segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Das catedrais às cruzes humanas

Antonio Carlos Ribeiro

Cuiabá, sábado, 7 de novembro de 2009

A manifestação do Cardeal Walter Kasper, presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, conhecido por sua cultura teológica e trânsito em ambientes ecumênicos europeus, chama os cristãos a despertarem e se levantarem. Ao afirmar que "querem construir uma realidade que não seria mais a Europa, porque sem cristianismo a Europa não existe", mostra lucidez, mas fica sem impacto em ambientes teológicos católicos, ecumênicos e no universo intelectual e político europeu, por causa dos desdobramentos contraditórios.

Kasper é conhecido como um teólogo lúcido, com clareza não apenas conceitual, mas também pastoral. Sua ascensão às diversas funções foi marcada pelos critérios clássicos da formação, capacidade de diálogo, experiência pastoral, como padre e bispo, e acadêmica, como professor de teologia em universidades europeias e intercâmbios. Isso o fez aprofundar temas teológicos relevantes, desenvolvendo linguagem diplomática para lidar com a mídia e o grande público, e bases conceituais consistentes, para falar com a cúpula, chegando a confrontar-se com setores incumbidos do zelo pela Doutrina da Fé, e a assustar grupos de visão tridentina, associados à direita, com militância agressiva e recursos financeiros.

Sua consistência teológica chegou a criar problemas diplomáticos. Sendo a maior autoridade presente na assembleia do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre, a chefia da comitiva foi confiada a um bispo sem expressão. Ao presidir o Conselho para a unidade, ele trouxe uma aura de seriedade teológica e disposição de diálogo pastoral, mas isso não implicou autonomia institucional, mesmo tendo exigido esforços, desgastes e conflitos pessoais para lidar com teólogos e lideranças dos mundos protestante, judaico e muçulmano.

Em tempos difíceis

A falta de impacto em ambientes católicos e ecumênicos tem a ver com o esforço para movimentar-se na estrutura de traços conservadores, na qual precisa atender demandas tradicionais, com lógicas de poder, acordos e resultados. Embora o discurso de defesa do cristianismo, das catedrais e das cruzes na Europa pareça claro, na verdade aponta para o lado menos grotesco dos desastres causados pela civilização cristã, das cruzadas ao nazismo, e uma prática pendular que pede perdão, mas mantém estrutura imperial, defende a família, mas não deixa os padres se casarem, elogia as mulheres, mas não lhes dá poder eclesial.

Já no mundo intelectual e político europeu, sob influência do galicanismo, as resistências são maiores. Que a maior parte da Europa seja cristã é uma dúvida. Minorias comandarem maiorias é verdade, e não apenas na religião. Sobretudo hoje, quando essas visões supõem a existência da cristandade, que já acabou. Sem o sustentáculo de imperadores e nobres, a cruz tem deixado de ser chave para todas as portas. Dizer que cruz é símbolo cultural, agrava a situação. Para os muçulmanos expulsos da península ibérica, para os judeus que migraram por toda a Europa e, hoje, para minorias de imigrantes, refugiados e desterrados, o efeito é outro.

O último elemento pelo qual a reação se afasta das reações do poder e toma a praça é a laicidade. As sociedades são pluralistas, as pessoas têm aprendido a conviver com as diferenças, tolerância e virtude tornaram-se virtudes em todas as regiões que querem crescer. Mas não raras vezes esbarra na instituição que mais pleiteia sua defesa, na postura intolerante de líderes cristãos e nos setores com menor índice de educação. Se o laicismo se mostra intolerante, de quem aprendeu esse comportamento?

Admite que a cruz foi usada muitas vezes para perpetrar o mal, mas tenta resgatar seu significado, não crendo que alguém a use desse modo hoje. E associa o desaparecimento desse símbolo ao vazio e à secularização. De fato, o grito do cardeal se integra a um discurso escarmentado, de lamento e de castigo duro, para lembrar Claude Geffré, numa atmosfera religiosa, política e econômica que cimenta uma ordem social, na qual quanto mais se resiste, mais se torna irreversível o retorno ao mundo que não se quer deixar morrer.

É preciso guardar o discurso e aguardar os sinais dos tempos, afastando-se da oficialidade para recuperar a credibilidade. Ouvir os cristãos, ordenados e leigos, revela sabedoria histórica. Comblin disse que o cristianismo sempre migrou e agora pode ir para a Índia e a China. Para tal, é fundamental lembrar que as igrejas não dão a última palavra sobre o sentido da história. O que podem fazer é lembrar a necessidade de espiritualidade, de atendimento à busca de sentido, da urgência de limite às aventuras tecnológica e militar, e da necessidade de ser mais na relação com a alteridade e o Absoluto, como lembrou Brighenti.

Para dar conta do diálogo entre igrejas, religiões e sociedades, é preciso libertar a mensagem cristã da fixação regressiva na recomposição da unidade perdida, lembrou o professor de Teologia da Universidade Católica de Pernambuco,Degislando Lima. Conquanto não seja desejável, a Europa pode sobreviver sem cruzes e catedrais. Mas terá dificuldades se o clamor das populações, das minorias, e dos discriminados dos quatro cantos do planeta não for atendido.

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