domingo, 28 de abril de 2013

O Banho de Lágrimas


Eduardo Ribeiro Mundim

Esta história (Lc 7.36-50) tem três principais personagens, e um secundário: Jesus, o profeta; a mulher, a pecadora; Simão, o fariseu; as pessoas à volta, em número ignorado. Os primeiros têm um relacionamento triangular, com duas faces. Abertamente a mulher e o se relacionam, de diferentes maneiras e com expectativas divergentes, com Jesus. Mas há uma interação sutil entre a pecadora e o guardião da moral, que Jesus, para o bem de todos, e causando dor, expõe ao público de então, e aos leitores de todas as épocas.


O Contexto

O evento provavelmente ocorre nos primeiros tempos do ministério de Jesus, na região da Galileia “dos gentios”. Assumindo que Lucas mantenha uma ordem cronológica, àquela altura Jesus já não era um desconhecido. Sua interpretação do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré resultou na sua expulsão e quase execução; havia pronunciado seu programa ministerial, o “Sermão da Montanha”, onde delineou as atitudes esperadas dos seus discípulos em contraste com as dos que não são seus discípulos e os pilares éticos do Reino – chamou os ouvintes a uma “contracultura”. E não só de palavras a sua fama se difundira: expulsara demônios, curara face a face (a sogra de Pedro, um leproso, um paralítico), curara à distância (o servo do centurião em Cafarnaum), devolvera o falecido filho de uma viúva à vida em Naim. Isto sem contar os milagres não registrados.

A “contracultura” que apresentava, e o Seu papel especial na nova aliança, interferia na prática religiosa pública do judaísmo de então: o sábado não era um fim em si mesmo e os seus discípulos não jejuavam como os de João Batista. A cunha inserida por este, separando os publicanos e os fariseus, também foi acentuada por Jesus. Uns, sinceramente arrependidos, buscavam um batismo que fosse a expressão pública desta mudança de vida; outros, cientes da tradição, da Lei e dos Profetas, foram advertidos com franqueza:

Pois veio João Batista, que jejua e não bebe vinho, e vocês dizem: “Ele tem demônio”. Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e vocês dizem: “Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores”.

E, um pouco antes, o Evangelista registra esta cisão:

Todo o povo, até os publicanos, ouvindo as palavras de Jesus, reconheceram que o caminho de Deus era justo, sendo batizados por João. Mas os fariseus e peritos da lei rejeitaram o propósito de Deus para eles, não sendo batizados por João.

Jesus, portanto, não era um desconhecido. Seu ensino já se espalhara, assim como as notícias dos sinais e prodígios que efetuara, bem como o reconhecimento do caráter excepcional da autoridade da Sua palavra.


Simão, o fariseu

Os fariseus acompanharam Jesus durante todo o seu ministério, às vezes com simpatia, às vezes com beligerância explícita. Ainda que, como classe, não fossem abastados como os saduceus, havia muitos economicamente favorecidos. Um destes, o convida para jantar. Só não é anônimo porque Lucas lhe cita o nome ao registrar o diálogo ocorrido.

Qual a razão do convite? O texto não esclarece, nem o contexto. Mas algumas inferências são possíveis. Por exemplo: a refeição foi um evento razoavelmente público, pois uma mulher anônima tomou conhecimento do fato; a casa parece que estava aberta às várias pessoas, pois esta aparentemente não enfrentou dificuldades para nela entrar; é razoável supor que havia os convidados e a plateia curiosa e talvez sedenta de notícias sociais.

Também é razoável supor que o anfitrião não parecia estar completamente à vontade no evento, pois por qual razão ele foi um tanto quanto rude, à vista de todos? Segundo Jesus, diversas convenções sociais não foram respeitadas por ele. Itens mínimos de conforto foram negados ou não ofertados: água para lavar os pés e perfume para refrescar o corpo. Tão pouco o cumprimento social do beijo, o correspondente ao moderno apertar as mãos, fora realizado. Qual a razão de tal falta de traquejo social?

Há um evidente contraste com outra refeição, na casa de um publicano, Zaqueu. Refeição esta onde Jesus, apesar de ter se convidado, foi recebido com festa e alegria por parte daquele chefe de cobradores de impostos.

Parece razoável supor que Simão o convidara sem muito regozijo; talvez tenha “sobrado para ele” aquela tarefa, que tratou de desempenhar da melhor maneira possível, por um lado, mas com mensagens do seu desagrado, subliminares, do outro.

Sua avaliação da atitude de Jesus para com a mulher revela que ele não estava seduzido pela mensagem renovadora pregada pela simples existência de Jesus. E sua antipatia disfarçada é trazida à tona pelo seu pensamento conclusivo: “Se este homem fosse profeta, saberia...”

Simão tem um roteiro em sua mente, e uma certeza lhe governa o coração. O verdadeiro profeta não se mistura, mantém cerimonialmente (?!) puro; não é admissível o contato entre a pureza da palavra divina e o ser humano pecador.

Simão tem ideias preconcebidas que lhe são caras, e mesmo os milagres realizados e o ensino repleto de autoridade não são suficientes para fazê-lo rever seus conceitos. Talvez, inconscientemente, ele quebrasse o primeiro mandamento da Lei de Moisés, idolatrando-os.

Mas, plenamente consciente, Simão faz uma distinção clara e cortante a respeito da sua moralidade e pecaminosidade. A mulher não deveria tocar em Jesus, se Ele fosse profeta, pois definitivamente era uma “pecadora”, “mulher de má fama” - seja lá o que isto signifique. Seria ela uma prostituta comum, ou uma prostituta cultual? Uma adúltera, ou sexualmente promíscua? Ladra? Fofoqueira? Mas ele se encontrava em um nível bem acima, pois lhe era lícito convidar um profeta para cear com ele, não pecador. Sua atitude lembra a parábola posteriormente transmitida por Jesus, que fala do publicano que não tem coragem de entrar no templo, nem de levantar os olhos ao céu, e que apenas reza pedindo para que Deus tenha dele misericórdia, por ser pecador; e do fariseu que, postado o mais próximo possível do altar, faz uma oração de louvor agradecendo a Deus por não ser...como aquele pecador lá na porta.

Simão se aproxima de Jesus cônscio de ser o juiz qualificado sobre o caráter de quem se diz profeta, e seguro de sua relação com Deus – nada Lhe deve.


A pecadora

É uma mulher anônima que se aproxima de Jesus. Seu nome não é citado. Mas a história que ela cria atravessa gerações, firmemente ancorada no Evangelho. É uma história incômoda, que seria melhor fosse uma parábola ou uma metáfora, pois assim questionaria menos, confrontaria menos. É uma história que somente pode ser integralmente compreendida se nos aproximarmos dela a partir do sofrimento desta mulher, vivenciando em nós mesmos a forte emoção nela presente.

Interessante que nosso Deus não escolheu Se revelar através de um tratado de teologia sistemática ou dogmática. Ele se dá a conhecer para nós através de histórias que Ele mesmo cria e conduz – a parte expositiva da Revelação habitualmente está atrelada à vida. E não tem limites. Não foi a um profeta que disse “vai, toma uma mulher de prostituições, e filhos de prostituição”? Sim, Simão, o cuidadoso fariseu, esqueceu-se que Oseias pregou através do relacionamento íntimo com uma “mulher da má fama”...

O grau de humilhação que esta mulher assume é constrangedor. Não conheço se era culturalmente aceito o seu gesto, de modo a nada existir de embaraçoso.

Como foi possível a Jesus aceitar que ela tomasse as atitudes que tomou? Quem Ele era, afinal, para permitir tão grande servilidade? Conseguimos imaginar Ganhdi neste papel? Ou Desmond Tutu? Ou Chico Xavier?

Não nos enganemos. Ao aceitar o ritual dela, Ele proclama, silenciosamente, ser este ritual, e a sua motivação, plenamente adequados a Ele. Que tipo de homem faria isto?

As ruas daquela época, principalmente nas cidades do interior, eram de terra. Sandálias, o calçado mais comum. Simão não ofereceu a Jesus água para que lavasse os pés. Portanto, a mulher estava banhando pés sujos com a poeira e terra de um dia inteiro. E se ela os enxugava, é porque, provavelmente, as lágrimas eram copiosas. Seriam tantas assim a ponto de lavar eficazmente dois pés imundos? E ela os secava com os próprios cabelos – transferindo, talvez, parte da sujeira que as gotas dos seus olhos não eram suficientes para limpar. Seus cabelos, longos, devem ter ficado sujos. Estaria ela, inconscientemente, ao sujá-los, confessando suas culpas e, ao limpá-los, confessando Sua pureza? Ao final, após limpos, ela os perfuma e beija incessantemente.

Nada há no texto que sugira ser ela uma lunática. O único juízo a respeito do seu caráter era ser ela “de má fama”, “pecadora”.

Publicamente ela se humilha aos pés de Jesus.

Ela dEle se aproxima com plena consciência do seu pecado, de sua impossibilidade de agradar a Deus ou ao Seu profeta. Ela sabe da mensagem, de primeira ou de segunda mão; ela sabe dos sinais e prodígios realizados, que correram céleres à frente dEle. Ela sabe ser juíza de si mesma, reconhece sua indignidade frente a “contracultura” pregada e confessa ver em Jesus o mensageiro habilitado a restaurá-la aos olhos de Deus. Ela nada tem de bom e Ele é a fonte do bem que necessita.


Jesus, o Profeta

Simão não dá crédito a Jesus, enquanto profeta. Mas seu coração deve ter parado quando Jesus lhe dirige a palavra e ele a ouve, com um “mestre” apenas polido o suficiente. Percebe que Jesus o conhece mais do que ele gostaria. Descobre-se preso na parábola contada, onde a resposta imediata é óbvia. E Jesus expõe ao público a interação silenciosa e inconsciente entre a mulher e o fariseu.

Um denário era o equivalente monetário de um dia de trabalho braçal. Portanto, ambos os devedores tinha grandes débitos: 50 dias brutos de trabalho um, 1 ano e 5 meses de trabalho bruto, o outro. O credor, magnânimo, apenas porque lhe foi do seu interesse perdoar, cancela-lhes as dívidas.

A mulher era, sem dúvida aos olhos de todos, a que mais devia.

Para ser justo, talvez não somente Simão tenha pensado o que pensou, mas diversos outros também.

A parábola somente tem sentido no contexto em que Jesus a usou, e ela explica as frases finais. Os pecados dela são perdoados não em função das atitudes servis que tomou, mas porque ela reconheceu em Jesus aquele que poderia perdoá-la e, antes disto, aquele que poderia escutar sua confissão e desejo de mudança. Suas lágrimas, seu cabelo talvez enlameado, os pés beijados e perfumados, são expressões do que lhe ocorria no interior: culpa, confissão, gratidão e entrega. Suas atitudes são consequência, e não causa.

E Jesus proclama a si mesmo como tendo autoridade de perdoar os pecados alheios; proclama ser correto que as pessoas se aproximem dEle como aquela pessoa se aproximara.

O triângulo se fecha. Um homem específico, em um momento específico da história, arroga-se com tranquilidade e poder o direito de direcionar a vida das pessoas, de receber os mais pessoais e profundos votos de lealdade e dedicação servil. Há duas maneiras de nos aproximarmos dEle: que o Senhor nos auxilie para que nos aproximemos da forma correta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário