quinta-feira, 7 de junho de 2012

A cura do cego desde o nascimento



ou
Enxergar ou não, eis a questão


Eduardo Ribeiro Mundim


Este episódio talvez seja um dos mais conhecidos do Evangelho segundo João.

O Cego

Diferente do cego de Jericó (Lc 18.35-43) que bradou insistentemente “Jesus, filho de Davi, tem misericórdia de mim” e, respondendo ao questionamento de Jesus solicitou-lhe a cura, o de Jerusalém (Jo 9) nada pediu. Parece que ele foi involuntariamente convocado a participar de um drama de alta carga emocional, simbólica e teológica. Cego de nascença (9.1,20), era figura conhecida onde esmolava (9.8). Não é possível determinar sua idade, mas já contava com anos suficientes para responder por si (9.21) – e a introdução o coloca como “homem”, e não jovem. Portanto, uma pessoa que nunca enxergou, supostamente avaliada pelos médicos da época e submetida aos tratamentos oficiais e populares1 de então (o que inclui o uso de barro sobre os olhos2). Sua situação familiar não é discutida no texto, mas é bastante curiosa a reação dos seus pais frente ao milagre. Ao contrário do filho, que enfrentou com ousadia crescente as autoridades da época, estes acovardaram-se (9.21) não o defendendo nem se posicionando sobre um milagre extraordinário na vida do filho. Este dado permite imaginar que o cego não estava inserido em um ambiente familiar de proteção e de amor.

Cegueira, seja congênita ou adquirida, não era incomum no oriente médio naquela época, por diversos fatores. A lei mosaica não dispunha de uma regulamentação especifica sobre o cuidado com os cegos. Provavelmente porque sua ideia básica era a de que não deveria haver pobre na terra, sendo a solidariedade uma ação efetiva, e não uma vaga ideia. Especificamente, a libertação de todos os escravos no ano do jubileu, a proibição de tratar o devedor que se vendia a si mesmo como escravo (Lv 25.39) e a obrigação de sustentar aquele que empobrecia (Lv 25.35). É curiosa a evolução para o conceito de desonra da mendicância profissional (que, segundo a Lei, não deveria existir): os fundos caritativos das comunidades judaicas não podiam ser usados para auxiliá-los3. A situação na época de Jesus deve ter se acentuado pela falta de uma política de cuidados para com o pobre, assim como pela excessiva taxação romana4.

Ainda que excluído de diversas situações sociais pela deficiência visual, estava inserido na sinagoga – pois dela foi expulso (9.34). Se fosse descendente de Arão, estaria excluído do ofício sacerdotal (Lv 21.17-20).


Os Fariseus5

Como grupo dentro do judaísmo daquela época, sua origem pode remontar ao tempo de Esdras, e da construção do segundo templo. Eles parecem ter surgido como consequência do estupor provocado pelo exílio: como era possível para a raça dos filhos de Abraão, Isaac e Jacó amargarem o exílio? como era possível que das doze tribos, dez tenham desaparecido enquanto tais? A resposta, biblicamente enraizada, encontrada por eles, foi "não termos cumprido a lei" (Dt 28)6.

Impactados pela dura lição da realidade, diligentemente procuram um recurso para nunca mais caírem no mesmo erro. Cheios de desejo de fazerem a vontade de Deus, escrutinam a Lei e dela extraem regras para que jamais um judeu piedoso não tivesse referência sobre qual era a vontade expressa de Deus para uma determinada situação. Tornam-se, assim, os maiores especialistas nas escrituras de então. Dentre as diversas escolas, ou seitas judaicas desta época, parecem ser os mais populares entre o povo (os saduceus, por exemplo, eram elitistas e muito mais favoráveis a aplicação literal da Lei) e os mais democráticos.

Frente ao milagre, o povo conduz o ex-cego aos fariseus; não aos saduceus (classe economicamente mais abastada e com ligação política com o dominador romano), ou aos sacerdotes (que eram do partido dos saduceus), já que, diferentemente da “lepra”, não havia disposição legal para que a cura fosse investigada. E por que o fazem?


O Milagre

Esta cura não pode ser classificada como de uma “doença psicossomática”, já que o cego assim o era desde seu nascimento – portanto, fora de uma das definições modernas de doença psicossomática: o corpo adoece, verdadeiramente (e não em uma simulação, como na histeria), em função de conflitos sobre os quais nada pode saber (chamados de inconscientes7).

Diversas pessoas que o conheceram cego o veem agora enxergando, incluindo os pais. Mas muitos duvidaram da sua identidade. Portanto, não pode ser tratada como um caso de hipnose ou histeria coletiva, e nada há no texto que corrobore esta tese.

A história poderia ser encarada como uma lenda piedosa, com o intuito de infundir bons sentimentos e ideais altruístas, além de transmitir um ensino importante (por exemplo, que as doenças ou eventos ruins não são, necessariamente, castigo divino). Se assim fosse, o milagre seria um “recurso pedagógico”, Jesus seria então um homem com boas ideias, destituído de poder real, proclamando, em uma permanente loucura, ser o que não era (Jo 4.26, Mc 8.29, Jo 8.58). O evangelista, um contador de lendas, destituído de comportamento a altura daquele estimulado pelo seu texto – um embuste. Se este milagre não é verdadeiro, então não há razão para se acreditar na gravidez sem relação sexual de nenhuma espécie por parte de Maria, assim como a ressurreição deixaria de ser crível. Estes dois eventos, por si só, minam todo o edifício do Evangelho, tornando toda a esperança que ele traz uma fantasia sem consequência nenhuma (I Co 15).

Por outro lado, por qual razão esta história não seria verdadeira? Assumindo a identidade de Jesus como Filho de Deus que se fez homem uma única ocasião na história da humanidade (portanto, fora da possibilidade de verificação “científica”) qual a dificuldade em acreditar no evento? A disposição preconceituosa de não se acreditar em milagres?

Mas este texto não fala do milagre em si, que é o aspecto de menor importância, mas do que estava envolvido nele.


Os dois principais atores do drama

Curiosamente, neste evento Jesus não é o ator principal – é o secundário. O centro do drama é o cego, ou as consequências da sua cura. E as primeiras palavras dEle nesta história informam que ela é uma manifestação da obra de Deus (9.3).

Contracenando com ele, o segundo personagem, desta vez coletivo, os fariseus. Não todos certamente, mas um certo número deles. Aqueles que acompanhavam Jesus estariam entre eles (9.40)?

É necessário observar como Jesus se ausenta da cena, e como Ele retorna. Em contraste com a cura de outro cego (Mc 8), Ele não está presente para ser encontrado pelo ex-cego na sua volta do tanque de Siloé. A ausência é a chave para que a multidão8, que não sabe o que ocorre, procurar aqueles que melhor poderiam explicar fenômenos miraculosos – os fariseus. Estudiosos e intérpretes experientes da Lei, poderiam fornecer a orientação sobre o que acontecera, já que o provocador – Jesus, se retirara. Este detalhe também parece único entre todos os milagres que Ele realizou.

Jesus retorna após o clímax, e se apresenta ao ex-cego aparentemente de forma discreta, sem alarde. Em contraste com Mc 8, a cura se tornou objeto de uma acalorada e apaixonada discussão, com implicações sociais sobre a parte mais fraca.


Uma Questão teológica

Qual é a questão nesta história?

Ela se inicia com a palavra “pecado”9, e se encerra com ela: “Mestre, quem pecou...” (2) e “não seriam culpados de pecado” (41).

Quem pecou, o cego ou os pais? A questão sugere uma tensão teológica. O profeta Ezequiel deixa claro que cada um leva as consequências do seu pecado (Ez 18), mas, pelo menos do ponto de vista coletivo, toda a nação amargava a derrota e a humilhação porque os pais não seguiram a Lei como deveriam, e foram castigados com o exílio. É provável que esta tensão estivesse no inconsciente de todos10.

Segundo Josefo, fazia parte da crença dos fariseus a reencarnação como modo de castigo11. Esta crença não era uma unanimidade entre os judeus (os essênios e os saduceus tinham pontos de vista diferentes). Mas o conceito de calamidades enquanto castigo pelo pecado, assim como a possibilidade da criança pecar ainda dentro do ventre materno, eram compartilhados por muitos12. Portanto, a questão levantada não era absurda, ainda que fosse estranha às Escrituras veterotestamentárias.

E a resposta de Jesus foi contrária a estes conceitos. Aquela cegueira não era resultado do pecado de ninguém, mas era uma oportunidade para a obra de Deus se manifestar naquela vida. Ou seja, às ideias de então que procuravam explicar a presença do mal no mundo, Jesus retoma o mistério dos sofrimentos do justo Jó. Assim como todas as suas desventuras não tinham explicação nos seus atos, mas em fatos muito além da sua possibilidade de conhecimento, todo o sofrimento daquele homem faria sentido pela ação manifesta de Deus nele, e que, até aquele momento, estava encoberta para todos13.

Jesus introduz uma outra questão teológica, inédita – Ele era a luz do mundo, e estava no tempo de realizar a obra de quem O enviou (9.4-5). A questão não era o pecado cometido por alguém, mas que Deus tinha uma obra a realizar / completar.

A rigor, um cego de nascença é uma obra inacabada. Segundo Gênesis, o homem foi formado do pó da terra, e é este pó que vai completar aquela criação não terminada14. Ao aplicar-lhe lama, feita com sua própria saliva, Ele invoca o ato criador primordial de Deus – invocação poética e teológica através de um ato que, naqueles tempos, poderia ser encarado com “médico”.

Neste ato inédito (9.32), Ele apresenta, dentro da tradição do Velho Testamento de revelação a partir de aspectos cotidianos ordinários (vide o profeta Oseias), a questão teológica que interessa: Ele veio completar a revelação de Deus através de si mesmo, e esta cura é uma demonstração de poder humilde (não há fanfarra, fogos de artifício, trilha sonora ou aplauso da multidão) e de afirmação de autoridade enquanto Filho Unigênito.


Uma vida transformada

Até que voltasse do banho em Siloé, o cego não se pronuncia. Ao retornar, pelo milagre de não mais ser cego, ele passa a ser percebido de modo diferente por aqueles que antes o conheceram.

A cegueira o excluía da vida em comunidade. Caracterizava-o como um fardo social, incapaz de produzir seu próprio sustento e necessitando da “caridade alheia”. Ritualmente, o tornava inapto para o sacerdócio, se fosse descendente de Arão – apenas os fisicamente sem defeitos podiam oficiar. Aquele com algum defeito estava ritualmente inadequado e como impedir que uma impureza litúrgica fosse entendida como defeito moral?15

O ato de completar a criação que Jesus executa o introduz na sociedade do seu tempo. E a adoração do ex-cego a Jesus, ao final da história, reconhecendo-o, o introduz na nova comunidade que Deus propõe, a ser formada após as morte, ressurreição e ascensão de Jesus.

Por outro lado, o ato de completar a criação que Jesus executa o direciona a um rápido caminho de exclusão. Conduzido aos doutores da Lei para que aquele ato, que não tinha paralelo até então, fosse explicado, ele corajosamente toma parte em um acalorado debate sobre uma segunda questão teológica: sua cura era obra divina?

Os fariseus se dividem: de um lado, um ato maravilhoso, inacreditável – portanto, somente poderia ser divina; do outro, o questionamento se Deus atuaria ao arrepio da Lei, que ordenava o descanso no sábado (e o autor do milagre parecia tê-la violado em dois atos: praticado um ato de cura não emergencial através de barro recentemente feito).

Em poucas horas, o ciclo exclusão / inclusão se repete: excluído pela cegueira congênita, incluído pelo milagre de receber a visão (e não de restaurá-la, porque nunca a tivera), excluído por decisão política da sinagoga, incluído na Igreja por sua confissão.


O preço da unidade farisaica16

Os especialistas na Lei são provocados pela multidão a explicar aquele fato. O primeiro passo na investigação, é ouvir o causador do problema. Como os fatos se sucederam? (9.15). Fora feita lama e aplicada aos olhos, no sábado. Eis a primeira questão: um suposto milagre realizado através da violação da Lei – e, no caso desta lei específica, instituída no ato da criação do mundo, muito antes da outorgada no monte Sinai. Se houve uma violação, há um pecador – pode Deus atuar através de um pecador? (9.16) Há uma divisão em função de um fato que desafia a teologia estabelecida. A vida questiona a teoria.

A dúvida não era sobre o fato de Jesus ser pecador – nisto parece que todos estavam de acordo. A dúvida era se Deus todo santo poderia agir através de um pecador. O que foi feito do restante das Escrituras? Neste momento, a critica de Jesus17 ao sistema ético-teológico dos fariseus de sua época ganha um exemplo prático: o sistema casuístico que deveria protegê?-los de infringir a Lei (e, portanto, desagradar a Deus) a substitui.

Não sendo possível encontrar uma saída teórica, devolvem a questão ao curado: “você, que sofreu a ação, qual é o seu parecer?” (9.17) E ele lhes devolve o problema: “é um profeta”. Sem entrar na disputa teológica, ele assume o caráter miraculoso da cura e sua origem divina.

O próximo passo é questionar o fato (9.18). Os pais são convocados a responder dois quesitos: aquela pessoa era o filho deles nascido cego? Como deixou de sê-lo? Não sendo possível negar a paternidade nem a maternidade, temerosos, respondem afirmativamente à primeira, mas se esquivam da segunda (9.20,21). E por que o fazem? Para não serem excluídos, pois a decisão de expulsar quem conferisse autenticidade divina ao fato fora tomada e parece que era pública (9.22). A unidade restaurada às custas da negação da realidade, da recusa de rever conceitos, do medo de abandonar a zona de conforto.

Restava o teimoso do curado, e para ele é direcionado um ultimato conciliador: “dê a glória do fato a Deus, mas negue a autoridade do agente” (9.24). Honestamente, ele responde não ter condições para falar do agente, que ele apenas conhece pelo nome de Jesus – e não há indicação de algum outro conhecimento. Mantem a única verdade que conhece: “eu era cego, e agora vejo” (9.25).

Concedendo-lhe, talvez didaticamente, uma nova chance, os fariseus requerem novamente um relato dos fatos (9.26). Talvez na expectativa de perceberem algo de demoníaco, ou do ex-cego perceber. No lugar de morder a isca, ou aceitar a sugestão, ele demonstra sua compreensão crescente dos fatos. Talvez por não ser fariseu, o que o liberava da lealdade a um esquema fixo para interpretar a vida e seus fatos. Mas não sem uma compreensão teológica da questão que dividira o grupo. E ele a retoma nos termos deles: o milagre aconteceu → é absolutamente inédito → retoma o ato criador primordial → Deus não opera através de pecadores, mas foi este Jesus que conduziu a história → não há explicação para sua origem → logo, não é possível ser ele pecador (9.30-33).

Mantendo a unidade do grupo, escamoteiam a questão teológica inicial e se refugiam no desafio a autoridade. Expulsam-no após desacreditá-lo, ancorados em uma teoria não unânime: suas palavras não podem ser divinamente inspirada porque ele nascera cego em função dos inúmeros pecados cometidos intraútero. E o fazem comparando-o a eles mesmos, como cheios de retidão (Lc 18.10-14).


Conclusão

O que deve ser enxergado?

Os fariseus que acompanhavam Jesus foram alertados: manter-se cego quando se vê a possibilidade de enxergar, é pecado.

Por extensão, as atitudes embasadas na visão que poderia ser transformada, mas é escolhido não fazê-lo, são pecado.

Foi pecado os fariseus terem negado a questão teológica trazida por um fato novo.

Foi pecado contra o seu próprio sistema os fariseus terem excluído o fraco, no lugar de buscarem compreender o novo fato e reavaliarem seu sistema a partir de uma nova compreensão. Não que fossem obrigados a remodelá-lo, mas a tarefa que puseram sobre seus próprios ombros, um sistema que lhes permitisse sempre descobrir / cumprir a vontade de Deus em todas as situações, os obrigava a um exercício intelectual ao qual se recusaram.


1não há razão para se imaginar que aquela sociedade se comportasse, no tocante à busca de saúde, diferente da nossa atual, usando recursos domésticos e profissionais
2Novo dicionário da bíblia, vocábulo “doença e cura”, vol I, pag 440, 3ª ed, Edições Vida Nova, 1979
6HLE, vocábulo “fariseus”, em JD Douglas O Novo dicionário da bíblia, Edições Vida Nova, vol II, 1979, pg 605.
7Filho, Júlio Melo. Psicossomática hoje. Ed Artes Médicas, Porto Alegre, RS. 1992
8É possível falar de duas multidões. Aquela que andava atrás de Jesus e aquela que estava estática no local onde o cego esmolava. A primeira deve ter acompanhado os atos, mas seguiu com Ele em frente; a segunda, talvez nem tenha tomado conhecimento até o retorno do não mais cego.
9Alison, James. Fé além do ressentimento – fragmentos católicos em voz gay. É Realizações. SP, SP, 2010, pg 36.
10Por outro lado, como bem me lembrou o Rev Jorge Eduardo Diniz, o que deveria estar na mente de todos eram os versos “porque eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. “ (Ex 20.5)
11Josefo, Flávio. História dos hebreus. Casa Publicadora das Assembleias de Deus, vl 2, pg 154, 1990, RJ, RJ.
13O Rev Jorge Eduardo Diniz corretamente apontou que a resposta de Jesus afasta por completo a possibilidade da reencarnação ser uma possibilidade bíblica
14Alison, op cit, pg 39
15Alison, op cit, pg 38
16Alison, op cit. Pg 42-49
17http://crerpensar.blogspot.com.br/2010/07/jesus-e-os-fariseus-uma-analise-de-um.html

texto atualizado em 15/07/12 com as observações 10 e 13

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