Este é um assunto
explosivo, que parece não render muita discussão na sociedade em
geral, e nas igrejas. O que é, a meu ver, uma pena.
Será que o ministrou
errou?
As críticas publicadas
no semanário
Carta
Capital
são absolutamente infundadas? Assinaria eu a réplica publicada no
sítio da
Ultimato?
Organizando meus
pensamentos, inicio pelo mais fácil: não há possibilidade da
prostituição voluntária (não estou pensando, por exemplo, nas
coreanas obrigadas a servirem sexualmente o invasor japonês na
primeira metade do século XX), em qualquer uma de suas formas
(voluntária, masculina, feminina, transgênera, cultual, etc), estar
em consonância com as Escrituras cristãs. Não há lugar, no Reino
de Cristo, para este ramo de atividade. Não é possível àquele(a)
que “nasceu de novo” usar dos serviços do(a)s trabalhadore(a)s
do sexo ou explorá-los de alguma forma.
O segundo pensamento
fácil é a antiguidade e onipresença desta atividade. Provavelmente
poucas culturas não a tem, ou nunca a tiveram. Possivelmente
continuará a existir, na legalidade ou na ilegalidade, até a
segunda vinda de Cristo.
Aumentando o nível de
dificuldade, quantos que se manifestaram sobre este assunto já
conversaram com prostituta(o)s? Quantos já ouviram suas histórias
de vida, seus recursos para manter em segredo seu trabalho, ou a
opinião de suas famílias? Quantos já se perguntaram e
investigaram, deixando de lado o jargão e a visão romântica, sobre
as razões da escolha por este mister?
O ofício do
meretrício
Cada profissão solicita
um perfil psicológico e social. Os perfis dos advogados não são os
mesmos dos professores que não são os mesmos dos engenheiros que
não são os mesmos dos cantores que não são os mesmos dos
assistentes sociais que não são os mesmos dos médicos...que não
são os mesmos dos trabalhore(a)s do sexo. Por exemplo, os
profissionais da medicina, enquanto grupo, se caracterizam também
pelo prazer sádico e de controle.
O que caracteriza o(a)s do sexo?
Algumas
pesquisas
sugerem a existência de 1,5 milhão de prostitutas no Brasil na
década 2000-2010. As analfabetas chegariam a 4%, e as com ensino
fundamental, 70%. Portanto, 26% possuiriam uma escolaridade maior. A
maioria ganharia de 1 a 4 salários-mínimos mensais.
Gabriela
Silva Leite,
é prostituta por opção desde os 22 anos de idade. Não por falta
de condições econômicas, mas por se identificar e realizar-se
nesta profissão. Vê no termo “puta” diversas conotações
positivas,
e luta para valorizar esta profissão. Casada, mãe e avó.
Publicamente reconhecida como prostituta. Será ela uma exceção?
Será sua atuação uma doença? Pergunto: nossas opiniões e crenças
sobre o mundo do meretrício fundamentam-se em informações
indiretas moldadas em preconceitos ou em ouvir os envolvidos no
assunto?
A questão da
felicidade
Portanto, caminhando
pelos trechos mais espinhosos, por que as prostitutas não podem ser
pessoas autenticamente felizes? Afinal, o que entendemos por
felicidade? Um estado permanente de satisfação, contentamento,
bem-estar e sucesso? Se assim for, não há ser humano feliz, pois
não há ninguém (apresente-se o que discordar) que seja
diuturnamente, sem interrupção, feliz. Há momentos felizes, mais
ou menos, na dependência de fatores externos e internos,
controláveis e não controláveis, mesmo em cenários extremamente
cruéis e degradantes, como nas guerras.
Rosana
Schwartz aponta que suas pesquisas sugerem entre 5% e 6% as
prostituas felizes com a profissão.
Dirceu Greco questiona se felicidade não estaria no poder ser feliz
mesmo ganhando a vida de um modo duro
– o que não é exclusividade da prostituição.
Verdade que “vida
fácil” é o que a maioria delas não tem. Programas de R$10,00 a
R$20,00, com as “despesas profissionais” (artigos de limpeza,
preservativos, hotel que lhes serve de local de trabalho) por sua
conta, quantos clientes (e que clientes!) deveriam atender para
receber, livres, um salário-mínimo? Supondo que não haja “cano”,
nem subornos a pagar, dentre outras variáveis. Verdade que as menos
afortunadas social e culturalmente sejam felizes em escala inferior
àquelas de nível superior.
Marco Lacerda
conta o que ouviu de um amigo, prostituto homossexual: sentia-se
usado, como um objeto. Assim se sentem muitas garotas de programa:
“tenho nojo de homens”.
Apesar da remuneração,
apesar da insalubridade, apesar do preconceito, apesar da hipocrisia,
a prostituição permanece como opção abraçada, sem dramas, por
dezenas de milhares de mulheres. Inclusive porque há clientes em
número suficiente para estas dezenas de milhares em um esquema de
alta rotatividade.
Novamente insisto: não é
uma atitude / atividade que tenha respaldo moral no Evangelho de
Jesus Cristo.
Arrisco uma afirmativa:
não é uma atividade procurada apenas por ser a “única opção
que restou para a sobrevivência”.
É uma atividade exercida
por pessoas que negam a obrigação da relação entre sexo e
afetividade, que veem na atividade sexual apenas um “descarregar
das pulsões”, um alívio de uma necessidade biológica. Pessoas
que são “estranhos morais” daqueles que têm como base da
moralidade as Escrituras cristãs. Mas são pessoas regidas por um
código moral, indubitavelmente (aliás, haverá sociedade, ou grupo
social, verdadeiramente amoral?).
Logo, a questão do
Ministro da Saúde se define pela moralidade e não pela veracidade
da afirmativa exposta em um dos cartazes: “eu sou feliz sendo
prostituta”.
E de onde surgiu esta
frase? Segundo Dirceu Greco, das próprias prostitutas,
acompanhada de outras, como “eu não posso ficar sem camisinha, meu
amor”.
O artigo publicado no
sítio da Ultimato levanta que a questão da campanha, antes do seu
abortamento, é a aprovação moral implícita da prostituição,
e não o direito à saúde, ao respeito.
Proteção a quem?
Mas, como já comentado,
a partir de qual moral? Sem dúvida, não há aprovação a partir da
moral cristã. Mas este país, como talvez a maior parte nas nações,
é uma amálgama de estranhos morais, onde a legislação tende a
refletir o equilíbrio de poder entre eles. Equilíbrio de poder não
é sinônimo de maioria, mas da capacidade de articular para obter
sucesso político. E, tomando a moral cristã como base, como se
justifica a imposição de uma moral sobre a outra, lembrando que as
duas são estranhas entre si, e abraçadas por razões não restritas
às intelectuais?
Uma das perdas neste
debate abortado foi esta: que país de estranhos morais queremos e
como nos articularemos para sê-lo?
Assumindo o número de
1,2 milhão de prostitutas, qual é o número de clientes? Difícil
precisar, e desconheço alguma estatística. Mas é necessário que
seja muito superior. Quantas vezes? 5? 10? Somente são vendidos
produtos com compradores. Portanto, só há prostitutas por haver
pessoas, em grande número, que desvinculam afetividade de atividade
sexual; que fantasiam o exercício da genitalidade em um contexto de
domínio, posse, compra, e não na troca, doação e igualdade. Não
são elas que têm uma profissão de risco; são seus clientes que
mantém um risco permanente à saúde, inclusive quando pagam a mais
pelo sexo sem preservativo. Clientes que incluem suas esposas no
risco, pois a clientela, na prostituição, vai de solteiros a
casados, de mulheres a travestis. Aparentemente, os idealizadores da
campanha preocuparam-se com o lado mais fraco da equação, as
trabalhadoras. O mais fraco por serem mulheres que consentem, em
troca do dinheiro que as sustenta e as suas famílias (quando as
têm), serem usadas e rapidamente descartadas. Parece-me que ao
protegê-las, a rede de segurança se espalha por uma fatia bem maior
da sociedade. E este fato não foi analisado pelo Guilherme de
Carvalho ao sugerir que elas buscam um “direito especial”.
O argumento científico
A ciência nunca foi uma
atividade ideológica ou moralmente neutra. Sua agenda também é
determinada pelo contexto sociopolítico onde ela é executada. E ela
não é um ser, muito menos dotado de autonomia. É uma atividade
desenvolvida por seres humanos com uma agenda, com uma ideologia, com
uma moralidade, com necessidades econômicas. Equivoca-se gravemente
quem defende sua argumentação com “a ciência diz que”. O mais
correto seria dizer, no máximo, “o modo como eu interpreto os
dados a minha disposição, e que foram coletados pela metodologia
tal e analisados pela técnica estatística pertinente, permite que
eu conclua que, na minha amostragem tal situação...”
Não existe uma disputa
entre a ciência “laica” do Estado e a ciência “religiosa”
de grupos extra-Estado. Existe um conjunto de dados que, dentro da
metodologia utiliza, sugere ser mais eficiente o combate à AIDS
quando se reforça a autoestima dos envolvidos. Moralizar as
consequências destes estudos é negar as suas conclusões sem
analisá-los. É condenar sem provas, é condenar sem ouvir o
acusado.
Infelizmente, o Guilherme
não completou a crítica com a análise dos trabalhos. Mas reduziu-a
à moral. Pergunto: devo deixar as prostitutas se resumirem, enquanto
seres humanos, exclusivamente ao que elas desempenham
profissionalmente? Serão pessoas absolutamente más, não
merecedoras de nenhum cuidado, exclusivamente por serem meretrizes?
A única possibilidade,
neste quesito, é demonstrar de modo razoável que as conclusões dos
ditos trabalhos não se sustentam em função dos fatos tais. Ou pela
apresentação de trabalhos igualmente válidos com conclusões
opostas.
Evangelho/evangélicos
e política
Os evangélicos – e eu
sou evangélico professo em denominação histórica – teimam em
sonhar, politicamente, com o imperador Constantino e com o Velho
Testamento. Constantino (tenho cá minhas dúvidas sobre sua real
experiência religiosa) alçou o cristianismo à religião
estatal/imperial, com todos os benefícios decorrentes. O que,
provavelmente, subsidiou o uso do aparelho repressivo do Estado
contra os hereges alguns séculos depois. O Velho Testamento regulava
uma sociedade na qual não havia o direito de escolha: pertencia-se
ao povo eleito, e a todo o seu ordenamento
jurídicio-litúrgico-sacerdotal-teológico compulsoriamente. Mas o
Novo Testamento traz a única teocracia possível neste mundo: a
Igreja. E esta desprovida do poder da força humana; unicamente
fortalecida pelo Espírito Santo.
Não consigo ver nas
Escrituras nenhuma possibilidade razoável de legitimidade em impor,
pela força estatal (que pode significar também o voto), a moral
cristã (que eu, enquanto cristão, voluntariamente aceito e me
submeto) àqueles que a recusam.
Neste sentido concordo
com a crítica do Pedro Serrano, publicada pela Carta Capital, em
relação à bancada chamada de evangélica. O seu interesse
eleitoreiro, o seu despreparo para servir àqueles que não são
evangélicos (o que é uma traição ao Evangelho), a sua
incapacidade de ouvir, e o seu desejo de poder são fonte permanente
de constrangimento para mim. Repito, sou protestante, membro e
oficial de igreja histórica. E não acredito estar sozinho neste
desconforto.
Pergunto à tal bancada:
qual é a proposta realista (ou seja, excluindo o fim da
prostituição) que ela tem para o enfrentamento das doenças
sexualmente transmissíveis e da AIDS? Qual a proposta realista (ou
seja, excluindo o fim da profissão de prostituta) que ela tem para,
sem humilhar quem já é muito humilhada, melhorar a qualidade de
vida destas mulheres, reduzindo os riscos à saúde delas e dos seus
clientes e das esposas dos seus clientes?
Afirmo à tal bancada: a
inexistência de proposta realista é a aceitação implícita da
realidade tal como ela hoje é.
Mas temo que esta tal
bancada acenda uma vela aos pés de Pôncio Pilatos.
Por último, dou minha
opinião. O ministro errou ao cancelar a campanha – talvez devesse
tê-la discutido um pouco melhor de modo a não ferir nossas
suscetibilidades. O ministro errou vergonhosamente ao demitir o
Prof.
Dr. Dirceu Greco – ato este tomado, aparentemente, por não ter
coragem de ser, e não estar, ministro da saúde deste país.