Karin Hellen Kepler Wondracek
A
paráfrase com o título freudiano sobre os destinos das pulsões não é
acidental - mas tem um percurso que passa em Zurique, pelo gabinete do
pastor e psicanalista Pfister.
Em 1914, o pastor e
psicanalista Pfister publica “O método psicanalítico”, prefaciado por
Freud - e lá defende um conceito de pulsão que difere de Freud. Para
Pfister, a pulsão não é, como para Freud, uma energia sexual na sua
origem - é uma energia que se manifesta em várias formas - sexualidade é
uma delas, mas espiritualidade também é uma forma de manifestação desta
energia vital.
Para Pfister, pulsão é um coletivo
- sob o qual se expressam desde a força da sexualidade, com a busca do
prazer sensorial, a descarga motora, passando pela agressividade, com
sua pulsão de morder, de triturar, - estas seriam a forma "toupeira" de
expressão da pulsão.
Mas, na outra ponta, a pulsão
tem a forma “águia”, não como sublimação da pulsão originária, mas como
expressão direta deste feixe pulsional - que nas alturas congrega
expressões da busca da liberdade, da estética, da cultura, e da
religião.
A religião, para Pfister, é uma pulsão -
e a partir desta ótica gostaria de tecer alguns pensamentos. Como
pulsão, pode ter vários destinos:
- pode ser
reprimida – simplesmente desalojada da superfície da consciência, e
alojar-se em profundidades do inconsciente. Pode ficar ali, bem segura
pelos núcleos já abrigados no inconsciente. Mas, também pode haver o
retorno do reprimido. E, sabemos por Freud que este retorno pode assumir
formas bizarras.
- retornar na forma histérica - como em alguns cultos que sobrevalorizam transes e êxtases, paralisias e sensações corporais.
- retornar na forma histérica - como em alguns cultos que sobrevalorizam transes e êxtases, paralisias e sensações corporais.
-
retornar na forma obsessiva- e temos comportamentos e pensamentos
obsessivos transformados em rituais cúlticos - privados ou públicos.
- retornar na forma fóbica - certos objetos de culto, divindades ou inimigos da divindade são demonizados - despertam temor, pânico - lá estão projetados os impulsos inaceitáveis - quase sempre na forma de sexualidade ou agressividade.
E, se não houve
repressão, a religiosidade pode assumir a forma perversa - como
tristemente assistimos à prisão de líderes religiosos que castravam
meninos para suas oferendas.
A religião também
pode retornar associada com outras pulsões - como a agressiva - e então
assistimos a caça aos hereges, agressividade legitimada e até
recompensada por um ser divino.
Graças a Freud,
podemos desmascarar o neurótico, o perverso e o psicótico presente na
religiosidade. Mas, será que temos de, com nossas interpretações,
promover a varredura da pulsão religiosa da cultura e do imaginário
humano?
O pastor e psicanalista Pfister agradecia a
Deus pela genialidade de Freud, que lhe possibilitava retirar os ídolos
dos átrios dos templos. [2]
Qual então pode ser o futuro da religião?
Gostaria
de fazer uma associação com outra expressão pulsional - a do amor. Ele
também surge de formas tão neuróticas, perversas e doentes, mas nunca
houve tentativa séria de erradicá-lo, só porque se mostra doente. Antes,
a tentativa da humanidade tem sido no sentido de aprimorar nossa
capacidade de amar.
Pfister labutava no mesmo
sentido, para a religião - que a psicanálise fosse a "humilde lavadora
dos pés da verdade" - limpando as sujeiras que a conflitiva humana
aglutinou nas suas devoções. Por isso, a psicanálise tem de continuar
varrendo ídolos, sendo iconoclasta, retirando amuletos e rezas fortes e
fracas, pilotos automáticos da devoção. Mas, aí cessa seu papel. Pfister
defendia junto a Freud, e neste artigo publicado na própria revista de
Freud - que uma religiosidade purificada e purificadora poderia se ligar
ao amor - debaixo do conceito cristão de graça. O imperativo do amor
poderia substituir o imperativo do dever - gênese da obsessão, do
recalcamento.
Não cessamos de amar depois que nos
analisamos - antes amamos mais e melhor. Não precisamos parar de crer
depois que descobrimos a neurose incrustada em nossas crenças. Podemos
amar mais e melhor, aceitar mais nossa humanidade com suas ambivalências
e falhas - a tolerância para conosco e para com os outros.
A
religião mais perigosa, e que deve merecer o controle e a denúncia das
autoridades - é aquela que mescla a pulsão agressiva à pulsão religiosa.
Esta mescla pulsional gera morte - e não estamos mais nos tempos de
Comte ou Darwin para acreditar que haja uma progressão da humanidade
rumo à perfeição. O caos pulsional sempre está à espreita por baixo da
casca da cultura, e pode se combinar em formas tão destrutivas como o
fanatismo religioso.
É a combinação da pulsão
religiosa com a amorosa que transforma até a pulsão agressiva. Desta
forma podemos entender os depoimentos daqueles criminosos que se tornam
doces ao se converterem a uma fé religiosa.
Pfister,
ironicamente, está mais próximo do conceito judaico de pulsão - ao
menos como colocado na voz do rabino Halévy na fábula sobre as
religiões, escrita por Shafique Keshavjee:
“A
pulsão sexual e a pulsão espiritual são as duas faces de uma mesma
moeda. E essa moeda é aquela que o próprio Deus cunhou. Na carne do ser
humano está inscrita uma pulsão biológica e afetiva que o faz sair de si
mesmo para acolher um outro, uma outra. No espírito do ser humano está
inscrita uma pulsão metafísica e espiritual que o faz sair de seu ego
para descobrir o Outro por excelência, Deus. Da mesmo forma que uma
mulher pode ficar obcecada pelo rosto de um homem e um homem pelo de uma
mulher, Deus é o grande Sedutor que obceca a alma humana. Sem essas
duas pulsões que se encontram interligadas, a vida seria aborrecida,
centrada sobre si mesma.”
Enquanto os cristãos
matavam os mouros em nome de Deus, viveu o cristão Francisco de Assis
que, depois de tentar impedir a realização de mais uma mortífera
cruzada, foi pessoalmente ao califa muçulmano. Chegando lá, foi agredido
sem revidar, permaneceu preso até que sua conduta chamou tanta atenção
que o califa o recebeu. Depois de muitos dias em conversas amistosas,
acontece a despedida e a bênção que até hoje perdura entre muçulmanos e
franciscanos. Francisco era admirado por Freud e Pfister.
Exceção
entre todos? Quantos anônimos religiosos, de muitas confissões e
credos, associaram sua pulsão religiosa com a amorosa, e geraram vida e
não morte? Talvez, a única morte, neste nível, seja a do próprio Eu, e
até do próprio corpo.
Esta religião tem futuro e
gera futuro, porque gera vida. A religião que mais prefere morrer -
desde a dimensão simbólica até, se for preciso, na dimensão concreta -
esta gera vida. A parábola do grão de trigo - agregada à história da
tensão do joio – ensina a aguentarmos o diferente, a tensão das
interfaces.
Como expressão desta religiosidade, me
comovo cada vez que relembro o exemplo do casal judeu messiânico que,
em função da sua fé, abriu uma casa para cuidar de órfãos... palestinos.
Fizeram-no em nome de Deus.
Artigo publicado originalmente no site do CPPC.
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Karin Hellen Kepler Wondracek é psicóloga e psicanalista, e mestra em teologia. É tradutora de Cartas entre Freud e Pfister, autora de Caminhos da Graça e uma das autoras de Uma Criança os Guiará.
Notas
[1] Mesa-redonda sobre O futuro da religião, no Santander Cultural, Feira do.
[2] Cf. carta introdutória ao texto-resposta A ilusão e o futuro.
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