domingo, 4 de dezembro de 2011

Homossexualismo, Sodoma e Gomorra

Eduardo Ribeiro Mundim

O comportamento sexual dos habitantes de Sodoma acabou gerando o termo sodomia, e derivados, usado para descrever, de modo habitualmente pejorativo, o ato sexual anal, tanto hetero quanto homossexual, podendo se estender ao coito com animais e crianças1. Estas duas cidades permanecem no imaginário como destruídas em função exclusiva da homossexualidade dos seus habitantes.

A história é narrada nos capítulos 18 e 19 de Gênesis, como parte da história de Abrão e Ló (contexto imediato, de importância teológica menor), mas também do relacionamento entre Iahweh e Abrão (contexto remoto, de maior importância na história da salvação). Nos capítulos precedente, é narrada a evolução da aliança entre ambos, quando ele se faz circuncidar, assim como todos os homens (livres ou não) de sua casa, em resposta à promessa de que seria pai de muitos povos e de reis. Como consequência, seu nome é modificado para Abraão, e Sarai se torna Sara.

O contexto é fortemente teológico, dentro da história que se desenrola. Iahweh discute ética2 com Abraão, já que ele fora escolhido para “para que ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe prometeu” (Gn 18.19, NVI). Ele notifica Seu eleito de que as “as acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas e o seu pecado é tão grave que descerei para ver se o que eles têm feito corresponde ao que tenho ouvido” (v. 20 e 21). E a questão posta por Abraão é se o justo seria destruído por causa do culpado. Talvez estivesse nas entrelinhas qual o número de justos necessário para salvar tantos culpados. A discussão termina com a aceitação por Iahweh de que 10 justos salvariam a cidade.

Por que Abrão se preocupa com as cidades? A destruição delas parece ser assunto decidido previamente, e a visita dos Anjos à cidade era apenas para verificação final, como se estivesse apresentando ao patriarca um processo judicial. Desconhecia ele os pecados das cidades? Estaria preocupado com seu sobrinho? O texto não diz. Pode ser conjecturado que esta última possibilidade é improvável, pois o diálogo entre ambos é franco, ainda que formal (mas de uma familiaridade espantosa entre duas pessoas de poderes absolutamente assimétricos), e nada impediria a observação de que Ló não compactuava com os pecados da cidade.

Igualmente Deus não necessita descer à terra para ter ciência do pecado. Provavelmente o faz como recurso didático, objetivando tanto a Abraão quanto a sua incontável descendência. Em nenhum momento uma possível impertinência por parte dele é anotada ou criticada, e fica levantada uma série de possibilidades sobre o lugar destes acontecimentos no desenrolar da história da salvação.

A hospitalidade3 naquela época (por volta de 2.000 ac) era um dever universalmente reconhecido, como forma de garantia mútua contra os perigos da natureza e gerados pelo próprio homem. A atitude estabelecia um vínculo de obrigações mútuas: ao anfitrião caberia alimentar e proteger o peregrino (mesmo às custas de sacrifício pessoal ou da família – já que era ela a anfitriã, e não somente o chefe), e a este respeitar a casa que o acolhia, poupando-lhe inconvenientes.

O texto guarda relação próxima com a história do dilúvio4. Destruição completa em virtude de pecado completo, à exceção de uma família, não compactuante com as atitudes da maioria. No primeiro, uma destruição universal, pouco citada no decorrer nas Escrituras; na segunda, uma destruição igualmente radical, mas limitada, e lembrada por outros autores inspirados como exemplo – incluindo Jesus em uma ocasião (cf Mt 10.15).

Igualmente é muito semelhante ao episódio narrado em Jz 19 e seguintes, onde a destruição ocorre através de violenta guerra civil.

Ló insiste com os dois visitantes, que não reconhece enquanto anjos, para que desfrutem de sua hospitalidade. Sua insistência sinaliza duas possibilidades: seu empenho em cumprir o dever da hospitalidade e/ou a percepção do risco em especial que eles estariam correndo caso ficassem na praça. Por outro lado, é improvável que imaginasse a reação da multidão, pois se assim fosse, não exporia suas filhas, garantia de sua descendência, ao risco do opróbrio e da morte (como ocorre com a concubina em Jz 19).

Não há como negar a violência explícita da história. Contra três homens, toda a população masculina pleiteia o direito de “conhecer” os visitantes, mesmo contra a vontade deles. O caráter sexual da intenção é claro, e pode ser demonstrado sem maiores dificuldades:
  1. “conhecer” (yada') é um verbo utilizado no livro de Gênesis doze vezes, e em dez a conotação é, indiscutivelmente, de relacionamento sexual5;
  2. propõe uma troca, suas duas filhas virgens pelos visitantes, para que o direito à hospitalidade não fosse violado. E ele as oferece adicionando “façam com ela o que bem entenderem”. Esta atitude6 elimina qualquer possibilidade da turba desejar apenas conhecer os visitantes para ter certeza de suas boas intenções políticas.

A proposta de troca explicita o caráter, no minimo, bissexual dos atacantes, já que não faria sentido a proposta se ela não fosse “atrativa”. Portanto, fica em aberto a razão da turba. Estupro é tratar o outro como coisa, é humilhá-lo, desonrá-lo. Um comentarista citou que o tratamento que ela pretendia dar aos visitantes era o praticado com os prisioneiros de guerra7. Outro autor discute que a sexualidade da região era basicamente falocêntrica, e a penetração de um homem por outro o rebaixava, mas não retirava o caráter heterossexual dos envolvidos8.

A história remete a que tipo de estupro: por parte de homossexuais ou de heterossexuais/bissexuais? Poderia ser aplicado a esta época situações contemporâneas, como, por exemplo, o relato de que o estupro por parte de homossexuais ser incomum fora de ambientes fechados, como prisões (nesta circunstância predomina a violência sobre o ato sexual em si), quando o estupro demonstra raiva e poder9,10?

A análise do texto demonstra o óbvio: há diversos pecados11. O abuso do fraco e indefeso; o desrespeito a um costume, se não lei, sagrada, a hospitalidade; a covardia em fazer o mal através da força bruta desproporcional em relação ao adversário; o prazer em infligir sofrimento e dor ao próximo.

O profeta Ezequiel (16.49-50) pontua que o pecado destas cidades foi a soberba, a riqueza, a tranquilidade, com a exclusão do “desgraçado e pobre”, acrescido do envaidecimento em frente a Iahweh e abominações. Dentro do contexto do Velho Testamento, abominações inclui uma série de relações sexuais entre aparentados consanguíneos ou por afinidade, além do homossexualismo e bestialismo12.

Isaías (1.9; 3.8,9), por sua vez, acrescenta à lista hipocrisia, injustiça social e rebelião aberta.

Jeremias (23.14) proclama que os profetas de sua época agiam como Sodoma e Gomorra: adultério, mentira, apoio ao perverso, obstáculo ao arrependimento.

A epístola de Judas enfatiza que estas cidades “se entregaram à imoralidade e a relações sexuais antinaturais”, “fornicaram, deram-se a vícios contra a natureza” (Bíblia do Peregrino), “por se terem prostituído, procurando unir-se a seres de uma natureza diferente” (Bíblia de Jerusalém). A nota de rodapé da Nova Versão Internacional13 explicita que o grego original no versículo 7 é “foram após outra carne”; a Bíblia de Jerusalém entende “uma carne diferente”, e seu comentarista propõe que o pecado delas foi terem atentado contra anjos14. O que, exatamente, está sendo dito aqui?

Pelo restante das Escrituras, que usa figuras de linguagem mais claras, ou expressões diretas, para expressar a relação homossexual, fica prejudicada a leitura da condenação do ato homossexual. Aceitar a sugestão do comentarista da BJ torna o julgamento das cidades estranho, pois, apesar da clara intenção de pecar de modo torpe, cruel e violento, a origem angelical dos visitantes lhes era desconhecida. Talvez a opção mais viável seja uma referência educada ao bestialismo.

Partindo do princípio de que escritura interpreta a escritura, o balanço geral é de que Sodoma e Gomorra eram cidades absolutamente corrompidas, em todas as esferas, do privado ao social, e que seu castigo, exemplo para as gerações futuras, foi decorrente do clamor que tal situação elevou aos céus. Assim como em outras situações bíblicas (como, por exemplo, os Evangelhos) cada autor inspirado usou o aspecto do episódio que dizia respeito ao assunto que ele abordava. Foram punidas por se encontrarem fora da possibilidade de arrependimento, em rebelião aberta e de longa data. Não há um pecado que sobreponha ao outro.

2Conf nota de rodapé Bíblia do Peregrino, 2ª ed, Editora Paulus, São Paulo, SP,2006, pg 40
3Verbete “hospitalidade”, O Novo Dicionário da Bíblia, 3ª ed, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, 1979, pg 725.
4Wenhan, op. cit.
5Pinto CO e Sayão LAT. A questão do homossexualismo. Vox Scripturae 5(1):43-70, março 1995.
6Pinto CO e Sayão LAT, op. cit.
7Wenhan, op. cit.
8Carden, M. Homophobia and rape in Sodom and Gibeah - a response to Ken Stone. Journal for the Study of the Old Testament, 82: 83-96; resumo disponível em http://espace.library.uq.edu.au/view/UQ:144151
9Kaplan HI, Sadock BJ. Compêndio de psiquiatria dinâmica. Editora Artes Médicas, 3ª ed, Porto Alegre, RS, 1981, pag 506. interessante observa que esta edição ainda traz homossexualidade como perturbações psicossexuais (cap 22, pg 484)
10Masters WH, Jonhson VE, Kolodny RC. O relacionamento amoroso. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1988, pg 407
11Wenhan, op. cit.
12cf. Lv 18, onde a seção se inicia e se fecha com a afirmativa de que as abominações listadas eram praticas no Egito, donde os israelitas saíram, e em Canaã, para onde se dirigiam
13 Cf Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional, Editora Vida, São Paulo, SP, 2000, pg 987
14Cf Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 9ª edição, São Paulo, SP, 1985, pg 2297

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