ou
Enxergar
ou não, eis a questão
Eduardo
Ribeiro Mundim
Este
episódio talvez seja um dos mais conhecidos do Evangelho segundo
João.
O
Cego
Diferente
do cego de Jericó (Lc
18.35-43) que bradou insistentemente “Jesus, filho de Davi, tem
misericórdia de mim” e, respondendo ao questionamento de Jesus
solicitou-lhe a cura, o de Jerusalém (Jo
9) nada pediu. Parece que ele foi involuntariamente convocado a
participar de um drama de alta carga emocional, simbólica e
teológica. Cego de nascença (9.1,20), era figura conhecida onde
esmolava (9.8). Não é possível determinar sua idade, mas já
contava com anos suficientes para responder por si (9.21) – e a
introdução o coloca como “homem”, e não jovem. Portanto, uma
pessoa que nunca enxergou, supostamente avaliada pelos médicos da
época e submetida aos tratamentos oficiais e populares1
de então (o que inclui o uso de barro sobre os olhos2).
Sua situação familiar não é discutida no texto, mas é bastante
curiosa a reação dos seus pais frente ao milagre. Ao contrário do
filho, que enfrentou com ousadia crescente as autoridades da época,
estes acovardaram-se (9.21) não o defendendo nem se posicionando
sobre um milagre extraordinário na vida do filho. Este dado permite
imaginar que o cego não estava inserido em um ambiente familiar de
proteção e de amor.
Cegueira,
seja congênita ou adquirida, não era incomum no oriente médio
naquela época, por diversos fatores. A lei mosaica não dispunha de
uma regulamentação especifica sobre o cuidado com os cegos.
Provavelmente porque sua ideia básica era a de que não deveria
haver pobre na terra, sendo a solidariedade uma ação efetiva, e não
uma vaga ideia. Especificamente, a libertação de todos os escravos
no ano do jubileu, a proibição de tratar o devedor que se vendia a
si mesmo como escravo (Lv
25.39) e a obrigação de sustentar aquele que empobrecia (Lv
25.35). É curiosa a evolução para o conceito de desonra da
mendicância profissional (que, segundo a Lei, não deveria existir):
os fundos caritativos das comunidades judaicas não podiam ser usados
para auxiliá-los3.
A situação na época de Jesus deve ter se acentuado pela falta de
uma política de cuidados para com o pobre, assim como pela excessiva
taxação romana4.
Ainda
que excluído de diversas situações sociais pela deficiência
visual, estava inserido na sinagoga – pois dela foi expulso (9.34).
Se fosse descendente de Arão, estaria excluído do ofício
sacerdotal (Lv
21.17-20).
Os
Fariseus5
Como
grupo dentro do judaísmo daquela época, sua origem pode remontar ao
tempo de Esdras, e da construção do segundo templo. Eles parecem
ter surgido como consequência do estupor provocado pelo exílio:
como era possível para a raça dos filhos de Abraão, Isaac e Jacó
amargarem o exílio? como era possível que das doze tribos, dez
tenham desaparecido enquanto tais? A resposta, biblicamente
enraizada, encontrada por eles, foi "não termos cumprido a lei"
(Dt 28)6.
Impactados
pela dura lição da realidade, diligentemente procuram um recurso
para nunca mais caírem no mesmo erro. Cheios de desejo de fazerem a
vontade de Deus, escrutinam a Lei e dela extraem regras para que
jamais um judeu piedoso não tivesse referência sobre qual era a
vontade expressa de Deus para uma determinada situação. Tornam-se,
assim, os maiores especialistas nas escrituras de então. Dentre as
diversas escolas, ou seitas judaicas desta época, parecem ser os
mais populares entre o povo (os saduceus, por exemplo, eram elitistas
e muito mais favoráveis a aplicação literal da Lei) e os mais
democráticos.
Frente
ao milagre, o povo conduz o ex-cego aos fariseus; não aos saduceus
(classe economicamente mais abastada e com ligação política com o
dominador romano), ou aos sacerdotes (que eram do partido dos
saduceus), já que, diferentemente da “lepra”, não havia
disposição legal para que a cura fosse investigada. E por que o
fazem?
O
Milagre
Esta
cura não pode ser classificada como de uma “doença
psicossomática”, já que o cego assim o era desde seu nascimento –
portanto, fora de uma das definições modernas de doença
psicossomática: o corpo adoece, verdadeiramente (e não em uma
simulação, como na histeria), em função de conflitos sobre os
quais nada pode saber (chamados de inconscientes7).
Diversas
pessoas que o conheceram cego o veem agora enxergando, incluindo os
pais. Mas muitos duvidaram da sua identidade. Portanto, não pode ser
tratada como um caso de hipnose ou histeria coletiva, e nada há no
texto que corrobore esta tese.
A
história poderia ser encarada como uma lenda piedosa, com o intuito
de infundir bons sentimentos e ideais altruístas, além de
transmitir um ensino importante (por exemplo, que as doenças ou
eventos ruins não são, necessariamente, castigo divino). Se assim
fosse, o milagre seria um “recurso pedagógico”, Jesus seria
então um homem com boas ideias, destituído de poder real,
proclamando, em uma permanente loucura, ser o que não era (Jo
4.26, Mc
8.29, Jo
8.58). O evangelista, um contador de lendas, destituído de
comportamento a altura daquele estimulado pelo seu texto – um
embuste. Se este milagre não é verdadeiro, então não há razão
para se acreditar na gravidez sem relação sexual de nenhuma espécie
por parte de Maria, assim como a ressurreição deixaria de ser
crível. Estes dois eventos, por si só, minam todo o edifício do
Evangelho, tornando toda a esperança que ele traz uma fantasia sem
consequência nenhuma (I
Co 15).
Por
outro lado, por qual razão esta história não seria verdadeira?
Assumindo a identidade de Jesus como Filho de Deus que se fez homem
uma única ocasião na história da humanidade (portanto, fora da
possibilidade de verificação “científica”) qual a dificuldade
em acreditar no evento? A disposição preconceituosa de não se
acreditar em milagres?
Mas
este texto não fala do milagre em si, que é o aspecto de menor
importância, mas do que estava envolvido nele.
Os
dois principais atores do drama
Curiosamente,
neste evento Jesus não é o ator principal – é o secundário. O
centro do drama é o cego, ou as consequências da sua cura. E as
primeiras palavras dEle nesta história informam que ela é uma
manifestação da obra de Deus (9.3).
Contracenando
com ele, o segundo personagem, desta vez coletivo, os fariseus. Não
todos certamente, mas um certo número deles. Aqueles que
acompanhavam Jesus estariam entre eles (9.40)?
É
necessário observar como Jesus se ausenta da cena, e como Ele
retorna. Em contraste com a cura de outro cego (Mc
8), Ele não está presente para ser encontrado pelo ex-cego na
sua volta do tanque de Siloé.
A ausência é a chave para que a multidão8,
que não sabe o que ocorre, procurar aqueles que melhor poderiam
explicar fenômenos miraculosos – os fariseus. Estudiosos e
intérpretes experientes da Lei, poderiam fornecer a orientação
sobre o que acontecera, já que o provocador – Jesus, se retirara.
Este detalhe também parece único entre todos os milagres que Ele
realizou.
Jesus
retorna após o clímax, e se apresenta ao ex-cego aparentemente de
forma discreta, sem alarde. Em contraste com Mc 8, a cura se tornou
objeto de uma acalorada e apaixonada discussão, com implicações
sociais sobre a parte mais fraca.
Uma
Questão teológica
Qual
é a questão nesta história?
Ela
se inicia com a palavra “pecado”9,
e se encerra com ela: “Mestre, quem pecou...” (2) e “não
seriam culpados de pecado” (41).
Quem
pecou, o cego ou os pais? A questão sugere uma tensão teológica. O
profeta Ezequiel deixa claro que cada um leva as consequências do
seu pecado (Ez
18), mas, pelo menos do ponto de vista coletivo, toda a nação
amargava a derrota e a humilhação porque os pais não seguiram a
Lei como deveriam, e foram castigados com o exílio. É provável que
esta tensão estivesse no inconsciente de todos10.
Segundo
Josefo, fazia parte da crença dos fariseus a reencarnação como
modo de castigo11.
Esta crença não era uma unanimidade entre os judeus (os essênios e
os saduceus tinham pontos de vista diferentes). Mas o conceito de
calamidades enquanto castigo pelo pecado, assim como a possibilidade
da criança pecar ainda dentro do ventre materno, eram compartilhados
por muitos12.
Portanto, a questão levantada não era absurda, ainda que fosse
estranha às Escrituras veterotestamentárias.
E
a resposta de Jesus foi contrária a estes conceitos. Aquela cegueira
não era resultado do pecado de ninguém, mas era uma oportunidade
para a obra de Deus se manifestar naquela vida. Ou seja, às ideias
de então que procuravam explicar a presença do mal no mundo, Jesus
retoma o mistério dos sofrimentos do justo Jó. Assim como todas as
suas desventuras não tinham explicação nos seus atos, mas em fatos
muito além da sua possibilidade de conhecimento, todo o sofrimento
daquele homem faria sentido pela ação manifesta de Deus nele, e
que, até aquele momento, estava encoberta para todos13.
Jesus
introduz uma outra questão teológica, inédita – Ele era a luz do
mundo, e estava no tempo de realizar a obra de quem O enviou (9.4-5).
A questão não era o pecado cometido por alguém, mas que Deus tinha
uma obra a realizar / completar.
A
rigor, um cego de nascença é uma obra inacabada. Segundo Gênesis,
o homem foi formado do pó da terra, e é este pó que vai completar
aquela criação não terminada14.
Ao aplicar-lhe lama, feita com sua própria saliva, Ele invoca o ato
criador primordial de Deus – invocação poética e teológica
através de um ato que, naqueles tempos, poderia ser encarado com
“médico”.
Neste
ato inédito (9.32), Ele apresenta, dentro da tradição do Velho
Testamento de revelação a partir de aspectos cotidianos ordinários
(vide o profeta Oseias), a questão teológica que interessa: Ele
veio completar a revelação de Deus através de si mesmo, e esta
cura é uma demonstração de poder humilde (não há fanfarra, fogos
de artifício, trilha sonora ou aplauso da multidão) e de afirmação
de autoridade enquanto Filho Unigênito.
Uma
vida transformada
Até
que voltasse do banho em Siloé, o cego não se pronuncia. Ao
retornar, pelo milagre de não mais ser cego, ele passa a ser
percebido de modo diferente por aqueles que antes o conheceram.
A
cegueira o excluía da vida em comunidade. Caracterizava-o como um
fardo social, incapaz de produzir seu próprio sustento e
necessitando da “caridade alheia”. Ritualmente, o tornava inapto
para o sacerdócio, se fosse descendente de Arão – apenas os
fisicamente sem defeitos podiam oficiar. Aquele com algum defeito
estava ritualmente inadequado e como impedir que uma impureza
litúrgica fosse entendida como defeito moral?15
O
ato de completar a criação que Jesus executa o introduz na
sociedade do seu tempo. E a adoração do ex-cego a Jesus, ao final
da história, reconhecendo-o, o introduz na nova comunidade que Deus
propõe, a ser formada após as morte, ressurreição e ascensão de
Jesus.
Por
outro lado, o ato de completar a criação que Jesus executa o
direciona a um rápido caminho de exclusão. Conduzido aos doutores
da Lei para que aquele ato, que não tinha paralelo até então,
fosse explicado, ele corajosamente toma parte em um acalorado debate
sobre uma segunda questão teológica: sua cura era obra divina?
Os
fariseus se dividem: de um lado, um ato maravilhoso, inacreditável –
portanto, somente poderia ser divina; do outro, o questionamento se
Deus atuaria ao arrepio da Lei, que ordenava o descanso no sábado (e
o autor do milagre parecia tê-la violado em dois atos: praticado um
ato de cura não emergencial através de barro recentemente feito).
Em
poucas horas, o ciclo exclusão / inclusão se repete: excluído pela
cegueira congênita, incluído pelo milagre de receber a visão (e
não de restaurá-la, porque nunca a tivera), excluído por decisão
política da sinagoga, incluído na Igreja por sua confissão.
O
preço da unidade farisaica16
Os
especialistas na Lei são provocados pela multidão a explicar aquele
fato. O primeiro passo na investigação, é ouvir o causador do
problema. Como os fatos se sucederam? (9.15). Fora feita lama e
aplicada aos olhos, no sábado. Eis a primeira questão: um suposto
milagre realizado através da violação da Lei – e, no caso desta
lei específica, instituída no ato da criação do mundo, muito
antes da outorgada no monte Sinai. Se houve uma violação, há um
pecador – pode Deus atuar através de um pecador? (9.16) Há uma
divisão em função de um fato que desafia a teologia estabelecida.
A vida questiona a teoria.
A
dúvida não era sobre o fato de Jesus ser pecador – nisto parece
que todos estavam de acordo. A dúvida era se Deus todo santo poderia
agir através de um pecador. O que foi feito do restante das
Escrituras? Neste momento, a critica de Jesus17
ao sistema ético-teológico dos fariseus de sua época ganha um
exemplo prático: o sistema casuístico que deveria protegê?-los de
infringir a Lei (e, portanto, desagradar a Deus) a substitui.
Não
sendo possível encontrar uma saída teórica, devolvem a questão ao
curado: “você, que sofreu a ação, qual é o seu parecer?”
(9.17) E ele lhes devolve o problema: “é um profeta”. Sem entrar
na disputa teológica, ele assume o caráter miraculoso da cura e sua
origem divina.
O
próximo passo é questionar o fato (9.18). Os pais são convocados a
responder dois quesitos: aquela pessoa era o filho deles nascido
cego? Como deixou de sê-lo? Não sendo possível negar a paternidade
nem a maternidade, temerosos, respondem afirmativamente à primeira,
mas se esquivam da segunda (9.20,21). E por que o fazem? Para não
serem excluídos, pois a decisão de expulsar quem conferisse
autenticidade divina ao fato fora tomada e parece que era pública
(9.22). A unidade restaurada às custas da negação da realidade, da
recusa de rever conceitos, do medo de abandonar a zona de conforto.
Restava
o teimoso do curado, e para ele é direcionado um ultimato
conciliador: “dê a glória do fato a Deus, mas negue a autoridade
do agente” (9.24). Honestamente, ele responde não ter condições
para falar do agente, que ele apenas conhece pelo nome de Jesus – e
não há indicação de algum outro conhecimento. Mantem a única
verdade que conhece: “eu era cego, e agora vejo” (9.25).
Concedendo-lhe,
talvez didaticamente, uma nova chance, os fariseus requerem novamente
um relato dos fatos (9.26). Talvez na expectativa de perceberem algo
de demoníaco, ou do ex-cego perceber. No lugar de morder a isca, ou
aceitar a sugestão, ele demonstra sua compreensão crescente dos
fatos. Talvez por não ser fariseu, o que o liberava da lealdade a um
esquema fixo para interpretar a vida e seus fatos. Mas não sem uma
compreensão teológica da questão que dividira o grupo. E ele a
retoma nos termos deles: o milagre aconteceu → é absolutamente
inédito → retoma o ato criador primordial → Deus não opera
através de pecadores, mas foi este Jesus que conduziu a história →
não há explicação para sua origem → logo, não é possível ser
ele pecador (9.30-33).
Mantendo
a unidade do grupo, escamoteiam a questão teológica inicial e se
refugiam no desafio a autoridade. Expulsam-no após desacreditá-lo,
ancorados em uma teoria não unânime: suas palavras não podem ser
divinamente inspirada porque ele nascera cego em função dos
inúmeros pecados cometidos intraútero. E o fazem comparando-o a
eles mesmos, como cheios de retidão (Lc
18.10-14).
Conclusão
O
que deve ser enxergado?
Os
fariseus que acompanhavam Jesus foram alertados: manter-se cego
quando se vê a possibilidade de enxergar, é pecado.
Por
extensão, as atitudes embasadas na visão que poderia ser
transformada, mas é escolhido não fazê-lo, são pecado.
Foi
pecado os fariseus terem negado a questão teológica trazida por um
fato novo.
Foi
pecado contra o seu próprio sistema os fariseus terem excluído o
fraco, no lugar de buscarem compreender o novo fato e reavaliarem seu
sistema a partir de uma nova compreensão. Não que fossem obrigados
a remodelá-lo, mas a tarefa que puseram sobre seus próprios ombros,
um sistema que lhes permitisse sempre descobrir / cumprir a vontade
de Deus em todas as situações, os obrigava a um exercício
intelectual ao qual se recusaram.
1não
há razão para se imaginar que aquela sociedade se comportasse, no
tocante à busca de saúde, diferente da nossa atual, usando
recursos domésticos e profissionais
2Novo
dicionário da bíblia, vocábulo “doença e cura”, vol I, pag
440, 3ª ed, Edições Vida Nova, 1979
6HLE,
vocábulo “fariseus”, em JD Douglas O Novo dicionário da
bíblia, Edições Vida Nova, vol II, 1979, pg 605.
7Filho,
Júlio Melo. Psicossomática hoje. Ed Artes Médicas, Porto Alegre,
RS. 1992
8É
possível falar de duas multidões. Aquela que andava atrás de
Jesus e aquela que estava estática no local onde o cego esmolava. A
primeira deve ter acompanhado os atos, mas seguiu com Ele em frente;
a segunda, talvez nem tenha tomado conhecimento até o retorno do
não mais cego.
9Alison,
James. Fé além do ressentimento – fragmentos católicos em voz
gay. É Realizações. SP, SP, 2010, pg 36.
11Josefo,
Flávio. História dos hebreus. Casa Publicadora das Assembleias de
Deus, vl 2, pg 154, 1990, RJ, RJ.
13O
Rev Jorge Eduardo Diniz corretamente apontou que a resposta de Jesus
afasta por completo a possibilidade da reencarnação ser uma
possibilidade bíblica
14Alison,
op cit, pg 39
15Alison,
op cit, pg 38
16Alison,
op cit. Pg 42-49
17http://crerpensar.blogspot.com.br/2010/07/jesus-e-os-fariseus-uma-analise-de-um.html
texto atualizado em 15/07/12 com as observações 10 e 13
texto atualizado em 15/07/12 com as observações 10 e 13
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