quinta-feira, 10 de março de 2016

O Cristianismo e a História da Tecnologia – Parte 1

Posted: 02 Mar 2016 11:58 AM PST
por Michael Sacasas – tradução Fernando Pasquini

Texto original: http://thefrailestthing.com/2012/03/01/christianity-and-the-history-of-technology-longform/

Introdução

Desde meados do século XX tem havido um constante e talvez modesto debate acadêmico sobre a relação entre tecnologia e religião. Entre os estudiosos que abordaram especificamente a natureza dessa relação, suas pesquisas concentraram-se no seguinte conjunto de interesses: o papel da religião ao determinar a postura da sociedade ocidental para com o mundo natural, o papel das religiões em incitar o desenvolvimento tecnológico, o papel da religião na formação das atitudes ocidentais para com o “trabalho e as ferramentas de trabalho”, e, mais recentemente, o uso da linguagem e categorias religiosas para descrever a tecnologia. A maioria desses estudos concentra-se quase exclusivamente no contexto europeu e norte-americano; assim, “religião” refere-se ao cristianismo. Jacques Ellul, Lynn White, George Ovitt, Susan White, David Noble, e Bronislaw Szerszynski estão entre os contribuintes mais notáveis deste debate.

Os comentários de Jacques Ellul foram os primeiros, mas não definiram os termos do debate. Essa honra coube a Lynn White, que, em seu ensaio de 1968, “As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica”, propôs inicialmente que a relação da Europa com a tecnologia foi moldada de forma distintiva pela cosmovisão cristã. Estudiosos repetidamente voltam a White para examinar mais sua tese e seu contexto ecológico.

O livro de George Ovitt, “A Restauração da Perfeição: Trabalho e Tecnologia na Cultura Medieval”, continua sendo o tratamento mais aprofundado no nexo das questões levantadas pelo ensaio de White. Ovitt conclui que há uma boa razão para se restringir significativamente as afirmações de White.

O estudo de Susan White, “Adoração Cristã e a Mudança Tecnológica”, se destaca como uma consideração da influência da tecnologia na liturgia cristã.

David Noble se baseia no trabalho de White e Ovitt para oferecer um relato do que ele chama de “religião da tecnologia”, que diz respeito a um entrelaçamento generalizado das questões religiosas com o projeto da tecnologia, além da tendência de se associar a busca da transcendência à tecnologia.

Finalmente, o livro de Bronislaw Szerszynski intitulado “Natureza, Tecnologia e o Sagrado” oferece uma reconsideração teoricamente sofisticada do argumento de White, abraçando, no que diz respeito ao caráter da sociedade contemporânea, o diagnóstico da sociedade tecnológica feita por Ellul. Szerszynski também transfere o argumento para fora do período medieval argumentando que as transformações realmente decisivas no contexto intelectual e religioso da história tecnológica da Europa devem ser localizados na Reforma Protestante.

Jacques Ellul: Cristianismo A-técnico

O livro de Ellul intitulado “A Técnica e o Desafio do Século” foi publicado em francês em 1954 e teve sua primeira tradução para o inglês em 1964 [NOTA DO TRADUTOR: O livro foi publicado inicialmente em português em 1968, pela editora Paz e Terra, e atualmente está fora de publicação]. Ellul fornece um breve esboço histórico da evolução da técnica e, dentro disso, analisa a relação entre o cristianismo e tecnologia. Conforme acredita Ellul, o cristianismo, na forma era praticado durante o período medieval tardio foi, na melhor das hipóteses, ambivalente com relação ao avanço da tecnologia. Ele reconhece que a opinião geral contrasta as religiões orientais, que eram supostamente “passivas, fatalistas e de desprezo para com a vida vida e a ação”, com o cristianismo, a religião do Ocidente, que era supostamente “ativa, conquistadora, e que transformava a natureza em lucro.”

No entanto, embora esta caracterização tenha sido amplamente aceita, Ellul acreditava que ela está errada. Ela tanto ignora os avanços técnicos reais das civilizações orientais como também não compreende a postura do cristianismo diante do desenvolvimento técnico.

De acordo com Ellul, o aparecimento do cristianismo marcou a “quebra da técnica romana em todas as áreas – tanto no nível de organização, como na construção de cidades, na indústria e nos transportes.”Em sua opinião, Juliano, o Apóstata, e mais tarde Edward Gibbon, não estavam totalmente equivocados ao atribuir o enfraquecimento do Império à ascensão da Igreja. Após o colapso do Império Romano no Ocidente, a sociedade ficou sob a tutela do cristianismo, que Ellul caracterizou tanto como “‘a-capitalista’ como também ‘a-técnico'”. Em cada esfera da cultura medieval, com exceção da arquitetura, Ellul vê “igualmente a ausência quase total de técnica.”

Ellul então passa a desafiar os dois argumentos históricos empregados por aqueles que acreditam que o cristianismo “abriu o caminho para o desenvolvimento técnico.” O primeiro destes afirma que a supressão da escravidão ocasionada pelo cristianismo impulsionou o desenvolvimento da tecnologia, de forma a aliviar as misérias do trabalho manual. Já o segundo afirma que o desencantamento do mundo natural produzido pelo cristianismo removeu os obstáculos metafísicos e psicológicos para a sua exploração com vistas à tecnologia. Ellul afirma que o primeiro argumento falha em considerar as realizações técnicas impressionantes nas sociedades escravistas, e o segundo, embora válido até certo ponto, ignora as outras restrições da fé cristã colocadas em relação atividade técnica, ou seja, suas tendências ascéticas e voltadas para o outro mundo. Além disso, o cristianismo submeteu todas as atividades ao julgamento moral. Assim, atividade técnica era limitada por considerações não-técnicas, e foi dentro deste “escopo restrito” que certos avanços técnicos foram alcançados e propagados pelos mosteiros.

Lynn White: o Cristianismo e o Clima Cultural do Avanço Tecnológico

Em seu ensaio clássico, “As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica”, Lynn White Jr. demarcou uma posição que discorda de Ellul em quase todos os pontos possíveis. White começa descrevendo a lacuna de avanço técnico que se abriu entre a Europa Ocidental e ambas as civilizações islâmica e bizantina no leste. Esta lacuna antecedeu a “Revolução Científica” do século XVI e já era evidente no final da Idade Média. Consequentemente, White volta-se para a Idade Média para compreender a natureza da tecnologia ocidental.

Embora White esteja, nesta fase de sua carreira, afastando-se da abordagem de um único fator para a mudança tecnológica, alguns elementos dessa abordagem ainda são evidentes em “As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica”, no qual ele aponta para a introdução do arado pesado como catalisador de uma mudança de atitudes acerca da relação da humanidade com a natureza. Nas palavras de White, o arado pesado “atacou a terra com tamanha violência que o arado cruzado já não era mais necessário.” White também observa que essa nova atitude de dominação logo teve uma expressão pictórica nos calendários francos que mostravam o homem e a natureza em oposição, tendo o homem como mestre.

Neste ponto do ensaio, entretanto, White abandona uma análise baseada em um único fator tecnológico para mudança social e parte para a consideração das influências culturais que condicionaram o desenvolvimento e implantação da tecnologia em uma relação conflituosa com a natureza. White acredita que religião cristã tal como praticada na Europa Ocidental é a principal culpada. “Especialmente na sua forma ocidental,” White conclui, “o cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo já viu.” Depois de recordar brevemente os conhecidos conceitos e linguagem da narrativa da criação no primeiro capítulo do livro de Gênesis, White contrasta o cristianismo com o paganismo antigo e as religiões orientais, e crê que o cristianismo “não só estabeleceu um dualismo do homem e da natureza, mas também insistiu que é da vontade de Deus que o homem explore a natureza para seus próprios fins”. O cristianismo realizou esta “revolução psíquica” através de um desencantamento da natureza, tornando “possível explorar a natureza em um clima de indiferença aos sentimentos dos objetos naturais.”

White, então, afirma o segundo argumento que Ellul rejeitou em sua análise da relação entre o cristianismo e a natureza. Ele supera uma das críticas de Ellul – de que ramos orientais do Cristianismo não pregaram a mesma relação com a natureza e, portanto, que a religião não é o fator-chave -, apontando para as diferenças significativas na perspectiva teológica que caracterizaram as igrejas latinas ativistas no Ocidente e as Igrejas gregas contemplativas no Oriente. Ellul havia notado a diferença, e usou a Igreja Ortodoxa Russa como exemplo da questão, mas concluiu que a diferença deveria ser cultural e não religiosa. Mas embora a formação cultural do cristianismo antigo não deva ser esquecida, permanece o fato de que, na Idade Média, tanto o cristianismo oriental como o ocidental assumiram formas distintas e estavam agora, como variações culturais da mesma religião, moldando o clima intelectual de suas respectivas sociedades.

Além disso, White também reforça o argumento apontando para a visão sacramental do cristianismo oriental. A Natureza existia como um sistema de sinais para serem lidos e através dos quais Deus falava à humanidade. Isso é, na opinião de White, uma visão da natureza “essencialmente artística ao invés de científica”. Enquanto o Ocidente inicialmente partilhava esta visão sacramental, no final do período medieval este deu lugar a uma teologia natural mais inclinada a “ler” a natureza entendendo o seu funcionamento, ao invés de meramente contemplar a sua aparência. (Bronislaw Szerszynsk mais tarde irá lidar com este argumento semiótico em profundidade.)

A estrutura retórica do artigo de White se preocupa mais com as fontes da “atual crise ecológica”, mas o corpo de seu argumento se dirige a outra pergunta: Qual a explicação para o avanço da tecnologia ocidental em comparação às suas civilizações rivais? O ensaio de White, embora inicialmente partindo de uma abordagem de um único fator para a mudança tecnológica, no quadro geral utilizou uma abordagem de fatores sociais, focando-se no cristianismo latino como a força motriz da evolução tecnológica da Europa Ocidental. Ao fazer isso, o ensaio definiu os termos e tornou-se um ponto de partida para a discussão posterior do relacionamento da religião com a tecnologia. Mais notavelmente, ele ancorou o debate na Idade Média, apontou para o significado cultural das distinções teológicas aparentemente arcanas, identificou o Cristianismo como o fator cultural mais importante conduzindo a atividade tecnológica no Ocidente, e ligou a questão histórica às preocupações ambientais.

Lynn White desenvolve ainda mais sua tese em um longo artigo de 1971, “Climas Culturais e o Avanço Tecnológico na Idade Média”, no qual ele se dispõe a identificar diretamente as fontes do “impulso tecnológico sem precedentes no Ocidente medieval”.

White começa discutindo a propensão da Europa medieval em tomar emprestadas e elaborar em cima de tecnologias desenvolvidas inicialmente em outras sociedades. A cultura da Europa medieval “foi única no seu clima de receptividade a transplantes” e isso explica, em parte, o vigor da produção tecnológica medieval. No entanto, essa mesma receptividade exige uma explicação, e em resposta White reafirma a lógica de “As raízes históricas de nossa crise ecológica”:

“Aquilo que uma sociedade realiza tecnologicamente é algo influenciado por empréstimos casuais de outras culturas, embora a extensão e usos destes empréstimos sejam reciprocamente influenciados por certas atitudes em relação às mudanças tecnológicas. Fundamentalmente, no entanto, tais atitudes dependem daquilo que as pessoas em uma sociedade pensam sobre seus relacionamentos pessoais com a natureza, seus destinos, e quão bom é agir sobre eles. Estas são questões religiosas.”

No que se segue, White amplia as linhas do argumento sugerido no ensaio anterior, ao mesmo tempo que apresenta linhas adicionais de evidência em apoio de sua tese. O trabalho seminal do historiador medieval Ernst Benz, cujos escritos sobre o assunto apareceram em italiano em 1964 e foram apresentados em inglês em 1966, é introduzido pela primeira vez no argumento de White. O estudo de Benz acerca dos “impulsos anti-tecnológicos” do Zen Budismo levou-o a localizar a aceitação de mudanças tecnológicas pela Europa Ocidental dentro de sua perspectiva religiosa. Ele apontou para o cristianismo em sua concepção linear da história, sua apresentação de Deus como arquiteto e oleiro, sua afirmação teológica da bondade da criação material, e seu pressuposto da ordem criada como uma “obra inteligente” – tudo isso, em sua opinião, algo único no cristianismo – como os componentes daquilo que White chama de um “clima cultural” extremamente hospitaleiro para o avanço tecnológico.

White apresenta os contornos da análise de Benz, mas encontra espaço para melhorias. Baseando-se em dois artigos publicados de forma independente em 1956, White mais uma vez chama atenção para o desencantamento da natureza supostamente realizado pelo triunfo cultural do cristianismo sobre o paganismo antigo. Ele também reafirma e desenvolve a importância da distinção entre o cristianismo ocidental e o oriental. Aqui, White fortalece suas observações anteriores utilizando evidências iconográficas e textuais.

Começando logo após da virada do primeiro milênio cristão, a iconografia ocidental descreve Deus no ato da criação como um construtor, mestre artesão, e mais tarde um mecânico – uma tradição visual jamais adotada nas igrejas orientais. Na questão exegética, White destaca as interpretações ocidentais e orientais da história de Marta e Maria no Evangelho de Lucas. Enquanto uma leitura superficial sugira que a contemplação seja mais importante que o ativismo, os intérpretes latinos, começando com Agostinho, saem dessa interpretação, buscando amenizar e até mesmo reverter a aparente crítica do ativismo e do trabalho.

Com isso, White então se volta a algo que se tornaria outro ponto chave de atenção nas discussões posteriores sobre tecnologia e cristianismo: a atitude em relação ao trabalho nas ordens monásticas, principalmente entre os beneditinos. White observa que, no mundo bizantino, ao contrário do Ocidente, que não sofreu um colapso geral da cultura, as ordens religiosas não foram obrigadas a arcar com o ônus de sustentar todos os aspectos da civilização, sejam eles seculares e religiosos. Entretanto, após o colapso da autoridade romana no Ocidente, as ordens religiosas – notavelmente os beneditinos – encontraram-se na tarefa de exercer funções religiosas e seculares, unindo adoração e trabalho. Esse compromisso com o trabalho e as artes mecânicas, na opinião de White, geraria um ímpeto caracteristicamente religioso para o desenvolvimento da tecnologia.

White apoia sua afirmação com base na obra do pseudônimo Teófilo e Hugo de São Vítor. As obras de Teófilo, que datam do início do século 12, fornecem um registro indispensável do conhecimento tecnológico da época, ao mesmo tempo confirmando a motivação religiosa para a inovação técnica, que White acredita ser característica da época. Nesse mesmo tempo, o contemporâneo de Teófilo, Hugo de São Vítor, incorporou as artes mecânicas em sua influente classificação do conhecimento e das artes. Embora as artes mecânicas estivessem na mais baixa posição na hierarquia das artes, ainda assim elas foram incluídas, e isso não era pouco. Juntas, as obras de Teófilo e Hugo apoiam a tese de White sobre o papel do cristianismo ocidental ao formar o impulso tecnológico da Europa na Idade Média.

White conclui com mais uma evidência iconográfica corroborando sua tese. Uma ilustração do Salmo 63 no Saltério de Utrecht, datada em meados do século IX, apresenta um confronto entre o rei Davi e os Justos com uma força muito maior dos ímpios. Enquanto os ímpios usavam pedras de amolar para afiarem suas espadas, os piedosos empregam “a primeira manivela que se tem registro além da China, usada para rodar o primeiro rebolo conhecido na humanidade”. “Claramente”, White conclui, “o artista está nos dizendo que o avanço tecnológico é a vontade de Deus.”

Assim, embora “As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica” seja citado com mais frequência e mais frequentemente tomado como ponto de partida, é em “Climas Culturais e o Avanço Tecnológico na Idade Média” que White defende mais persuasivamente a ideia da influência formativa do cristianismo sobre a história da tecnologia na sociedade ocidental. Com sua inclusão da pesquisa de Ernst Benz e sua discussão da espiritualidade beneditina, este ensaio definiu a agenda de pesquisas e discussões posteriores.

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