Eduardo Ribeiro Mundim
Esta história (Lc 7.36-50) tem três
principais personagens, e um secundário: Jesus, o profeta; a mulher,
a pecadora; Simão, o fariseu; as pessoas à volta, em número
ignorado. Os primeiros têm um relacionamento triangular, com duas
faces. Abertamente a mulher e o se relacionam, de diferentes maneiras
e com expectativas divergentes, com Jesus. Mas há uma interação
sutil entre a pecadora e o guardião da moral, que Jesus, para o bem
de todos, e causando dor, expõe ao público de então, e aos
leitores de todas as épocas.
O Contexto
O evento provavelmente
ocorre nos primeiros tempos do ministério de Jesus, na região da
Galileia “dos gentios”. Assumindo que Lucas mantenha uma ordem
cronológica, àquela altura Jesus já não era um desconhecido. Sua
interpretação do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré resultou na
sua expulsão e quase execução; havia pronunciado seu programa
ministerial, o “Sermão da Montanha”, onde delineou as atitudes
esperadas dos seus discípulos em contraste com as dos que não são
seus discípulos e os pilares éticos do Reino – chamou os ouvintes
a uma “contracultura”. E não só de palavras a sua fama se
difundira: expulsara demônios, curara face a face (a sogra de Pedro,
um leproso, um paralítico), curara à distância (o servo do
centurião em Cafarnaum), devolvera o falecido filho de uma viúva à
vida em Naim. Isto sem contar os milagres não registrados.
A “contracultura” que
apresentava, e o Seu papel especial na nova aliança, interferia na
prática religiosa pública do judaísmo de então: o sábado não
era um fim em si mesmo e os seus discípulos não jejuavam como os de
João Batista. A cunha inserida por este, separando os publicanos e
os fariseus, também foi acentuada por Jesus. Uns, sinceramente
arrependidos, buscavam um batismo que fosse a expressão pública
desta mudança de vida; outros, cientes da tradição, da Lei e dos
Profetas, foram advertidos com franqueza:
Pois veio João
Batista, que jejua e não bebe vinho, e vocês dizem:
“Ele tem demônio”. Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e
vocês dizem: “Aí está um comilão e beberrão, amigo de
publicanos e pecadores”.
E, um pouco antes, o
Evangelista registra esta cisão:
Todo o povo, até os
publicanos, ouvindo as palavras de Jesus, reconheceram que o caminho
de Deus era justo, sendo batizados por João. Mas os fariseus e
peritos da lei rejeitaram o propósito de Deus para eles, não sendo
batizados por João.
Jesus, portanto, não era
um desconhecido. Seu ensino já se espalhara, assim como as notícias
dos sinais e prodígios que efetuara, bem como o reconhecimento do
caráter excepcional da autoridade da Sua palavra.
Simão, o fariseu
Os fariseus acompanharam
Jesus durante todo o seu ministério, às vezes com simpatia, às
vezes com beligerância explícita. Ainda que, como classe, não
fossem abastados como os saduceus, havia muitos economicamente
favorecidos. Um destes, o convida para jantar. Só não é anônimo
porque Lucas lhe cita o nome ao registrar o diálogo ocorrido.
Qual a razão do convite?
O texto não esclarece, nem o contexto. Mas algumas inferências são
possíveis. Por exemplo: a refeição foi um evento razoavelmente
público, pois uma mulher anônima tomou conhecimento do fato; a casa
parece que estava aberta às várias pessoas, pois esta
aparentemente não enfrentou dificuldades para nela entrar; é
razoável supor que havia os convidados e a plateia curiosa e talvez
sedenta de notícias sociais.
Também é razoável
supor que o anfitrião não parecia estar completamente à vontade no
evento, pois por qual razão ele foi um tanto quanto rude, à vista
de todos? Segundo Jesus, diversas convenções sociais não foram
respeitadas por ele. Itens mínimos de conforto foram negados ou não
ofertados: água para lavar os pés e perfume para refrescar o corpo.
Tão pouco o cumprimento social do beijo, o correspondente ao moderno
apertar as mãos, fora realizado. Qual a razão de tal falta de
traquejo social?
Há um evidente contraste
com outra refeição, na casa de um publicano, Zaqueu. Refeição
esta onde Jesus, apesar de ter se convidado, foi recebido com festa e
alegria por parte daquele chefe de cobradores de impostos.
Parece razoável supor
que Simão o convidara sem muito regozijo; talvez tenha “sobrado
para ele” aquela tarefa, que tratou de desempenhar da melhor
maneira possível, por um lado, mas com mensagens do seu desagrado,
subliminares, do outro.
Sua avaliação da
atitude de Jesus para com a mulher revela que ele não estava
seduzido pela mensagem renovadora pregada pela simples existência de
Jesus. E sua antipatia disfarçada é trazida à tona pelo seu
pensamento conclusivo: “Se este homem fosse profeta, saberia...”
Simão tem um roteiro em
sua mente, e uma certeza lhe governa o coração. O verdadeiro
profeta não se mistura, mantém cerimonialmente (?!) puro; não é
admissível o contato entre a pureza da palavra divina e o ser humano
pecador.
Simão tem ideias
preconcebidas que lhe são caras, e mesmo os milagres realizados e o
ensino repleto de autoridade não são suficientes para fazê-lo
rever seus conceitos. Talvez, inconscientemente, ele quebrasse o
primeiro mandamento da Lei de Moisés, idolatrando-os.
Mas, plenamente
consciente, Simão faz uma distinção clara e cortante a respeito da
sua moralidade e pecaminosidade. A mulher não deveria tocar em
Jesus, se Ele fosse profeta, pois definitivamente era uma “pecadora”,
“mulher de má fama” - seja lá o que isto signifique. Seria ela
uma prostituta comum, ou uma prostituta cultual? Uma adúltera, ou
sexualmente promíscua? Ladra? Fofoqueira? Mas ele se encontrava em
um nível bem acima, pois lhe era lícito convidar um profeta para
cear com ele, não pecador. Sua atitude lembra a parábola
posteriormente transmitida por Jesus, que fala do publicano que não
tem coragem de entrar no templo, nem de levantar os olhos ao céu, e
que apenas reza pedindo para que Deus tenha dele misericórdia, por
ser pecador; e do fariseu que, postado o mais próximo possível do
altar, faz uma oração de louvor agradecendo a Deus por não
ser...como aquele pecador lá na porta.
Simão se aproxima de
Jesus cônscio de ser o juiz qualificado sobre o caráter de quem se
diz profeta, e seguro de sua relação com Deus – nada Lhe deve.
A pecadora
É uma mulher anônima
que se aproxima de Jesus. Seu nome não é citado. Mas a história
que ela cria atravessa gerações, firmemente ancorada no Evangelho.
É uma história incômoda, que seria melhor fosse uma parábola ou
uma metáfora, pois assim questionaria menos, confrontaria menos. É
uma história que somente pode ser integralmente compreendida se nos
aproximarmos dela a partir do sofrimento desta mulher, vivenciando em
nós mesmos a forte emoção nela presente.
Interessante que nosso
Deus não escolheu Se revelar através de um tratado de teologia
sistemática ou dogmática. Ele se dá a conhecer para nós através
de histórias que Ele mesmo cria e conduz – a parte expositiva da
Revelação habitualmente está atrelada à vida. E não tem
limites. Não foi a um profeta que disse “vai, toma uma mulher
de prostituições, e filhos de prostituição”? Sim, Simão, o
cuidadoso fariseu, esqueceu-se que Oseias pregou através do
relacionamento íntimo com uma “mulher da má fama”...
O grau de humilhação
que esta mulher assume é constrangedor. Não conheço se era
culturalmente aceito o seu gesto, de modo a nada existir de
embaraçoso.
Como foi possível a
Jesus aceitar que ela tomasse as atitudes que tomou? Quem Ele era,
afinal, para permitir tão grande servilidade? Conseguimos imaginar
Ganhdi neste papel? Ou Desmond Tutu? Ou Chico Xavier?
Não nos enganemos. Ao
aceitar o ritual dela, Ele proclama, silenciosamente, ser este
ritual, e a sua motivação, plenamente adequados a Ele. Que tipo de
homem faria isto?
As ruas daquela época,
principalmente nas cidades do interior, eram de terra. Sandálias, o
calçado mais comum. Simão não ofereceu a Jesus água para que
lavasse os pés. Portanto, a mulher estava banhando pés sujos com a
poeira e terra de um dia inteiro. E se ela os enxugava, é porque,
provavelmente, as lágrimas eram copiosas. Seriam tantas assim a
ponto de lavar eficazmente dois pés imundos? E ela os secava com os
próprios cabelos – transferindo, talvez, parte da sujeira que as
gotas dos seus olhos não eram suficientes para limpar. Seus cabelos,
longos, devem ter ficado sujos. Estaria ela, inconscientemente, ao
sujá-los, confessando suas culpas e, ao limpá-los, confessando Sua
pureza? Ao final, após limpos, ela os perfuma e beija
incessantemente.
Nada há no texto que
sugira ser ela uma lunática. O único juízo a respeito do seu
caráter era ser ela “de má fama”, “pecadora”.
Publicamente ela se
humilha aos pés de Jesus.
Ela dEle se aproxima com
plena consciência do seu pecado, de sua impossibilidade de agradar a
Deus ou ao Seu profeta. Ela sabe da mensagem, de primeira ou de
segunda mão; ela sabe dos sinais e prodígios realizados, que
correram céleres à frente dEle. Ela sabe ser juíza de si mesma,
reconhece sua indignidade frente a “contracultura” pregada e
confessa ver em Jesus o mensageiro habilitado a restaurá-la aos
olhos de Deus. Ela nada tem de bom e Ele é a fonte do bem que
necessita.
Jesus, o Profeta
Simão não dá crédito
a Jesus, enquanto profeta. Mas seu coração deve ter parado quando
Jesus lhe dirige a palavra e ele a ouve, com um “mestre” apenas
polido o suficiente. Percebe que Jesus o conhece mais do que ele
gostaria. Descobre-se preso na parábola contada, onde a resposta
imediata é óbvia. E Jesus expõe ao público a interação
silenciosa e inconsciente entre a mulher e o fariseu.
Um denário era o
equivalente monetário de um dia de trabalho braçal. Portanto, ambos
os devedores tinha grandes débitos: 50 dias brutos de trabalho um, 1
ano e 5 meses de trabalho bruto, o outro. O credor, magnânimo,
apenas porque lhe foi do seu interesse perdoar, cancela-lhes as
dívidas.
A mulher era, sem dúvida
aos olhos de todos, a que mais devia.
Para ser justo, talvez
não somente Simão tenha pensado o que pensou, mas diversos outros
também.
A parábola somente tem
sentido no contexto em que Jesus a usou, e ela explica as frases
finais. Os pecados dela são perdoados não em função das atitudes
servis que tomou, mas porque ela reconheceu em Jesus aquele que
poderia perdoá-la e, antes disto, aquele que poderia escutar sua
confissão e desejo de mudança. Suas lágrimas, seu cabelo talvez
enlameado, os pés beijados e perfumados, são expressões do que lhe
ocorria no interior: culpa, confissão, gratidão e entrega. Suas
atitudes são consequência, e não causa.
E Jesus proclama a si
mesmo como tendo autoridade de perdoar os pecados alheios; proclama
ser correto que as pessoas se aproximem dEle como aquela pessoa se
aproximara.
O triângulo se fecha. Um
homem específico, em um momento específico da história, arroga-se
com tranquilidade e poder o direito de direcionar a vida das pessoas,
de receber os mais pessoais e profundos votos de lealdade e dedicação
servil. Há duas maneiras de nos aproximarmos dEle: que o Senhor nos
auxilie para que nos aproximemos da forma correta.
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