fonte: http://www.ultimato.com.br/conteudo/pelo-direito-de-discordar

sexta-feira, 12 de abril de 2013

NOTA DA DIRETORIA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO PROJETO DE LEI DO NOVO CÓDIGO PENAL

A Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) congrega profissionais filiados a diferentes escolas teóricas, vertentes políticas e religiões, incluindo irreligiosos, em sua Diretoria. A finalidade institucional precípua da SBB é a promoção da reflexão bioética e dos direitos humanos na sociedade brasileira.
Com esse intuito, a atual Diretoria da SBB reconhece que a questão do aborto no Brasil é um problema complexo que exige ser observado a partir de pontos de vista diferentes e envolve moralidades divergentes. Considerando-se o aborto, como um problema multifacetado, e os antagonismos de valores que sua abordagem coloca em discussão, a Diretoria da SBB realizou uma consulta interna aos seus membros acerca da descriminalização do aborto, com o objetivo de adotar uma posição sobre o tema.
A partir do resultado, por maioria, a Diretoria da SBB posicionou-se a favor da descriminalização do aborto, por entender que no Brasil o aborto é um problema de política de saúde e não de política criminal. Em consequência, a Diretoria da SBB entende que a prisão de mulheres que realizam o aborto não é medida adequada para proteger o feto, pois, além de não inibir a sua ocorrência, estigmatiza e torna as mulheres de baixa renda mais vulneráveis. Isso porque essas mulheres são as únicas submetidas ao sistema repressivo penal, no caso do enquadramento do aborto como crime, o que acaba por impeli-las à prática do aborto inseguro, acarretando sérios agravos à saúde, inclusive a sua morte.
A Diretoria da SBB, portanto, reconhece a pluralidade de concepções morais, religiosas e filosóficas sobre o aborto, por isso se pronuncia tão somente contra a criminalização da sua prática, sem fazer qualquer juízo sobre a moralidade da conduta, e, ao mesmo tempo, enfatiza o reconhecimento do estatuto moral próprio do feto.
Por fim, a Diretoria da SBB adere à posição manifestada pelo Conselho Federal de Medicina e se coloca a favor do Projeto de Lei do Novo Código Penal, que prevê a exclusão do crime de aborto quando houver a vontade da gestante e ocorrer até a décima segunda semana da gestação.
Cláudio Lorenzo
Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética

terça-feira, 9 de abril de 2013

Nota de Esclarecimento e Repúdio Quanto a Suposta Maldição sobre Negros e Africanos



A Aliança Evangélica vem a público para repudiar o uso inadequado das Escrituras Sagradas, a Bíblia, juntamente com as interpretações e afirmações daí decorrentes, especificamente as feitas quanto a supostas maldições existentes sobre africanos e negros.


Afirmações desta natureza são fruto de leitura mal feita de parágrafos bíblicos, tomados fora do seu contexto literário e teológico, que acabam por colaborar com os interesses de justificar pensamentos e práticas abusivas, contrárias ao espírito da Palavra de Deus, cujo foco está na Justiça, na Libertação e na promoção da Vida e Dignidade Humana.

O texto em questão, que tem servido de pretexto para declarações insustentáveis, tanto em púlpitos, redes sociais, na tribuna do Parlamento e até protocoladas junto à Justiça Federal, sob o manto da imunidade parlamentar, versa sobre o significado da passagem bíblica encontrada no Livro de Gênesis capítulo 9, versos 20 a 27.

Nessa passagem Noé, embriagado, despe-se e assim é surpreendido por seu filho Cam que, ao invés de manter a discrição e o respeito devidos ao pai, o anuncia aos seus irmãos; estes se recusam a ver o pai nesse estado e, sem olhar para ele, cobrem-no com uma manta. Desperto Noé, ao saber da postura de seu filho Cam, amaldiçoa seu neto Canaã, filho de Cam, destinando-lhe a servidão.

O equívoco em questão dá a entender que a maldição proferida pelo patriarca bíblico contra Canaã, seu neto e filho de Cam, atinge os seres humanos de tez negra que habitaram, originariamente, o continente africano, o que explicaria os vários infortúnios em sua história passada e presente, culminando no longo período em que foram feitos escravos no Ocidente; e que o ato de Cam em ver a nudez de seu pai, mais do que um desrespeito, indica um ato de violação sexual por parte de Cam.

Queremos salientar enfática e categoricamente:

Primeiro, Cam teve outros filhos: Cuxe, Mizraim e Pute, e somente Canaã foi amaldiçoado.

Segundo, embora o comportamento inadequado descrito no texto bíblico tenha sido o de Cam, filho de Noé, o objeto específico da maldição foi Canaã, o neto de Noé. [Segundo Orígines, um dos pais da Igreja, do sec. III, Canaã foi quem avisou seu pai sobre a situação do seu avô, publicando o que deveria ter mantido sob reserva]. Amaldiçoar, no senso bíblico, não determina a história, mas descreve a consequência da quebra dum princípio estabelecido pelo ato desrespeitoso; portanto, significa a percepção de efeitos e desdobramentos de um comportamento específico. Ou seja, a postura de Cam e de seu filho Canaã estabelece um padrão comportamental que resultaria numa situação de inversão paradoxal, onde alguns dentre os descendentes de Canaã se tornariam dominados e serviçais dos seus irmãos.

Terceiro, Canaã, neto de Noé, foi habitar e estabeleceu-se na região a oeste do rio Jordão, até a costa do Mediterrâneo (sudoeste da Mesopotâmia), onde os descendentes de Canaã desenvolveram práticas absurdas, inclusive o sacrifício de crianças, e não no continente africano!

Quarto, é de entendimento entre os teólogos especialistas no Velho Testamento que a maldição profética de Noé sobre Canaã foi cumprida quando da conquista da região povoada pelos descendentes de Canaã, os cananeus, por parte dos filhos de Jacó, sob o comando de Josué há mais de três milênios.

Quinto, a maldição proferida sobre Canaã pelo seu avô Noé significou uma percepção e discernimento sobre uma tendência comportamental de um grupo humano, antevendo o resultado de uma corrupção cultural e civilizatória específica e localizada, e em consequente servidão, e de modo nenhum faz referência à cor da sua pele.

Sexto, não há nada, absolutamente nada, nem neste texto bíblico em foco nem na Escritura como um todo, que indique qualquer maldição sobre negros e africanos, e muito menos algo que justifique a escravidão.

Sétimo, o texto bíblico precisa ser lido em seu contexto imediato e considerado à luz da totalidade da Escritura, como saudáveis práticas de interpretação bíblica nos ensinam. De acordo com o próprio capítulo 9 de Gênesis, verso 1 e seguintes, é indicado que o desejo de Deus e sua promessa visam abençoar, dar vida, alimento e todo o necessário para o desenvolvimento de todos os descendentes de Noé, seus filhos e de toda a família humana. A declaração divina de abençoar a Noé e seus descendentes é firme e abrangente, e não pode ser contestada ou reduzida pela declaração relativa e descritiva de Noé a respeito de seu neto.

Oitavo, Deus reafirma o desejo de abençoar a toda a humanidade, a todas as famílias da terra, raças e etnias no episódio descrito na sequência da narrativa bíblica, quando da vocação de Abrão (Genesis 12), intenção que tem seu ápice e culminância na pessoa, vida e ministério de Jesus e continuado em curso na Igreja. Em Cristo, toda maldição é destruída e uma Nova Criação é estabelecida, sendo chamados a participar deste novo concerto todas as nações, etnias, raças, povos e famílias de todas as terras e da Terra toda, sendo revogadas assim todas as maldições e oferecida salvação a todas as pessoas.

Nono, a alegada violação sexual de Cam a Noé não é sustentada pelo texto. A citação do texto da lei de Moisés que chama a violação de descobrir a nudez não dá suporte a tal alegação, uma vez que os verbos usados são diferentes na raiz e no significado: no primeiro caso, trata-se de observação a distância; e, no segundo caso, trata-se de ato deliberado contra outrem.

Décimo, toda vez, na história, que esse texto foi aventado a partir dessa hipótese vulgar, tratou-se de ato de má fé a serviço de interesses escusos, seja quando usado para justificar a escravidão de ameríndios no Brasil colonial, seja quando usado para justificar a escravidão dos africanos de tez negra, seja quando utilizado para a elaboração de sistemas legais de segregação social como o que ocorreu nos Estados Unidos, seja quando usado para justificar a política nefasta e mundialmente condenada do apartheid.

Tal leitura equivocada da Escritura corre o risco de ser vista como suspeita de esconder outros interesses de natureza política, econômica e de dominação social e religiosa. Não há nenhum apoio bíblico para defender qualquer maldição sobre negros ou africanos, que fazem parte, igualmente e em conjunto, da única família humana.

Lamentamos o equívoco provocado por tal vulgarização do texto bíblico, bem como a banalização quanto ao conteúdo de nossa fé, assim como repudiamos qualquer tentativa, intencional ou não, de uso inadequado do texto para quaisquer fins que não o de promover a vida, a libertação e a justiça, como a própria Escritura expressa muito bem.

Brasil, 07 de abril de 2013
Aliança Cristã Evangélica Brasileira