sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O olhar do teólogo: Bioética e clonagem

J. B. Libanio
Jornal de Opinião – janeiro de 2002

                   Fazer pode ser fácil. Medir as conseqüências da ação é mais difícil. As histórias de crianças conhecem cenas em que a fada comunica a uma pessoa a arte de iniciar e parar um processo de produzir água ou outra coisa. Acontece que um intruso percebe só o segredo de começar a aventura e põe-se a executar uma tarefa que não sabe concluir. E daí a catástrofe. A sabedoria dessas histórias vale para muitas das experiências científicas. Cientistas geniais conseguiram a fissura do átomo e agora ninguém sabe o que pode acontecer e o que fazer com o excesso de bombas atômicas estocadas.

                   Os experimentos da genética caminham por trilhas semelhantes. Ninguém é capaz de prever que se fará  com as suas experiências, se caírem na mão de algum Hitler futuro. Mais importante que aprender as técnicas de produção de um artefato, é a arte de aprender a fazer. A primeira regra da sabedoria de aprender a fazer é ter uma perspectiva histórica e ética. Tudo que se faz está dentro de um processo que teve um ontem, tem um hoje e terá um amanhã. Sem vislumbrar aonde leva nossa pesquisa não se deveria iniciá-la. Sem medir as suas conseqüências éticas não é lícito conduzi-la

                   Nem tudo o que é científica e tecnologicamente factível, é eticamente justificável. Há momentos em que se deve dizer um basta para não ultrapassar as barreiras da ética humana.

                   Evidentemente este juízo ético não se faz em nome de alguma autoridade extrínseca, mas de dentro da própria ciência com o conhecimento dos processos em cursos e seus riscos. Uma vez conhecida a natureza interna da pesquisa, o cientista, como ser ético que é, está obrigado a medir-lhe o alcance. 

                   Freqüentemente a imprensa faz um jogo ora explícito ora subliminar contrapondo a posição da Igreja - quase sempre apresentada como conservadora ou reacionária contra as pesquisas científicas - e a posição do cientista - pesquisador buscando o bem da humanidade. E a verdade dos fatos é bem outra.

                   Não se trata de posições de igrejas e crenças, mas de conduta ética que é de todo ser humano. A Igreja quando interfere o faz em nome da ética humana, do conhecimento que ela tem do ser humano e não em nome de uma Revelação que evidentemente não poderia ter contemplado problemas tão novos. É no campo da ética que se deve travar a discussão. E os cientistas precisam ser honestos para revelarem os interesses que os movem. E não raras vezes estão envolvidos megainvestimentos de empresas lucrativas que apostam em pesquisas que lhes renderão lucros fabulosos à revelia da ética e do verdadeiro bem da humanidade. A consideração ética é mais ampla que o simples resultado prático da experiência. Mesmo que esta possa resultar em certos benefícios para a humanidade, nada autoriza ao cientista que a faça à custa de outros valores maiores como da intangibilidade da vida, da dignidade do ser humano.

                   No caso da genética está diretamente em jogo o nascer da vida humana cuja sacralidade não é patrimônio de nenhuma religião, mas de toda a humanidade. Violá-la é atentar contra a nossa condição de ser humano. Os riscos e as loucuras de uma manipulação eugênica encontraram nas atrocidades do nazismo horrendo exemplo histórico que serve para alertar-nos seriamente. Em campo tão delicado que toca as fímbrias da vida o sinal de alarme da ética deve soar bem cedo antes que monstros sejam gerados e processos perversos sejam executados.

fonte: www.jblibanio.com.br/modules/wfsection/article.php?articleid=1185

sábado, 24 de setembro de 2011

Milagres, para o quê servem?

Eduardo Ribeiro Mundim

Milagres superabundam no mundo de hoje. Afinal, a tecnologia (1) nos brinda com acontecimentos fora do comum: cientistas conseguem medir o tempo em bilionésimos de segundos, documentos são transmitidos por linhas telefônicas, é possível conversar e ver alguém que está no meio do Nepal na tela do computador portátil.  Uma simples visita a uma loja especializada em aquários (2) nos presenteia com imagens nunca vistas, formas de vidas inimagináveis e combinações de cores geometricamente espetaculares. O dia a dia de cientistas (3) é elucidar como certos fatos ocorrem, ou parecem ter ocorrido, como reproduzi-los e as possíveis utilidades para a vida humana (para o bem e, infelizmente, para o mal).

Mas o termo está, no nosso consciente coletivo, ligado a sua sexta definição: indício da interferência divina na vida humana. Que pode, ou não, ser surpreendente, inexplicável, inusual e admirável. E este é o ponto.

Talvez as últimas décadas tenham sido pródigas em notícias que tememos classificar como contrafações satânicas, ou como puras exibições de mal caratismo blasfemo. Exemplo passível de ser encaixado nessa última característica é o sopro emagrecedor (4), publicado por um jornal popular de Belo Horizonte.

Mas o mais interessante sobre os milagres, enquanto indícios da intervenção divina no dia a dia da nossa história, é a incapacidade deles de serem unanimemente aceitos enquanto tal, não importa o seu tamanho. Os profetas do Velho Testamento não conseguiram converter os filhos de Abraão, por maiores que fossem suas realizações - vide Elias e Eliseu. Por mais que curasse e, eventualmente, ressuscitasse, Jesus não foi reconhecido como Messias a não ser por um pequeno grupo de pessoas. Será que os guardas do sepulcro, testemunhas da ação do anjo, subornados para dizerem que o Seu corpo tinha sido roubado pelos discípulos, creram? (5) 

O que chama a atenção sobre os milagres é o seu duplo caráter na proclamação do Evangelho: absolutamente secundário e invisível aos olhos.

Secundário, porque a mensagem da Cruz vence pela sua força histórica (enquanto fato) e pela sua força convencedora, através da ação do Espírito Santo. E esta ação prescinde de demonstração de poder. Afinal, Jesus mesmo se impacientou, e repreendeu severamente a troca de Sua mensagem por feitos portentosos. (6)

Invisível, porque talvez o maior milagre que possa ocorrer se sucede no coração e na mente daquele que O confessa como Senhor e Salvador. Absolutamente sem fogos de artifício e chamadas extras dos telewebjornais.

Diferente dos estelionatários travestidos de evangelistas (na visão secular), ou dos agentes de Satanás (na visão bíblica) (7), o verdadeiro milagre é discreto, acoplado a correta exposição das Escrituras e nunca, absolutamente nunca, direcionado para o seu agente, e sim para o Seu autor.
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(1) definições 2 e 3 do termo "milagre" do Aulete Digital
(2) definição 4, idem
(3) definição 1, idem
(4) Super Notícia, 20/09/11 
(5) Mt 28
(6) Mt 12
(7) e elas não são mutuamente excludentes

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Livros evangélicos tendem a mostrar uma supermulher

Quinta-feira, 22 de setembro de 2011 (ALC) - A literatura evangélica dirigida a mulheres tende a orientá-las para que sejam boas esposas, boas mães e boas donas de casa, confirmando um papel entendido como natural e a elas conferido por ordem divina. 

"Essa maneira de conceber o feminino tem sido um dos grandes problemas para a superação da dominação de gênero. A carga de culpa das mulheres por não corresponderem àquilo que é considerado 'coisa de mulher' é enorme", declarou em entrevista para o Instituto Humanitas a professora Sandra Duarte de Souza, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo.

A mulher ideal descrita por esse tipo de literatura é concebida, na maioria das vezes, "como uma mulher domesticada de acordo com o padrão patriarcal da cultura", definiu a pesquisadora. Essa mulher idealizada está no mercado de trabalho, tem que administrar tarefas domésticas, cuidar dos filhos, do marido.

Mas uma mulher comum não dá conta disso tudo, assinala a professora da Metodista. "Não é a toa que, na atualidade, o índice de mulheres com depressão que se acham fracassadas é enorme", afirmou. 

Apesar das muitas conquistas das mulheres em vários campos da vida, a identidade delas continua sendo afirmada a partir do casamento, da maternidade e de todas as representações que envolvem essa condição. "O acúmulo de atribuições inviabiliza uma vida saudável", disse Sandra Duarte.

Boa parte dos livros evangélicos direcionados a mulheres "desculpam os homens por serem do 'jeito que são'", frisou. Sandra entende que, por não conseguirem conciliar toda a carga simbólica que carregam, as mulheres estão em crise, que as faz buscar respostas no campo religioso.

"Quando falamos de religião estamos falando de sistemas simbólicos. As representações do feminino e do masculino são construções socioculturais, portanto, são aprendidas. Por força do processo dialético de produção da sociedade, os sujeitos sociais passam a acreditar que essas representações são naturais", explicou.

A religião pode, pois, contribuir para a naturalização dessas representações quando as afirma como sagradas, mas também pode funcionar como desconstrutora de relações de dominação de gênero, assinalou.

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Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC)
Edição em português: Rua Ernesto Silva, 83/301, 93042-740 - São Leopoldo - RS - Brasil
Tel. (+55) 51 3592 0416

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Política de Chávez tem sinais visíveis do Reino , dizem pentecostais

Caracas, segunda-feira, 19 de setembro de 2011 (ALC) - A União Evangélica Pentecostal Venezuelana (UEPV) entende como uma proposta válida o estabelecimento do socialismo bolivariano, "já que ele contém sinais visíveis do Reino de Deus inaugurada por Jesus Cristo, nosso redentor".

A incorporação do ideal bolivariano à expressão da fé pentecostal é parte da raiz fundacional da UEPV, criada em 1957, diz carta pastoral assinada pelos bispos Gamaliel Lugo e Esearino Zonza, emitida dias após a realização do III Congresso Pentecostal Bolivariano, reunido no final de agosto, no município de Palavecino.

Os pentecostais reconhecem "os formidáveis avanços no campo da educação, da saúde, a ampliação dos espaços democráticos e de participação popular, o resgate dos nossos recursos naturais e financeiros e, em geral, uma mais justa distribuição da riqueza social da nação"  promovidos pelo governo do presidente Hugo Rafael Chávez Frites.

Esses avanços coincidem "com a nossa luta pentecostal bolivariana a favor do bem comum e a construção de uma comunidade humana solidária, à luz do Reino de Deus, que, como disse Jesus, 'já está entre vocês'".
Reconhecem, no entanto, que ainda persistem "realidades dolorosas que nos desafiam a continuar na luta por uma Venezuela verdadeiramente socialista".
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Comentários do blog:

Até que ponto os irmãos pentecostais estão avaliando o governo de Hugo Chavez de modo equilibrado? Estarão sendo cooptados pelo sistema sem o saber?

Provavelmente há realizações dele em sintonia com o Reino - mas não a sua postura transmitida pela mídia brasileira. Justiça não independente, perseguição política e o endeusamento de si próprio. Vindo de um governante, é uma autêntica marca do anticristo.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

É a religião um ópio das massas?

Eduardo Ribeiro Mundim

Esta é uma acusação recorrente sobre qualquer religião institucionalizada, atribuída aos fundadores do movimento comunista. No ocidente, a pecha de religião caiu sobre o cristianismo, sistema hegemônico nesta parte do globo.

Recentemente meu primogênito passou a defender esta ideia.

Será verdade?

Afinal, o que é religião?

Segundo Rubem Alves, em um livreto publicado pela Editora Brasiliense, "O que é religião" (disponível na internete), é necessidade humana que a vida faça sentido. Para seres que são capazes de se questionar, imaginar e sonhar mundos alternativos, de se olhar no espelho e enxergar seu desejo inscrito na sua face, dar um sentido à própria existência é necessidade psicológica de primeira grandeza. Seja qual for o sentido, algum terá de ser escolhido no processo de se tornar ser humano. É uma atividade acientífica, ainda que possa ser estudado cientificamente. Sendo significado, religião pode ser teísta ou ateísta, por ser ela, primariamente, busca por um sentido. Aceitar-se enquanto religioso não implica em aceitar a existência de deus(es).

Como pode uma necessidade humana básica constituir-se em ópio?

Antes de mais nada, ópio é uma substância com ação no sistema nervoso central capaz de levar a um estado de euforia e sono repleto de sonhos, capaz de tornar seu usuário crônico dela dependente. Esta dependência mina a capacidade do indivíduo de ser cidadão participativo e solidário nas responsabilidades comunitárias, exilando-o do convívio com seus pares.

Ópio, portanto, é, antes de tudo, algo que inutiliza seu usuário para a vida comunitária e para consigo mesmo.

É isto que a religião faz? Para não cair no risco da dúvida da existência histórica, a religião tornou Gandhi, Martin Luter King, Madre Tereza de Calcutá, Chico Xavier, dentre tantos exemplos, indivíduos inúteis socialmente? Foram cientistas de segunda categoria Newton e Kepler? Filósofos de botequim Pascal, Descartes, Thomas de Aquino?

Parece que a intenção original de Karl Marx era dizer que "A religião é o suspiro do oprimido, o coração de um mundo insensível, a alma de situações desalmadas. É o ópio do povo." (fonte aqui)

Entendo que o filósofo dizia que a religião, enquanto ideologia, é uma forma de opressão política, a partir do momento em que ela está domesticada, ou a serviço do Estado, anulando sua capacidade de dar sentido à vida e deixando apenas o simulacro de sonhar com aquilo que não será, encerrando a pessoa em uma inatividade, incapaz de interferir nos rumos de sua vida ou da sociedade onde vive.

Não é isto que a ideologia nacional-socialista fez a Alemanha nos anos 30 a 40? Não foi um estado semelhante construído por Stalin, que providenciou o culto a sua personalidade como os imperadores de Roma?

A religião domesticada, a ideologia de plantão, são úteis para qualquer Estado com ambições totalitárias. Mas a religião livre, como bem demonstraram Gandhi, e Luter King, é inimiga de todo sistema opressor, seja estatal, familiar ou social.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

PRONUNCIAMENTO SOBRE DECISÃO DO STF – LEGALIZAÇÃO DA UNIÃO HOMOAFETIVA

CONSELHO COORDENADOR DA IPU – CCIPU

 PRONUNCIAMENTO CCIPU N. 02/2011

O Conselho Coordenador da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil – CCIPU, no uso de suas atribuições, e considerando a decisão proferida em 05 de maio de 2011 pelo Supremo Tribunal Federal que, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo; as repercussões que tal decisão introduziu na sociedade brasileira de um modo geral e seus impactos nas instituições religiosas cristãs em particular; e as demandas e questionamentos das igrejas e presbitérios jurisdicionados à Igreja Presbiteriana Unida do Brasil – IPU acerca dessa matéria, decide emitir o seguinte

PRONUNCIAMENTO

  1. A IPU reafirma que as Sagradas Escrituras são o seu padrão de doutrina e ética e reconhece o direito, diante delas, a diferentes posicionamentos exegéticos e teológicos os quais, sob a influência de condicionamentos históricos, culturais e sob a orientação do Espírito Santo, transformaram-se e se transformam de acordo com as necessidades dos homens e passaram a constituir verdadeiro patrimônio espiritual da Igreja Cristã (Artigo 4º dos Princípios de Fé e Ordem);
  2. A IPU reconhece que estamos diante de um tema complexo e terreno fértil para polarizações, mas, por isso mesmo, digno de debate e que, por isso, ao invés de silêncio e exclusão, é necessário aprofundar e qualificar o debate relativo à tensão entre o sagrado direito de crença de uns e o democrático respeito aos direitos civis (laicos) de outros;
  3. A IPU, não obstante respeitar a laicidade do Estado e defender o sagrado direito de crença, lamenta que o STF tenha assumido o papel do Congresso Nacional, ao decidir sobre o tema, havendo que prevalecer o texto constitucional, até que o Congresso o revisasse, transformando-se, assim, o STF em um poder constituinte;
  4. A IPU reconhece e defende a sólida tradição da separação entre Igreja e Estado e que isso não significa a sujeição de um à esfera do outro, nem a substituição de um pelo outro;
  5. A IPU defende, também, que a Igreja deve anunciar e proclamar as boas novas do Senhor Jesus Cristo que se caracterizam pela transformação e pela novidade de vida, ao alcance de todos os homens e mulheres e que todos venham ao conhecimento da Verdade, que é o Senhor Jesus Cristo;
  6. A IPU reafirma seu compromisso com a defesa dos direitos civis de todas as pessoas, cristãs e não cristãs, e que nenhuma delas fique desamparada pelo Estado ou pela sociedade, independentemente de sua classe social, raça, cor, religião, ideologia política, sexo ou orientação sexual, representando, assim, tal decisão do STF um avanço para a garantia dos direitos da pessoa humana (Artigo 9º dos PFO, caput);
  7. A IPU, não obstante a decisão do STF de reconhecimento legal da união civil homoafetiva e de sua equiparação a entidade familiar, afirma que, de acordo com a alínea l do artigo 9º de seus Princípios de Fé e Ordem, “admite a bênção matrimonial e também celebra casamento civil na forma da lei” (grifo nosso) somente para a união em fidelidade entre um homem e uma mulher.

O CCIPU solicita às igrejas, presbitérios, assessorias e organismos parceiros que divulguem este pronunciamento em seus boletins, jornais e páginas da internet e recomenda o seu pronto cumprimento até que decisão superior da Assembleia Geral da Igreja possa vir a reformá-lo.

Vitória, 01 de setembro de 2011.

Wertson Brasil de Souza, Presb.
1º Secretário

Anita Sue Wright Torres, Presba.
Moderadora

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O velho e o ônibus

Era proibido residir na área C da Cisjordânia, mas o velho resistiu, morando num ônibus.

Gabriel Matyias Soares
Jerusalém, quinta-feira, 1 de setembro de 2011 

Nos arredores da cidade de Hebron (Al-Khalil), a nordeste do centro histórico, localiza-se o Wadi Al-Ghrous, um vale localizado entre as duas colinas onde estão instaladas dois assentamentos israelenses: Qiryat Arba (ao sul) e Givat Harsina (ao norte).

O primeiro foi estabelecido em 1968 e o segundo no início da década de 1980 por colonos removidos do Sinai após o tratado de paz entre Israel e o Egito. Algumas famílias palestinas continuam vivendo ali, resistindo à pressão criada pelos assentamentos circundantes, que se manifesta normalmente através do confisco de terras e através da violência dos colonos. Em meio a esse conturbado ambiente, encontra-se a história de perseverança de um velho e seu ônibus.

Sozinho, agarrando-se ao pouco que resta de sua terra, um idosos de 80 anos, chamado Abd Al-Hasib Atta Zaloum, passa a maior parte do tempo em baixo de uma árvore. Durante toda a sua longa vida, testemunhou inúmeros acontecimentos-chave do conflito árabe-israelense, como as guerras de 1948 e 1967. Também testemunhou a formação e a expansão dos assentamentos israelenses à sua volta, já a partir do ano de 1968.

Desde o princípio, esses assentamentos se constituíram tomando terras palestinas, sejam privadas ou estatais (ou assim declaradas pelo Estado ocupante, Israel), às vezes vagarosamente, às vezes abruptamente. Isso é realizado normalmente através de um engenhoso sistema que utiliza medidas de segurança que inviabilizam o acesso à terra e leis otomanas de confisco de terras não cultivadas durante três anos. As terras pertencentes a Abd Al-Hasib não ficaram imunes a esse processo de desapropriação.

Localizadas adjacente ao assentamento de Qiryat Arba, cuja população atual gira em torno de oito mil habitantes, suas terras também sofreram o mesmo processo de desapossamento a quais tantos outros palestinos estão sujeitos. De seus originais 21 dunums de terras, restam-lhe apenas 4 dunums (1 dunum = 1.000 m²). Como também em tantos outros casos, o motivo declarado pelas autoridades israelenses foi a proteção dos assentamentos através da criação de área de isolamento que provesse uma espécie de faixa de segurança para as instalações desse, como a escola para as crianças dos colonos que fica próxima às terras de Abd Al-Hasib.

Essas medidas de segurança foram impostas a custas da propriedade privada de um idoso inofensivo, sem que lhe fosse dado qualquer compensação pelas perdas, o que deveria ser a prática em qualquer sociedade sob o estado de direito. Ao contrário, os próprios assentamentos que provocaram essa destituição forçada é que estão em flagrante violação com as leis internacionais, de acordo com a Quarta Convenção de Genebra, segundo a qual é ilegal a transferência de uma população para territórios ocupados pela força ocupante.
Mais de 100 assentamentos israelenses foram erguidos desde 1967 na Cisjordânia, para os quais foram construídos em meio a um território alheio rodovias, sistemas de canalização de água, redes de luz e eletricidade... aos quais a população local, os palestinos, tem pouco ou nenhum acesso.

A partir de 1994, durante o processo de Oslo, foi estabelecido que a Cisjordânia seria divida em Áreas A, B e C. As áreas consideras A estariam  dali em diante sob controle total da Autoridade Nacional Palestina, também uma criação dos mesmos acordos, pelo menos em tese.

Já as áreas consideradas C (quase 2/3 da Cisjordânia) permaneceriam sob controle total israelense, sendo as Áreas B um misto das duas: controle civil palestino e militar israelense. Do mesmo modo que tantas outras nas imediações de assentamentos, as terras de Abd Al-Hasib caíram dentro da Área C. Isso significou que qualquer construção realizada dali em diante necessitaria da aprovação das autoridade militares israelenses.

Como regra geral, é praticamente impossível para um palestino conseguir permissão para construir nessa área, não restando outra opção a não ser fazê-lo ilegalmente. Ordens de demolição são emitidas pouco tempo depois do término das construções e, após o esgotamento de todos os recursos possíveis, aos quais a grande maioria sequer tem acesso, vem a demolição de fato.

Assim foi com a casa que Abd Al-Hasib construiu em suas terras em fins da década de 1990, demolida pouco tempo depois de sua construção, no ano de 2000. A retirada forçada de sua casa pelos soldados e policiais israelenses resultou em algumas seqüelas, principalmente em seu braço direito, quebrado por aqueles enquanto resistia à remoção forçada.

Seu filho buscou então uma solução para seu pai que insistia e ainda insiste em permanecer vivendo em suas terras até o dia que morrer. Comprou para ele um ônibus quebrado de uma companhia de Beit Sahur por 400 shekels para que pudesse continuar ali. Não sendo uma construção, o ônibus não está sob a ameaça de demolição pelas autoridades israelenses. Já há 10 anos, vive o idoso Abd Al-Hasib em seu ônibus, cerca de 20 metros de sua antiga casa demolida.

As condições dentro dessa residência, o ônibus, são consideravelmente austeras. Não há água encanada, nem banheiro. Há apenas alguns colchões, uma televisão, um rádio e um fogão a gás simplíssimo. Algumas janelas do ônibus estão quebradas ou faltando, o que durante o inverno torna as condições ali difíceis de serem suportadas. Adjacente ao ônibus encontra-se a árvore onde o idoso passa a maior parte do tempo. À primeira vista é possível pensar que alguém vivendo nessas condições sinta-se miserável e infeliz, mas não é o caso de Abd Al-Hasib:

"Eu tenho tudo aqui: pão, água. Eu prefiro viver aqui do que em um hotel cinco estrelas," diz ele apontando para o que mantém próximo ao alcance de suas mãos.

O insistente idoso permanece firme em sua terra, temendo que, caso a deixe, ela seja incorporada ao assentamento adjacente de Qiryat Arba. Os colonos dali costumavam importuná-lo regularmente até que fosse erguida cerca há oito anos. Entretanto, a mesma lhe barrou o acesso a maior parte de suas terras, restando apenas menos de um quinto do que tinha anteriormente. Ainda assim, esse exíguo lote de terra é visado por aqueles que desejam usá-lo para expansão do assentamento.

Alguns anos atrás um advogado veio até ele interessado em comprar suas terras e ofereceu-lhe um altíssimo valor por elas. Inicialmente, foi oferecido em torno de 30.000 dinares jordanianos por cada dunum de terra (um dinar jordaniano costuma valer entre 2 a 2,5 reais).

Suspeitando algo estranho, Abd Al-Hasib continuou negociando e conseguiu aumentar o valor para 100 mil dinares por dunum. Finalmente ele disse que não venderia a terra, já que sabia que tal preço só poderia ser pago por colonos ideológicos interessados na expansão do assentamento próximo. Então, disse que toda sua terra junta não valia 10 mil dinares jordanianos e expulsou o advogado dali.

Inicialmente, sua mulher lhe fazia companhia morando com ele no ônibus. Porém, há cerca de oito meses teve que se retirar dali por causa de problemas de saudade que praticamente a imobilizaram. Ela vive agora na casa do filho, há poucas centenas de metros dali. Agora resta apenas o velho solitário, sentado debaixo de sua árvore ou dormindo dentro de seu ônibus.

"Eu sou como um rei aqui na minha terra. Eu tenho uma TV e posso ouvir no rádio Umm Kulthum (famosa cantora egípcia). O rei da Jordânia não poderia vir aqui e viver aqui, pois precisaria de seus guarda-costas. Eu tenho só um protetor: Deus", afirma.

Resoluto em terminar seus dias sobre o chão que legitimamente  lhe pertence, o idoso Abd Al-Hasib Atta Zaloum resiste firme ao que é apenas um exemplo do lento avanço do processo de desapontamento que ocorre na atualidade em toda a Cisjordânia. Ao contrário do habitualmente veiculado pela mídia, não é violência a principal arma da maioria dos palestinos em sua longa luta contra quase 45 anos de ocupação, mas sim a paciente persistência como a do velho em seu ônibus.

* Gabriel Matyias Soares é brasileiro, um observador ecumênico em Hebron.

fonte: http://www.alcnoticias.net/interior.php?lang=689&codigo=20292&format=columna