domingo, 13 de março de 2011

Saúde, ética e espiritualidade


Saúde é bem-estar, não é mercadoria.

João Inácio Wenzel* Cuiabá, segunda-feira, 14 de março de 2011


Contam os anais da história que no antigo Oriente havia médicos contratados para cuidar da saúde da família. E quando alguém da família ficava doente, o médico deixava de receber salário, porque não estava fazendo bem o seu trabalho.

Quão distante ficamos desta visão holística da saúde em nossos tempos modernos! A saúde não é mais vista em sua integridade e integralidade. Ela é vista como ausência de doenças. A ênfase não está mais no cuidado da vida, das pessoas e do que nos envolve, mas em tratar doenças. Saúde virou mercadoria que se garante com planos de saúde. Na impossibilidade de pagar estes, se recorre ao SUS.

A saúde está compartimentada em mil e uma especialidades. Para cada doença um/a especialista. Cada qual sabe muito bem cuidar de determinadas doenças ou órgãos. Mas será possível tratar uma doença sem encarar as suas causas e a complexidade do jogo da vida e tudo aquilo que a envolve?

Felizmente os impulsos pela vida e os apelos em defesa e promoção da vida vêm resistindo e ganhando terreno a cada dia, quer seja pela recuperação do conhecimento de práticas de medicina popular de domínio comum, como a fitoterapia e a geoterapia, seja a valorização de novas práticas populares como a utilização da homeopatia e a introdução de ciências orientais, como a acupuntura.

Tal resistência também acontece no embate político, na compreensão do conceito de saúde e com a contribuição da bioética. A Organização Mundial da Saúde assume a seguinte conceituação: “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”.

A diferença é enorme. Há uma preocupação não simplesmente com a doença física, mas também com as suas causas e o seu contexto social. Mas há um limite: O que se entende mesmo por “bem estar”? Poder aquisitivo, qualidade de vida, frequentar o shopping? Pode-se estar bem quando as pessoas a nossa volta estão mal? Fadigadas, estressadas, sempre correndo atrás de coisas e mais coisas, com medo de ser assaltada/o, violentada/o?

A concepção dialética da saúde e doença do médico panamenho José Renan Esquivel supera a visão parcelada e fragmentada do corpo humano, como vem apresentado no documento base da Associação Brasileira de Homeopatia Popular - ABHP: “Partimos do fato que a célula mais sã é a célula com capacidade de defender-se dos vírus, tóxicos, bactérias e contra tudo que a agride, da mesma forma, o homem saudável deve organizar-se contra tudo o que o agride, vírus, bactérias, tóxicos, e até mesmo contra o próprio homem...”

“Para nós, o conceito de saúde atinge desde a menor célula do corpo até a grande organização da sociedade. Ora, se saúde é o ‘resultado das condições de organização de uma determinada sociedade’, na sociedade enferma em que vivemos - saúde não é bem-estar, saúde é luta.”

“Quando uma célula é incapaz de dar e receber, e de estabelecer contínuas trocas com o meio no qual vive, ela se deteriora. Se uma pessoa humana se fecha no seu mundo, sem distribuir, sem intercambiar, sem se relacionar, estará a caminho da loucura e da autodestruição...”

Ao lado deste conceito que relaciona a saúde da pessoa com a saúde da sociedade e do planeta, ganha força outro paradigma que vem das tradições milenares dos povos indígenas da América Latina: o princípio do bem-viver e do viver bem, incluídos nas Constituições do Equador e da Bolívia em 2008 e 2009, e que pode ser traduzido como “vida em plenitude”.

“Quando se fala de vida em plenitude, está se fazendo uma referência a viver em harmonia entre o material e o espiritual, consigo mesmo e com a Mãe Terra. Em última instância, saber conviver com tudo o que nos rodeia, com a comunidade”, afirma Katu Arkonada (Revista IHU Online 340).

Neste conceito, o que importa não é ter a melhor casa, carro do ano, acesso aos últimos lançamentos, conforto, “qualidade de vida” como ter mais coisas, mas a capacidade de criar relações humanas de qualidade, geradoras de humanidades. Portanto, não dá para falar em saúde, em cuidar da própria saúde sem cuidar da saúde dos outros e da saúde do planeta.

Na Bíblia hebraica a palavra que mais se aproxima deste paradigma de bem-viver é a palavra shalom, geralmente traduzida por paz. Perguntar alguém como vai - como está o teu shalom – significa perguntar algo que tem a ver com a sua condição existencial, abrangente e integral, que inclui a saúde.

Jesus assumiu este shalom como missão: “Eu vim para que todos tenham vida plena” (Jo 10,10). As pessoas percebiam nele uma força dinâmica (dynamis) que cura e liberta. Uma força curadora que pode ser ativada pela fé. Ele mesmo dizia à pessoa restabelecida: “Tua fé te salvou”.

São pessoas populares que se põem em movimento para buscar o toque curador, por vezes intermediadas por pessoas da comunidade. Justamente as pessoas excluídas pelo convívio salutar da comunidade, com os leprosos e as mulheres com fluxos de sangue, eram as que recebiam mais cuidados e com quem expressava mais afeto e misericórdia.

Dizia-lhes, como traduz muito bem André Churaquy: “Em marcha os pobres em espírito..., em marcha os que choram...” Para Jesus, elas não são “pacientes” objetos de cura, e sim sujeitas do processo que interagem com o terapeuta. Houve um caso em que uma mulher conseguiu tocar suas vestes, sem ninguém notar, e ela sentiu-se curada.

Jesus também sentiu uma força dinâmica sair dele e quis saber quem a tocou. Quando ela se apresentou e contou tudo o que aconteceu em sua vida, Jesus a chamou de filha: “minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz e estejas curada desse teu mal” (Mc 5,34). Jesus não queria apenas sua cura física, mas quis também a sua cura sociocultural. Quis devolvê-la à comunidade como exemplo de fé e de lutadora de dignidade.

O que Jesus fez não foi declinar um código moral, mas estabelecer novas relações com as pessoas que as restabeleceram por inteiro, beneficiando-as em sua saúde corporal, psíquica, social, cultural, política e religiosa. É assim que vive e se expressa a justiça divina ou, como diríamos hoje, sua ética terapêutica.

Hoje esta reflexão é avivada pela discussão dos princípios éticos, especialmente a bioética, como nos mostra José Antônio Ferreira num instigante artigo sobre o diálogo com as ciências da saúde (Bíblia e Saúde 1, 2009). Há certo consenso entre princípios como a beneficência, a autonomia e a justiça. O primeiro vem do pai da medicina ocidental, Hipócrates de Cós (460-377 aC), que disse que a finalidade da medicina é “aliviar o sofrimento do doente, diminuir a violência das suas doenças...”.

Esse princípio milenar da beneficência é complementado pelo segundo, da autonomia. O médico não é mais o único sujeito que faz o diagnóstico e determina sozinho o tipo de tratamento que o “paciente” – objeto - deve sofrer, mas ambos, médico e pessoa adoecida são sujeitos autônomos que estabelecem uma relação de parceria e amadurecem juntos as decisões e as escolhas cabíveis, respeitando os direitos de cada um.

O terceiro princípio que ajuda a humanizar as relações é o da justiça. Saúde é para todos e não somente para quem tem condições de pagar planos de saúde.
Há, porém, um quarto princípio particularmente significativo para nós latino-americanos: o princípio da alteridade, o respeito à diversidade de gênero, de etnia, cor, sexualidade, de ciclista e pedestre...

Pensar e agir a partir da vida dos pobres e excluídos e da situação de violência social que as pessoas estão submetidas é a única forma de não excluir ninguém. Princípio que também é estendido para o respeito à diversidade dos seres vivos e o respeito ao planeta Terra. Todas as espécies têm direito à vida.

Por último, um princípio que é caro aos cristãos, a sacralidade da vida humana, que vem da concepção de sermos “criados à imagem e semelhança de Deus”, assumidos pelo “Verbo que se faz carne e habitou no meio de nós”. Não há mais espaço para o sagrado separado da vida. No momento em que Jesus entregou o seu Espírito, “o véu do templo” que separava o santo dos santos, “se rasgou do alto a baixo”. Agora sagrada é a vida.

Há um fato narrado por Marcos que representa bem como Jesus aplicou este princípio ético na sua comunidade em Cafarnaum (Mc 3,1-6). Estava em meio à assembleia um homem da mão paralisada. Jesus o chamou para o meio, justamente onde se costumava ler e explicar a Sagrada Escritura. Depois de fazer a pergunta retórica se é permitido no sábado salvar a vida ou matar, pediu que ele estendesse a mão. Desta forma, Jesus colocou a Bíblia e o doente no mesmo patamar e sacralizou a vida humana.

Uma imagem que vem do hinduísmo, trazida a nós pelo jesuíta indiano Antony de Mello, pode nos ajudar a compreender a sacralidade da vida e de toda a criação. A terra é sagrada (Ex 3,5), a água é a sagrada (Jo 4,14), o ar é sagrado (1 Rs 19,12), o fogo é sagrado (At 2, 3).

Diz a tradição hindu que “Deus dança a criação. Ele é o bailarino e a criação a dança. A dança é diferente do bailarino, e, no entanto, não pode viver sem ele. No momento que o dançarino pára, a dança deixa de existir...” Não é Deus que precisa de nós, somos nós que precisamos Dele para seguir sendo a dança que cuida da vida, das pessoas, de si mesmo, da mãe terra...

Bibliografia:
Associação Brasileira de Homepatia Popular. Homeopatia Popular e Solidariedade Planetária; uma nova Saúde é Possível - Documento Base. Cuiabá: ABHP, 2007.
PASSOS, Luiz Augusto (org). O calor que nos une cura nossos corações. São Leopoldo: CEBI, 2010. (Série Palavra na Vida 274).
UETI, Paulo (org.). A vida é o que interessa. Bíblia, Saúde e outros ingredientes. São Leopoldo: CEBI, 2009. (Saúde e Bíblia 1).
UETI, Paulo (Org.). A terapêutica de Jesus. Corpo, poder e fé. São Leopoldo: CEBI, 2010. (Saúde e Bíblia 2).
 
* Padre jesuíta, Mestre em Teologia (FAJE/BH), coordenador do Centro Burnier Fé e Justiça, e professor no Studium Eclesiástico Dom Aquino Correia (SEDAC).

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