Estevan F. Kirschner*
Introdução1
Nos dias de hoje, ainda no início do século XXI, há nitidamente um declínio de influência do Cristianismo
na sociedade ocidental e, por extensão, na sociedade brasileira. Algumas razões para esse declínio
poderiam ser:
Nos dias de hoje, ainda no início do século XXI, há nitidamente um declínio de influência do Cristianismo
na sociedade ocidental e, por extensão, na sociedade brasileira. Algumas razões para esse declínio
poderiam ser:
– a privatização da fé, a partir de um individualismo exacerbado do ser humano moderno, e que se estende intensamente na assim chamada era pós-moderna;
– o pluralismo religioso, com uma grande ênfase no sincretismo religioso e no retorno (romântico) a religiões mais primitivas (paganismo);
– o acanhamento e, muitas vezes, o acovardamento do Cristianismo diante de diversos desafios candentes do mundo pós-moderno. Como exemplo, basta mencionar a questão ambiental e o “silêncio quase ensurdecedor” sobre o assunto, da parte da igreja e da teologia;
– o ostracismo (reclusão) no “gueto” evangélico, com forte tendência para a alienação em relação ao mundo (“Lugar de crente é ... na Igreja [?]”)
O Protestantismo brasileiro atual deixou de lado uma importante percepção que marcou fortemente a Reforma Protestante do séc. XVI, que via o Evangelho, e a Palavra de Deus no seu todo, como juiz da sociedade e do mundo (além, é claro, da própria Igreja). Mais do que trazer a mensagem de salvação ao mundo, a Igreja, munida do Evangelho, também deveria assumir uma postura crítica em relação à sociedade. Para que isso acontecesse, seria necessário haver algum tipo de interação entre Igreja e sociedade. Isso está tornando-se cada vez mais difícil, dadas as razões alistadas acima.
Seria muito importante que a Igreja Protestante (Evangélica) retornasse aos ideais da Reforma, como por exemplo ao princípio da sola Scriptura, não só na teoria, mas principalmente na prática. A fim de ilustrar o que seria uma possível proposta bíblica de interação e diálogo entre o Evangelho e o mundo que Deus deseja resgatar por meio do Filho, tomamos como modelo a atividade missionária de Paulo descrita em Atos 17.
Algumas observações básicas sobre o texto de At 17 serão importantes aqui, especialmente, o perfil missionário de Paulo apresentado nesta passagem.
O apóstolo Paulo está em Atenas, centro da arte, da cultura, da filosofia e da religião do mundo greco-romano em meados do século I AD. O ponto de partida para a atuação de Paulo em Atenas (da sua atividade descrita na sinagoga, na praça e no Areópago) é uma profunda indignação contra a idolatria reinante na cidade (At 17.16).
O primeiro aspecto a destacar é o contato de Paulo com o ambiente religioso, a sinagoga.
– o acanhamento e, muitas vezes, o acovardamento do Cristianismo diante de diversos desafios candentes do mundo pós-moderno. Como exemplo, basta mencionar a questão ambiental e o “silêncio quase ensurdecedor” sobre o assunto, da parte da igreja e da teologia;
– o ostracismo (reclusão) no “gueto” evangélico, com forte tendência para a alienação em relação ao mundo (“Lugar de crente é ... na Igreja [?]”)
O Protestantismo brasileiro atual deixou de lado uma importante percepção que marcou fortemente a Reforma Protestante do séc. XVI, que via o Evangelho, e a Palavra de Deus no seu todo, como juiz da sociedade e do mundo (além, é claro, da própria Igreja). Mais do que trazer a mensagem de salvação ao mundo, a Igreja, munida do Evangelho, também deveria assumir uma postura crítica em relação à sociedade. Para que isso acontecesse, seria necessário haver algum tipo de interação entre Igreja e sociedade. Isso está tornando-se cada vez mais difícil, dadas as razões alistadas acima.
Seria muito importante que a Igreja Protestante (Evangélica) retornasse aos ideais da Reforma, como por exemplo ao princípio da sola Scriptura, não só na teoria, mas principalmente na prática. A fim de ilustrar o que seria uma possível proposta bíblica de interação e diálogo entre o Evangelho e o mundo que Deus deseja resgatar por meio do Filho, tomamos como modelo a atividade missionária de Paulo descrita em Atos 17.
Algumas observações básicas sobre o texto de At 17 serão importantes aqui, especialmente, o perfil missionário de Paulo apresentado nesta passagem.
O apóstolo Paulo está em Atenas, centro da arte, da cultura, da filosofia e da religião do mundo greco-romano em meados do século I AD. O ponto de partida para a atuação de Paulo em Atenas (da sua atividade descrita na sinagoga, na praça e no Areópago) é uma profunda indignação contra a idolatria reinante na cidade (At 17.16).
O primeiro aspecto a destacar é o contato de Paulo com o ambiente religioso, a sinagoga.
1. O Evangelho em diálogo com o Sagrado (o Religioso) — At 17.16s
A estratégia missionária de Paulo foi sempre a de visitar primeiramente a sinagoga judaica por onde quer que ele passasse, a partir do princípio da prioridade do judeu quanto ao Evangelho, normatizado pelo apóstolo em Rm 1.16s. At 17.2 exemplifica o costume paulino. Certamente o apóstolo Paulo sentia-se à vontade na sinagoga, o ambiente religioso judaico, onde encontrava judeus, prosélitos e simpatizantes do Judaísmo, e a prática litúrgica e piedosa da oração, da leitura e da interpretação da Bíblia Hebraica (o AT). No livro de Atos encontramos um exemplo mais detalhado, e provavelmente representativo, da pregação de Paulo numa sinagoga no capítulo 13.14-41. Nessa passagem, Paulo faz uma retrospectiva dos pontos principais da história de Israel, concluindo com o lugar central da morte e da ressurreição do Messias Jesus nessa “história da salvação” proposta por Deus.
Em At 17.17 Lucas nos diz que Paulo “discutia” com os judeus na sinagoga. Seu estilo evangelístico não era o monólogo, mas o diálogo, não era a imposição (unilateral) de ideias (e que ideias!), mas a interação, envolvendo um intenso debate com seus ouvintes e interlocutores. Isso é característico de Paulo em Atos, como Lucas apresenta no contexto imediato à passagem sobre Paulo em Atenas, At 17.2s.
Quando observamos o treinamento e a formação de pastores nos seminários e faculdades teológicas notamos que nem sempre se privilegia esse estilo “dialético” de evangelização. Pior ainda, na maioria das vezes, o futuro pastor-teólogo é preparado unicamente para atuar na esfera do “sagrado”, do religioso. O teólogo americano Walter Wink fala da preparação teológica recebida nos seminários evangélicos (americanos, mas seria diferente no Brasil?) na década de 1980 como uma “incapacidade treinada para lidar com os problemas de pessoas reais em suas vidas diárias” 2.
O problema é que, muitas vezes, pastores e teólogos cumprem mal a sua responsabilidade no âmbito religioso e, além disso, não têm qualquer abertura para os horizontes do lado de fora da “sinagoga”. Paulo, logo, sai da sinagoga e chega à praça principal de Atenas (At 17.17). Sua interação, apesar da familiaridade com o ambiente da sinagoga, se estende com uma naturalidade intrigante para o ambiente do não-sagrado, a praça.
A estratégia missionária de Paulo foi sempre a de visitar primeiramente a sinagoga judaica por onde quer que ele passasse, a partir do princípio da prioridade do judeu quanto ao Evangelho, normatizado pelo apóstolo em Rm 1.16s. At 17.2 exemplifica o costume paulino. Certamente o apóstolo Paulo sentia-se à vontade na sinagoga, o ambiente religioso judaico, onde encontrava judeus, prosélitos e simpatizantes do Judaísmo, e a prática litúrgica e piedosa da oração, da leitura e da interpretação da Bíblia Hebraica (o AT). No livro de Atos encontramos um exemplo mais detalhado, e provavelmente representativo, da pregação de Paulo numa sinagoga no capítulo 13.14-41. Nessa passagem, Paulo faz uma retrospectiva dos pontos principais da história de Israel, concluindo com o lugar central da morte e da ressurreição do Messias Jesus nessa “história da salvação” proposta por Deus.
Em At 17.17 Lucas nos diz que Paulo “discutia” com os judeus na sinagoga. Seu estilo evangelístico não era o monólogo, mas o diálogo, não era a imposição (unilateral) de ideias (e que ideias!), mas a interação, envolvendo um intenso debate com seus ouvintes e interlocutores. Isso é característico de Paulo em Atos, como Lucas apresenta no contexto imediato à passagem sobre Paulo em Atenas, At 17.2s.
Quando observamos o treinamento e a formação de pastores nos seminários e faculdades teológicas notamos que nem sempre se privilegia esse estilo “dialético” de evangelização. Pior ainda, na maioria das vezes, o futuro pastor-teólogo é preparado unicamente para atuar na esfera do “sagrado”, do religioso. O teólogo americano Walter Wink fala da preparação teológica recebida nos seminários evangélicos (americanos, mas seria diferente no Brasil?) na década de 1980 como uma “incapacidade treinada para lidar com os problemas de pessoas reais em suas vidas diárias” 2.
O problema é que, muitas vezes, pastores e teólogos cumprem mal a sua responsabilidade no âmbito religioso e, além disso, não têm qualquer abertura para os horizontes do lado de fora da “sinagoga”. Paulo, logo, sai da sinagoga e chega à praça principal de Atenas (At 17.17). Sua interação, apesar da familiaridade com o ambiente da sinagoga, se estende com uma naturalidade intrigante para o ambiente do não-sagrado, a praça.
2. O Evangelho em diálogo com o Profano (o Mundano) — At 17.17s
Paulo, agora, vai para a agora, a praça principal da cidade. A praça é um lugar movimentado e palco de manifestações, das mais diversas, tanto de caráter religioso pagão, como filosófico e cultural. Na praça, Paulo encontra todo o tipo de pessoa, trabalhadores e desocupados, marginais e imorais, eruditos e ignorantes – algo bem diferente do ambiente religioso e solene da sinagoga.
O “discutia” do início do versículo 17 (na sinagoga) continua regendo a atuação paulina na praça pública. É interessante notar que Paulo não escolhe interlocutor. Não precisa fazer primeiro uma “curso”, ou um seminário, para depois responder às indagações de quem quer que seja; ele simplesmente debatia “com aqueles que por ali se encontravam”.
O assunto não poderia ser mais bombástico: a crítica ao paganismo na cidade de Atenas, incluindo, como é possível imaginar, uma refutação contundente da idolatria, que tanto irritara o apóstolo. Em outra parte do livro, Lucas fornece também uma ilustração da pregação do apóstolo num ambiente predominantemente pagão e idólatra. Em At 14.14-18 encontramos um resumo da abordagem paulina em relação aos pagãos, na qual ele parte da revelação de Deus na natureza criada para argumentar sobre a necessidade de se atentar para o agir de Deus em Jesus Cristo, as “boas notícias”, o Evangelho (At 14.15).
A exposição pública do Evangelho num ambiente profano (comum) requer a coragem de assumir riscos bastante reais: em primeiro lugar, o risco da rejeição. Paulo é chamado de “tagarela” (grego spermologos), cf. 17.18b, uma alcunha ofensiva; em segundo lugar, o risco de confusão com ideias alheias ao Evangelho de Cristo. Alguns ouvintes na praça pensavam que Paulo pregava dois deuses estrangeiros, um tal de Jesus e uma certa Anastasis, cf. 18c. Anastasis é o substantivo feminino grego para “ressurreição”. Como não criam na ressurreição dos mortos, a tendência natural era tomar a palavra como nome próprio que designaria uma divindade feminina. Assim, para a mente confusa de alguns pagãos atenienses, Paulo falava de um estranho casal de divindades, “Jesus e Anastasis”.
Mesmo correndo o risco desse tipo de confusão, Paulo nos dá um exemplo dessa difícil, mas necessária, interação do Evangelho com o profano, em especial, da persistência em contradizer a idolatria, mesmo com os possíveis mal-entendidos que isso implicava. Em meados do séc. XX, o teólogo suíço Karl Barth advertia seus estudantes sobre a importância fundamental de se ter a Bíblia na mão e o jornal do dia na outra mão, a fim de estarem atentos às possibilidades e à própria necessidade de interação do Evangelho com o mundo e a sociedade em que vivemos.
Os protestantes e evangélicos, porém, têm problemas sérios aqui: primeiramente, há uma nítida falta de atenção ao que acontece no mundo e, até mesmo, ao contexto mais próximo da igreja (monasticismo evangélico?). No séc. XVI, os adeptos da reforma de Lutero na Alemanha “protestaram” (palavra de tonalidade claramente política) diante das autoridades imperiais, demandando o direito de exercitarem a fé cristã a partir dos ensinos de Lutero. Daí vem o nome “protestante”; um nome que por si só (embora de conotação negativa) sugere uma forte interação com a sociedade, ainda que seja uma postura de não-conformismo. Em segundo lugar, é perceptível uma incapacidade generalizada de articulação do Evangelho num ambiente não-religioso, a falta de comunicação apropriada. Até mesmo inventamos um novo dialeto: o “evangeliquês”. Exigimos que as pessoas de fora aprendam esse dialeto para se relacionarem com Deus – na língua que, supostamente, somente Deus e os crentes entendem. Mas a encarnação do logos de Deus (Jo 1.14), bem como a prática missionária paulina, demonstra exatamente o oposto disso: Deus vem ao encontro do ser humano, dentro das limitações da “carne”, em seu próprio Filho que revela a Divindade com um rosto humano (Jo 1.18).
Na agora de Atenas, Paulo se torna um incentivo para que nos esforcemos na promoção e na comunicação do Evangelho por todos os meios possíveis, inclusive a mídia, sem comprometer, é claro, a integridade da mensagem em troca de comunicação eficaz.
A passagem de Paulo por Atenas ainda reserva um terceiro momento, que sintetizamos a seguir.
Paulo, agora, vai para a agora, a praça principal da cidade. A praça é um lugar movimentado e palco de manifestações, das mais diversas, tanto de caráter religioso pagão, como filosófico e cultural. Na praça, Paulo encontra todo o tipo de pessoa, trabalhadores e desocupados, marginais e imorais, eruditos e ignorantes – algo bem diferente do ambiente religioso e solene da sinagoga.
O “discutia” do início do versículo 17 (na sinagoga) continua regendo a atuação paulina na praça pública. É interessante notar que Paulo não escolhe interlocutor. Não precisa fazer primeiro uma “curso”, ou um seminário, para depois responder às indagações de quem quer que seja; ele simplesmente debatia “com aqueles que por ali se encontravam”.
O assunto não poderia ser mais bombástico: a crítica ao paganismo na cidade de Atenas, incluindo, como é possível imaginar, uma refutação contundente da idolatria, que tanto irritara o apóstolo. Em outra parte do livro, Lucas fornece também uma ilustração da pregação do apóstolo num ambiente predominantemente pagão e idólatra. Em At 14.14-18 encontramos um resumo da abordagem paulina em relação aos pagãos, na qual ele parte da revelação de Deus na natureza criada para argumentar sobre a necessidade de se atentar para o agir de Deus em Jesus Cristo, as “boas notícias”, o Evangelho (At 14.15).
A exposição pública do Evangelho num ambiente profano (comum) requer a coragem de assumir riscos bastante reais: em primeiro lugar, o risco da rejeição. Paulo é chamado de “tagarela” (grego spermologos), cf. 17.18b, uma alcunha ofensiva; em segundo lugar, o risco de confusão com ideias alheias ao Evangelho de Cristo. Alguns ouvintes na praça pensavam que Paulo pregava dois deuses estrangeiros, um tal de Jesus e uma certa Anastasis, cf. 18c. Anastasis é o substantivo feminino grego para “ressurreição”. Como não criam na ressurreição dos mortos, a tendência natural era tomar a palavra como nome próprio que designaria uma divindade feminina. Assim, para a mente confusa de alguns pagãos atenienses, Paulo falava de um estranho casal de divindades, “Jesus e Anastasis”.
Mesmo correndo o risco desse tipo de confusão, Paulo nos dá um exemplo dessa difícil, mas necessária, interação do Evangelho com o profano, em especial, da persistência em contradizer a idolatria, mesmo com os possíveis mal-entendidos que isso implicava. Em meados do séc. XX, o teólogo suíço Karl Barth advertia seus estudantes sobre a importância fundamental de se ter a Bíblia na mão e o jornal do dia na outra mão, a fim de estarem atentos às possibilidades e à própria necessidade de interação do Evangelho com o mundo e a sociedade em que vivemos.
Os protestantes e evangélicos, porém, têm problemas sérios aqui: primeiramente, há uma nítida falta de atenção ao que acontece no mundo e, até mesmo, ao contexto mais próximo da igreja (monasticismo evangélico?). No séc. XVI, os adeptos da reforma de Lutero na Alemanha “protestaram” (palavra de tonalidade claramente política) diante das autoridades imperiais, demandando o direito de exercitarem a fé cristã a partir dos ensinos de Lutero. Daí vem o nome “protestante”; um nome que por si só (embora de conotação negativa) sugere uma forte interação com a sociedade, ainda que seja uma postura de não-conformismo. Em segundo lugar, é perceptível uma incapacidade generalizada de articulação do Evangelho num ambiente não-religioso, a falta de comunicação apropriada. Até mesmo inventamos um novo dialeto: o “evangeliquês”. Exigimos que as pessoas de fora aprendam esse dialeto para se relacionarem com Deus – na língua que, supostamente, somente Deus e os crentes entendem. Mas a encarnação do logos de Deus (Jo 1.14), bem como a prática missionária paulina, demonstra exatamente o oposto disso: Deus vem ao encontro do ser humano, dentro das limitações da “carne”, em seu próprio Filho que revela a Divindade com um rosto humano (Jo 1.18).
Na agora de Atenas, Paulo se torna um incentivo para que nos esforcemos na promoção e na comunicação do Evangelho por todos os meios possíveis, inclusive a mídia, sem comprometer, é claro, a integridade da mensagem em troca de comunicação eficaz.
A passagem de Paulo por Atenas ainda reserva um terceiro momento, que sintetizamos a seguir.
3. O Evangelho em diálogo com o Erudito (a Academia) — At 17.19-31
O Areópago (At 17.19), o monte (ou colina) de Marte (Ares), era a sede da academia e do conselho máximo da cidade de Atenas. Ali seus líderes – as autoridades intelectuais, os educadores e os filósofos de Atenas –, se reuniam para deliberar sobre diversas questões civis, filosóficas e religiosas.
Havia dois grupos principais de filósofos em Atenas, com os quais Paulo discute no Areópago, cf. 17.18: a) os epicureus, discípulos de Epicuro, que se notabilizaram por promover uma justificativa filosófica para o hedonismo, i.e., a busca pelo prazer como a única razão que dá sentido à existência humana no mundo; e b) os estoicos, discípulos de Zenão que se reuniam, originalmente, na porta ( stoa) da cidade. Promoviam a vida de conformidade com a natureza, defendendo um tipo específico de panteísmo (como a alma está no corpo, assim “deus” está na natureza).
O conteúdo do sermão de Paulo no Areópago, resumido por Lucas em At 17.22-31, tem alguns pontos salientes dignos de nota no que diz respeito à interação do Evangelho com a academia:
– Paulo parte de um ponto de contato, o altar “ao deus desconhecido” (grego, agnôstô[i] theô[i]), cf. 17.23, que a própria idolatria propiciava. Paulo aproveita a curiosidade, tão característica dos atenienses (17.19-21), para levar o diálogo adiante. Ele não recorre à alguma forma de defensivismo obscurantista diante dos desafios da idolatria. — O apóstolo vai do abstrato e impessoal (“aquilo que vocês adoram”, v. 23b) para o concreto e pessoal, “o Deus que fez o mundo” (17.24a).
– Ele explica que Deus, ao contrário de ser uma abstração, distante e desengajada do mundo, é o Criador e o Sustentador de toda a Criação (17.24); Deus está envolvido com o mundo. Além disso, podemos facilmente imaginar Paulo apontando para os grandes templos na Acrópolis, visíveis do Areópago, e dizer que Deus “não habita em santuários feitos por mãos humanas” (17.24b). Ou seja, não é possível “domesticar” o Deus verdadeiro. Ao relatar o que Paulo disse, Lucas nos oferece um ótimo exemplo de desmonte e “desconstrução” das filosofias pagãs gregas, quando confrontadas com a mensagem do Evangelho.
– Paulo, ainda, destaca a origem comum do ser humano em Deus (17.26). Os atenienses criam ser uma “raça” superior até mesmo aos demais habitantes da Grécia. Os estrangeiros eram meramente os barbaroi, os incultos que falavam numa língua incompreensível (daí o “bar-bar”, de bárbaros).
– O apóstolo esclarece que a revelação geral, da qual acaba de tratar, ainda que importante não é suficiente para o conhecimento de Deus: “talvez, tateando, pudessem encontrá-lo” (17.27).
– Ele cita, no vers. 28, dois poetas gregos conhecidos, respectivamente, Epimênides (“nele vivemos, nos movemos...”) e Arato (“somos descendência dele”), para deixar patente que vestígios da verdade de Deus podem ser encontrados tanto na natureza como no próprio ser humano, inclusive na sabedoria helênica.
– A desconstrução do paganismo continua no vers. 29, destacando a total “falência” da idolatria e do panteísmo diante desse conhecimento básico de Deus – ele não pode ser confundido com aquilo que ele mesmo criou.
– O juízo de Deus (17.30s) agora entra em cena: até o momento, a tolerância divina; mas o dia da prestação de contas está chegando. O Juiz, cuja qualificação especial e extraordinária é a “ressurreição dentre os mortos” (prova do agir e da aprovação de Deus) está aí.
– Há um detalhe importantíssimo aqui: a ressurreição era rejeitada como absoluta impossibilidade pelos gregos; tida como algo absurdo pelos filósofos, os quais sempre tendiam para a idéia clássica da imortalidade da alma (Sócrates, Platão).
O diálogo com a erudição⁄academia (filosofia) é difícil, pois será sempre um “diálogo crítico”, do Evangelho em relação ao pensamento meramente humano. Por essa razão, não é de admirar que a reação dos filósofos à mensagem paulina fosse a rejeição (17.32s). Ainda assim, é importante observar que a pregação de Paulo não foi infrutífera (17.34), pois alguns poucos creram (Dionísio, membro do conselho da cidade, e Dâmaris).
Contudo, é muito importante ressaltar que Paulo foi alguém especialmente moldado por Deus para esse tipo de diálogo “multidisciplinar”, pois ele mesmo era cidadão de três mundos: nasceu em Tarso, cidade helenista; foi criado no Judaísmo e era cidadão romano.
Ao final dessas reflexões em torno da atividade missionária de Paulo em At 17, é possível formular o esboço de uma tese fundamental no que diz respeito às possibilidade de interação e diálogo do Evangelho (Cristianismo) com o mundo (sociedade) hoje:
O Areópago (At 17.19), o monte (ou colina) de Marte (Ares), era a sede da academia e do conselho máximo da cidade de Atenas. Ali seus líderes – as autoridades intelectuais, os educadores e os filósofos de Atenas –, se reuniam para deliberar sobre diversas questões civis, filosóficas e religiosas.
Havia dois grupos principais de filósofos em Atenas, com os quais Paulo discute no Areópago, cf. 17.18: a) os epicureus, discípulos de Epicuro, que se notabilizaram por promover uma justificativa filosófica para o hedonismo, i.e., a busca pelo prazer como a única razão que dá sentido à existência humana no mundo; e b) os estoicos, discípulos de Zenão que se reuniam, originalmente, na porta ( stoa) da cidade. Promoviam a vida de conformidade com a natureza, defendendo um tipo específico de panteísmo (como a alma está no corpo, assim “deus” está na natureza).
O conteúdo do sermão de Paulo no Areópago, resumido por Lucas em At 17.22-31, tem alguns pontos salientes dignos de nota no que diz respeito à interação do Evangelho com a academia:
– Paulo parte de um ponto de contato, o altar “ao deus desconhecido” (grego, agnôstô[i] theô[i]), cf. 17.23, que a própria idolatria propiciava. Paulo aproveita a curiosidade, tão característica dos atenienses (17.19-21), para levar o diálogo adiante. Ele não recorre à alguma forma de defensivismo obscurantista diante dos desafios da idolatria. — O apóstolo vai do abstrato e impessoal (“aquilo que vocês adoram”, v. 23b) para o concreto e pessoal, “o Deus que fez o mundo” (17.24a).
– Ele explica que Deus, ao contrário de ser uma abstração, distante e desengajada do mundo, é o Criador e o Sustentador de toda a Criação (17.24); Deus está envolvido com o mundo. Além disso, podemos facilmente imaginar Paulo apontando para os grandes templos na Acrópolis, visíveis do Areópago, e dizer que Deus “não habita em santuários feitos por mãos humanas” (17.24b). Ou seja, não é possível “domesticar” o Deus verdadeiro. Ao relatar o que Paulo disse, Lucas nos oferece um ótimo exemplo de desmonte e “desconstrução” das filosofias pagãs gregas, quando confrontadas com a mensagem do Evangelho.
– Paulo, ainda, destaca a origem comum do ser humano em Deus (17.26). Os atenienses criam ser uma “raça” superior até mesmo aos demais habitantes da Grécia. Os estrangeiros eram meramente os barbaroi, os incultos que falavam numa língua incompreensível (daí o “bar-bar”, de bárbaros).
– O apóstolo esclarece que a revelação geral, da qual acaba de tratar, ainda que importante não é suficiente para o conhecimento de Deus: “talvez, tateando, pudessem encontrá-lo” (17.27).
– Ele cita, no vers. 28, dois poetas gregos conhecidos, respectivamente, Epimênides (“nele vivemos, nos movemos...”) e Arato (“somos descendência dele”), para deixar patente que vestígios da verdade de Deus podem ser encontrados tanto na natureza como no próprio ser humano, inclusive na sabedoria helênica.
– A desconstrução do paganismo continua no vers. 29, destacando a total “falência” da idolatria e do panteísmo diante desse conhecimento básico de Deus – ele não pode ser confundido com aquilo que ele mesmo criou.
– O juízo de Deus (17.30s) agora entra em cena: até o momento, a tolerância divina; mas o dia da prestação de contas está chegando. O Juiz, cuja qualificação especial e extraordinária é a “ressurreição dentre os mortos” (prova do agir e da aprovação de Deus) está aí.
– Há um detalhe importantíssimo aqui: a ressurreição era rejeitada como absoluta impossibilidade pelos gregos; tida como algo absurdo pelos filósofos, os quais sempre tendiam para a idéia clássica da imortalidade da alma (Sócrates, Platão).
O diálogo com a erudição⁄academia (filosofia) é difícil, pois será sempre um “diálogo crítico”, do Evangelho em relação ao pensamento meramente humano. Por essa razão, não é de admirar que a reação dos filósofos à mensagem paulina fosse a rejeição (17.32s). Ainda assim, é importante observar que a pregação de Paulo não foi infrutífera (17.34), pois alguns poucos creram (Dionísio, membro do conselho da cidade, e Dâmaris).
Contudo, é muito importante ressaltar que Paulo foi alguém especialmente moldado por Deus para esse tipo de diálogo “multidisciplinar”, pois ele mesmo era cidadão de três mundos: nasceu em Tarso, cidade helenista; foi criado no Judaísmo e era cidadão romano.
Ao final dessas reflexões em torno da atividade missionária de Paulo em At 17, é possível formular o esboço de uma tese fundamental no que diz respeito às possibilidade de interação e diálogo do Evangelho (Cristianismo) com o mundo (sociedade) hoje:
Tese:
Não é só necessário e possível, como também desejável, que haja um diálogo crítico entre o Evangelho de Jesus Cristo e a sociedade, em todos os níveis . Esse diálogo crítico de modo algum invalida, compromete ou diminui a piedade cristã que a Palavra de Deus exprime e requer dos cristãos. Pelo contrário, é até incentivador e motivador da piedade, como se vê na experiência do apóstolo Paulo no livro de Atos. Mas é piedade qualificada como engajada e relevante no mundo.
Não é só necessário e possível, como também desejável, que haja um diálogo crítico entre o Evangelho de Jesus Cristo e a sociedade, em todos os níveis . Esse diálogo crítico de modo algum invalida, compromete ou diminui a piedade cristã que a Palavra de Deus exprime e requer dos cristãos. Pelo contrário, é até incentivador e motivador da piedade, como se vê na experiência do apóstolo Paulo no livro de Atos. Mas é piedade qualificada como engajada e relevante no mundo.
Conclusões
À luz dessas observações em At 17.16-34, é preciso destacar algumas coisas que devemos desenvolver, a fim de promover o Evangelho de maneira mais relevante no contexto multidisciplinar (sinagoga, praça e academia) em que vivemos hoje. Cito apenas algumas preocupações mais recentes. Precisamos, urgentemente:
– Recuperar a capacidade (cristã) de indignação. Paulo reage contra a idolatria crassa de Atenas. Às vezes, parece que estamos anestesiados diante do mundo e do seu panteão. É claro que devemos aprender com Paulo que a nossa reação diante da idolatria não deve ser a de “chutar a santa”, ou algo parecido. Embora muito indignado com a idolatria reinante, o apóstolo usa essa constatação como ponto de contato com os eruditos atenienses e como ponto de partida para sua apresentação do Evangelho (cf. At 17.22-23).
– Desenvolver a capacidade de entendimento crítico do mundo. Precisamos sair do nosso “gueto” e saber o quê e como o mundo pensa. Um modo de avaliar até que ponto fazemos isso é perguntar se temos (principalmente, nós os teólogos e líderes) amizades fora do contexto eclesiástico.
– Implementar oportunidades de interagir criticamente, a partir do Evangelho, com setores da sociedade. É necessária a coragem de enfrentar os desafios que o mundo (urbano) moderno e pós-moderno oferece ao Cristianismo. Será que o cristianismo não tem algo a dizer (e a fazer) sobre o problema do aquecimento global e das mudanças climáticas? E as artes? Cremos, de fato, que Deus é o Criador daquilo que é belo? Então por que encontramos tão poucos artistas cristãos? Além do estético, também existem numerosos desafios éticos na atualidade brasileira. Raramente, por exemplo, se ouve algum teólogo protestante falando sobre a questão do aborto no Brasil.
O Evangelho de Jesus Cristo abre possibilidades variadas de diálogo e interação para o Cristianismo com o mundo no qual vivemos. O apóstolo Paulo é um excelente modelo para nós hoje. Ele demonstra essas possibilidades tanto no campo religioso, como no profano e no erudito. Num mundo carente de ideias e ideais, eis a nossa oportunidade de apresentar o Cristianismo como algo relevante, que responde às questões mais importantes que preocupam as pessoas no mundo. Tudo isso vem envolvido numa mensagem revolucionária e resgatadora, o Evangelho de Jesus Cristo. Estamos dispostos e prontos para assumir essa tarefa?
À luz dessas observações em At 17.16-34, é preciso destacar algumas coisas que devemos desenvolver, a fim de promover o Evangelho de maneira mais relevante no contexto multidisciplinar (sinagoga, praça e academia) em que vivemos hoje. Cito apenas algumas preocupações mais recentes. Precisamos, urgentemente:
– Recuperar a capacidade (cristã) de indignação. Paulo reage contra a idolatria crassa de Atenas. Às vezes, parece que estamos anestesiados diante do mundo e do seu panteão. É claro que devemos aprender com Paulo que a nossa reação diante da idolatria não deve ser a de “chutar a santa”, ou algo parecido. Embora muito indignado com a idolatria reinante, o apóstolo usa essa constatação como ponto de contato com os eruditos atenienses e como ponto de partida para sua apresentação do Evangelho (cf. At 17.22-23).
– Desenvolver a capacidade de entendimento crítico do mundo. Precisamos sair do nosso “gueto” e saber o quê e como o mundo pensa. Um modo de avaliar até que ponto fazemos isso é perguntar se temos (principalmente, nós os teólogos e líderes) amizades fora do contexto eclesiástico.
– Implementar oportunidades de interagir criticamente, a partir do Evangelho, com setores da sociedade. É necessária a coragem de enfrentar os desafios que o mundo (urbano) moderno e pós-moderno oferece ao Cristianismo. Será que o cristianismo não tem algo a dizer (e a fazer) sobre o problema do aquecimento global e das mudanças climáticas? E as artes? Cremos, de fato, que Deus é o Criador daquilo que é belo? Então por que encontramos tão poucos artistas cristãos? Além do estético, também existem numerosos desafios éticos na atualidade brasileira. Raramente, por exemplo, se ouve algum teólogo protestante falando sobre a questão do aborto no Brasil.
O Evangelho de Jesus Cristo abre possibilidades variadas de diálogo e interação para o Cristianismo com o mundo no qual vivemos. O apóstolo Paulo é um excelente modelo para nós hoje. Ele demonstra essas possibilidades tanto no campo religioso, como no profano e no erudito. Num mundo carente de ideias e ideais, eis a nossa oportunidade de apresentar o Cristianismo como algo relevante, que responde às questões mais importantes que preocupam as pessoas no mundo. Tudo isso vem envolvido numa mensagem revolucionária e resgatadora, o Evangelho de Jesus Cristo. Estamos dispostos e prontos para assumir essa tarefa?
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Notas:
1 Este artigo foi publicado originalmente na revista teológica Vox Scripturae vol. XVIII no 1 (2010).
2 WINK, W. The Bible in Human Transformation. Filadélfia: Fortress Press, 1983, p. 6.
2 WINK, W. The Bible in Human Transformation. Filadélfia: Fortress Press, 1983, p. 6.
fonte: http://www.vidanova.com.br/teologiadet.asp?codigo=185
* É mestre em Interpretação Bíblica [1984-1985] e Ph.D. em Novo Testamento [1985-1988], pela London School of Theology, em Londres, Inglaterra. É professor de Bíblia, teologia bíblica e exegese no Seminário Teológico Servo de Cristo. Trabalhou como pastor na IECLB (Igreja Evangélica da Confissão Luterana no Brasil). Lecionou por vários anos no Seminário Bíblico Palavra da Vida, em Atibaia, SP, e na Faculdade Luterana de Teologia, em São Bento do Sul, SC. Foi editor da revista teológica Vox Scripturae. É um dos tradutores e membro das comissões de tradução da NVI (Nova Versão Internacional) e da Almeida Século 21. Casado com Rachael, tem três filhos e dois netos.
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