Posted: 02 Mar 2016 11:58 AM PST
por Michael Sacasas – tradução Fernando Pasquini
Texto original: http://thefrailestthing.com/2012/03/01/christianity-and-the-history-of-technology-longform/
Introdução
Desde meados do século XX tem havido um constante e talvez modesto
debate acadêmico sobre a relação entre tecnologia e religião. Entre os
estudiosos que abordaram especificamente a natureza dessa relação, suas
pesquisas concentraram-se no seguinte conjunto de interesses: o papel da
religião ao determinar a postura da sociedade ocidental para com o
mundo natural, o papel das religiões em incitar o desenvolvimento
tecnológico, o papel da religião na formação das atitudes ocidentais
para com o “trabalho e as ferramentas de trabalho”, e, mais
recentemente, o uso da linguagem e categorias religiosas para descrever a
tecnologia. A maioria desses estudos concentra-se quase exclusivamente
no contexto europeu e norte-americano; assim, “religião” refere-se ao
cristianismo. Jacques Ellul, Lynn White, George Ovitt, Susan White,
David Noble, e Bronislaw Szerszynski estão entre os contribuintes mais
notáveis deste debate.
Os comentários de Jacques Ellul foram os primeiros, mas não definiram
os termos do debate. Essa honra coube a Lynn White, que, em seu ensaio
de 1968,
“As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica”, propôs
inicialmente que a relação da Europa com a tecnologia foi moldada de
forma distintiva pela cosmovisão cristã. Estudiosos repetidamente voltam
a White para examinar mais sua tese e seu contexto ecológico.
David Noble se baseia no trabalho de White e Ovitt para oferecer um relato do que ele chama de
“religião da tecnologia”,
que diz respeito a um entrelaçamento generalizado das questões
religiosas com o projeto da tecnologia, além da tendência de se associar
a busca da transcendência à tecnologia.
Finalmente, o livro de Bronislaw Szerszynski intitulado
“Natureza, Tecnologia e o Sagrado” oferece
uma reconsideração teoricamente sofisticada do argumento de White,
abraçando, no que diz respeito ao caráter da sociedade contemporânea, o
diagnóstico da sociedade tecnológica feita por Ellul. Szerszynski também
transfere o argumento para fora do período medieval argumentando que as
transformações realmente decisivas no contexto intelectual e religioso
da história tecnológica da Europa devem ser localizados na Reforma
Protestante.
Jacques Ellul: Cristianismo A-técnico
O livro de Ellul intitulado
“A Técnica e o Desafio do Século” foi
publicado em francês em 1954 e teve sua primeira tradução para o inglês
em 1964 [NOTA DO TRADUTOR: O livro foi publicado inicialmente em
português em 1968, pela editora Paz e Terra, e atualmente está fora de
publicação]. Ellul fornece um breve esboço histórico da evolução da
técnica e, dentro disso, analisa a relação entre o cristianismo e
tecnologia. Conforme acredita Ellul, o cristianismo, na forma era
praticado durante o período medieval tardio foi, na melhor das
hipóteses, ambivalente com relação ao avanço da tecnologia. Ele
reconhece que a opinião geral contrasta as religiões orientais, que eram
supostamente “passivas, fatalistas e de desprezo para com a vida vida e
a ação”, com o cristianismo, a religião do Ocidente, que era
supostamente “ativa, conquistadora, e que transformava a natureza em
lucro.”
No entanto, embora esta caracterização tenha sido amplamente aceita,
Ellul acreditava que ela está errada. Ela tanto ignora os avanços
técnicos reais das civilizações orientais como também não compreende a
postura do cristianismo diante do desenvolvimento técnico.
De acordo com Ellul, o aparecimento do cristianismo marcou a “quebra
da técnica romana em todas as áreas – tanto no nível de organização,
como na construção de cidades, na indústria e nos transportes.”Em sua
opinião, Juliano, o Apóstata, e mais tarde Edward Gibbon, não estavam
totalmente equivocados ao atribuir o enfraquecimento do Império à
ascensão da Igreja. Após o colapso do Império Romano no Ocidente, a
sociedade ficou sob a tutela do cristianismo, que Ellul caracterizou
tanto como “‘a-capitalista’ como também ‘a-técnico'”. Em cada esfera da
cultura medieval, com exceção da arquitetura, Ellul vê “igualmente a
ausência quase total de técnica.”
Ellul então passa a desafiar os dois argumentos históricos empregados
por aqueles que acreditam que o cristianismo “abriu o caminho para o
desenvolvimento técnico.” O primeiro destes afirma que a supressão da
escravidão ocasionada pelo cristianismo impulsionou o desenvolvimento da
tecnologia, de forma a aliviar as misérias do trabalho manual. Já o
segundo afirma que o desencantamento do mundo natural produzido pelo
cristianismo removeu os obstáculos metafísicos e psicológicos para a sua
exploração com vistas à tecnologia. Ellul afirma que o primeiro
argumento falha em considerar as realizações técnicas impressionantes
nas sociedades escravistas, e o segundo, embora válido até certo ponto,
ignora as outras restrições da fé cristã colocadas em relação atividade
técnica, ou seja, suas tendências ascéticas e voltadas para o outro
mundo. Além disso, o cristianismo submeteu todas as atividades ao
julgamento moral. Assim, atividade técnica era limitada por
considerações não-técnicas, e foi dentro deste “escopo restrito” que
certos avanços técnicos foram alcançados e propagados pelos mosteiros.
Lynn White: o Cristianismo e o Clima Cultural do Avanço Tecnológico
Em seu ensaio clássico,
“As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica”, Lynn White Jr. demarcou uma posição que discorda de
Ellul em
quase todos os pontos possíveis. White começa descrevendo a lacuna de
avanço técnico que se abriu entre a Europa Ocidental e ambas as
civilizações islâmica e bizantina no leste. Esta lacuna antecedeu a
“Revolução Científica” do século XVI e já era evidente no final da Idade
Média. Consequentemente, White volta-se para a Idade Média
para compreender a natureza da tecnologia ocidental.
Embora White esteja, nesta fase de sua carreira, afastando-se da
abordagem de um único fator para a mudança tecnológica, alguns elementos
dessa abordagem ainda são evidentes em “As Raízes Históricas de Nossa
Crise Ecológica”, no qual ele aponta para a introdução do arado pesado
como catalisador de uma mudança de atitudes acerca da relação da
humanidade com a natureza. Nas palavras de White, o arado pesado “atacou
a terra com tamanha violência que o arado cruzado já não era mais
necessário.” White também observa que essa nova atitude de dominação
logo teve uma expressão pictórica nos calendários francos que mostravam o
homem e a natureza em oposição, tendo o homem como mestre.
Neste ponto do ensaio, entretanto, White abandona uma análise baseada
em um único fator tecnológico para mudança social e parte para a
consideração das influências culturais que condicionaram o
desenvolvimento e implantação da tecnologia em uma relação conflituosa
com a natureza. White acredita que religião cristã tal como praticada na
Europa Ocidental é a principal culpada. “Especialmente na sua forma
ocidental,” White conclui, “o cristianismo é a religião mais
antropocêntrica que o mundo já viu.” Depois de recordar brevemente os
conhecidos conceitos e linguagem da narrativa da criação no primeiro
capítulo do livro de Gênesis, White contrasta o cristianismo com o
paganismo antigo e as religiões orientais, e crê que o cristianismo “não
só estabeleceu um dualismo do homem e da natureza, mas também insistiu
que é da vontade de Deus que o homem explore a natureza para seus
próprios fins”. O cristianismo realizou esta “revolução psíquica”
através de um desencantamento da natureza, tornando “possível explorar a
natureza em um clima de indiferença aos sentimentos dos objetos
naturais.”
White, então, afirma o segundo argumento que Ellul rejeitou em sua
análise da relação entre o cristianismo e a natureza. Ele supera uma das
críticas de Ellul – de que ramos orientais do Cristianismo não pregaram
a mesma relação com a natureza e, portanto, que a religião não é o
fator-chave -, apontando para as diferenças significativas na
perspectiva teológica que caracterizaram as igrejas latinas ativistas no
Ocidente e as Igrejas gregas contemplativas no Oriente. Ellul havia
notado a diferença, e usou a Igreja Ortodoxa Russa como exemplo da
questão, mas concluiu que a diferença deveria ser cultural e não
religiosa. Mas embora a formação cultural do cristianismo antigo não
deva ser esquecida, permanece o fato de que, na Idade Média, tanto o
cristianismo oriental como o ocidental assumiram formas distintas e
estavam agora, como variações culturais da mesma religião, moldando o
clima intelectual de suas respectivas sociedades.
Além disso, White também reforça o argumento apontando para a visão
sacramental do cristianismo oriental. A Natureza existia como um sistema
de sinais para serem lidos e através dos quais Deus falava à
humanidade. Isso é, na opinião de White, uma visão da natureza
“essencialmente artística ao invés de científica”. Enquanto o Ocidente
inicialmente partilhava esta visão sacramental, no final do período
medieval este deu lugar a uma teologia natural mais inclinada a “ler” a
natureza entendendo o seu funcionamento, ao invés de meramente
contemplar a sua aparência. (Bronislaw Szerszynsk mais tarde irá lidar
com este argumento semiótico em profundidade.)
A estrutura retórica do artigo de White se preocupa mais com as
fontes da “atual crise ecológica”, mas o corpo de seu argumento se
dirige a outra pergunta: Qual a explicação para o avanço da tecnologia
ocidental em comparação às suas civilizações rivais? O ensaio de White,
embora inicialmente partindo de uma abordagem de um único fator para a
mudança tecnológica, no quadro geral utilizou uma abordagem de fatores
sociais, focando-se no cristianismo latino como a força motriz da
evolução tecnológica da Europa Ocidental. Ao fazer isso, o ensaio
definiu os termos e tornou-se um ponto de partida para a discussão
posterior do relacionamento da religião com a tecnologia. Mais
notavelmente, ele ancorou o debate na Idade Média, apontou para o
significado cultural das distinções teológicas aparentemente arcanas,
identificou o Cristianismo como o fator cultural mais importante
conduzindo a atividade tecnológica no Ocidente, e ligou a questão
histórica às preocupações ambientais.
White começa discutindo a propensão da Europa medieval em tomar
emprestadas e elaborar em cima de tecnologias desenvolvidas
inicialmente em outras sociedades. A cultura da Europa medieval “foi
única no seu clima de receptividade a transplantes” e isso explica, em
parte, o vigor da produção tecnológica medieval. No entanto, essa
mesma receptividade exige uma explicação, e em resposta White reafirma a
lógica de
“As raízes históricas de nossa crise ecológica”:
“Aquilo que uma sociedade realiza tecnologicamente é algo
influenciado por empréstimos casuais de outras culturas, embora a
extensão e usos destes empréstimos sejam reciprocamente influenciados
por certas atitudes em relação às mudanças tecnológicas. Fundamentalmente,
no entanto, tais atitudes dependem daquilo que as pessoas em uma
sociedade pensam sobre seus relacionamentos pessoais com a natureza,
seus destinos, e quão bom é agir sobre eles. Estas são questões
religiosas.”
No que se segue, White amplia as linhas do argumento sugerido no
ensaio anterior, ao mesmo tempo que apresenta linhas adicionais de
evidência em apoio de sua tese. O trabalho seminal do historiador
medieval Ernst Benz, cujos escritos sobre o assunto apareceram em
italiano em 1964 e foram apresentados em inglês em 1966, é introduzido
pela primeira vez no argumento de White. O estudo de Benz acerca dos
“impulsos anti-tecnológicos” do Zen Budismo levou-o a localizar a
aceitação de mudanças tecnológicas pela Europa Ocidental dentro de sua
perspectiva religiosa. Ele apontou para o cristianismo em sua concepção
linear da história, sua apresentação de Deus como arquiteto e oleiro,
sua afirmação teológica da bondade da criação material, e seu
pressuposto da ordem criada como uma “obra inteligente” – tudo isso, em
sua opinião, algo único no cristianismo – como os componentes daquilo
que White chama de um “clima cultural” extremamente hospitaleiro para o
avanço tecnológico.
White apresenta os contornos da análise de Benz, mas encontra espaço
para melhorias. Baseando-se em dois artigos publicados de forma
independente em 1956, White mais uma vez chama atenção para o
desencantamento da natureza supostamente realizado pelo triunfo cultural
do cristianismo sobre o paganismo antigo. Ele também reafirma e
desenvolve a importância da distinção entre o cristianismo ocidental e o
oriental. Aqui, White fortalece suas observações anteriores utilizando
evidências iconográficas e textuais.
Começando logo após da virada do primeiro milênio cristão, a
iconografia ocidental descreve Deus no ato da criação como um
construtor, mestre artesão, e mais tarde um mecânico – uma tradição
visual jamais adotada nas igrejas orientais. Na questão exegética, White
destaca as interpretações ocidentais e orientais da história de Marta e
Maria no Evangelho de Lucas. Enquanto uma leitura superficial sugira
que a contemplação seja mais importante que o ativismo, os intérpretes
latinos, começando com Agostinho, saem dessa interpretação, buscando
amenizar e até mesmo reverter a aparente crítica do ativismo e do
trabalho.
Com isso, White então se volta a algo que se tornaria outro ponto
chave de atenção nas discussões posteriores sobre tecnologia e
cristianismo: a atitude em relação ao trabalho nas ordens monásticas,
principalmente entre os beneditinos. White observa que, no mundo
bizantino, ao contrário do Ocidente, que não sofreu um colapso geral da
cultura, as ordens religiosas não foram obrigadas a arcar com o ônus de
sustentar todos os aspectos da civilização, sejam eles seculares e
religiosos. Entretanto, após o colapso da autoridade romana no Ocidente,
as ordens religiosas – notavelmente os beneditinos – encontraram-se na
tarefa de exercer funções religiosas e seculares, unindo adoração e
trabalho. Esse compromisso com o trabalho e as artes mecânicas, na
opinião de White, geraria um ímpeto caracteristicamente religioso para o
desenvolvimento da tecnologia.
White apoia sua afirmação com base na obra do pseudônimo Teófilo e
Hugo de São Vítor. As obras de Teófilo, que datam do início do século
12, fornecem um registro indispensável do conhecimento tecnológico da
época, ao mesmo tempo confirmando a motivação religiosa para a inovação
técnica, que White acredita ser característica da época. Nesse mesmo
tempo, o contemporâneo de Teófilo, Hugo de São Vítor, incorporou as
artes mecânicas em sua influente classificação do conhecimento e das
artes. Embora as artes mecânicas estivessem na mais baixa posição na
hierarquia das artes, ainda assim elas foram incluídas, e isso não era
pouco. Juntas, as obras de Teófilo e Hugo apoiam a tese de White sobre o
papel do cristianismo ocidental ao formar o impulso tecnológico da
Europa na Idade Média.
White conclui com mais uma evidência iconográfica corroborando sua
tese. Uma ilustração do Salmo 63 no Saltério de Utrecht, datada em
meados do século IX, apresenta um confronto entre o rei Davi e os Justos
com uma força muito maior dos ímpios. Enquanto os ímpios usavam pedras
de amolar para afiarem suas espadas, os piedosos empregam “a primeira
manivela que se tem registro além da China, usada para rodar o primeiro
rebolo conhecido na humanidade”. “Claramente”, White conclui, “o artista
está nos dizendo que o avanço tecnológico é a vontade de Deus.”
Assim, embora “As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica” seja
citado com mais frequência e mais frequentemente tomado como ponto de
partida, é em “Climas Culturais e o Avanço Tecnológico na Idade Média”
que White defende mais persuasivamente a ideia da influência formativa
do cristianismo sobre a história da tecnologia na sociedade
ocidental. Com sua inclusão da pesquisa de Ernst Benz e sua discussão da
espiritualidade beneditina, este ensaio definiu a agenda de pesquisas e
discussões posteriores.