Eduardo Ribeiro Mundim
O comportamento sexual dos habitantes de Sodoma acabou gerando o termo sodomia, e derivados, usado para descrever, de modo habitualmente pejorativo, o ato sexual anal, tanto hetero quanto homossexual, podendo se estender ao coito com animais e crianças1. Estas duas cidades permanecem no imaginário como destruídas em função exclusiva da homossexualidade dos seus habitantes.
A
história é narrada nos capítulos 18 e 19 de Gênesis, como parte
da história de Abrão e Ló (contexto imediato, de importância
teológica menor), mas também do relacionamento entre Iahweh e Abrão
(contexto remoto, de maior importância na história da salvação).
Nos capítulos precedente, é narrada a evolução da aliança entre
ambos, quando ele se faz circuncidar, assim como todos os homens
(livres ou não) de sua casa, em resposta à promessa de que seria
pai de muitos povos e de reis. Como consequência, seu nome é
modificado para Abraão, e Sarai se torna Sara.
O
contexto é fortemente teológico, dentro da história que se
desenrola. Iahweh discute ética2
com Abraão, já que ele fora escolhido para “para
que ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se conservem
no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o
Senhor faça vir a Abraão o que lhe prometeu”
(Gn 18.19, NVI). Ele notifica Seu eleito de que as “as
acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas e o seu pecado é tão
grave que descerei para ver se o que eles têm feito corresponde ao
que tenho ouvido”
(v. 20 e 21). E a questão posta por Abraão é se o justo seria
destruído por causa do culpado. Talvez estivesse nas entrelinhas
qual o número de justos necessário para salvar tantos culpados. A
discussão termina com a aceitação por Iahweh de que 10 justos
salvariam a cidade.
Por
que Abrão se preocupa com as cidades? A destruição delas parece
ser assunto decidido previamente, e a visita dos Anjos à cidade era
apenas para verificação final, como se estivesse apresentando ao
patriarca um processo judicial. Desconhecia ele os pecados das
cidades? Estaria preocupado com seu sobrinho? O texto não diz. Pode
ser conjecturado que esta última possibilidade é improvável, pois
o diálogo entre ambos é franco, ainda que formal (mas de uma
familiaridade espantosa entre duas pessoas de poderes absolutamente
assimétricos), e nada impediria a observação de que Ló não
compactuava com os pecados da cidade.
Igualmente
Deus não necessita descer à terra para ter ciência do pecado.
Provavelmente o faz como recurso didático, objetivando tanto a
Abraão quanto a sua incontável descendência. Em nenhum momento uma
possível impertinência por parte dele é anotada ou criticada, e
fica levantada uma série de possibilidades sobre o lugar destes
acontecimentos no desenrolar da história da salvação.
A
hospitalidade3
naquela época (por volta de 2.000 ac) era um dever universalmente
reconhecido, como forma de garantia mútua contra os perigos da
natureza e gerados pelo próprio homem. A atitude estabelecia um
vínculo de obrigações mútuas: ao anfitrião caberia alimentar e
proteger o peregrino (mesmo às custas de sacrifício pessoal ou da
família – já que era ela a anfitriã, e não somente o chefe), e
a este respeitar a casa que o acolhia, poupando-lhe inconvenientes.
O
texto guarda relação próxima com a história do dilúvio4.
Destruição completa em virtude de pecado completo, à exceção de
uma família, não compactuante com as atitudes da maioria. No
primeiro, uma destruição universal, pouco citada no decorrer nas
Escrituras; na segunda, uma destruição igualmente radical, mas
limitada, e lembrada por outros autores inspirados como exemplo –
incluindo Jesus em uma ocasião (cf Mt 10.15).
Igualmente
é muito semelhante ao episódio narrado em Jz 19 e seguintes, onde a
destruição ocorre através de violenta guerra civil.
Ló
insiste com os dois visitantes, que não reconhece enquanto anjos,
para que desfrutem de sua hospitalidade. Sua insistência sinaliza
duas possibilidades: seu empenho em cumprir o dever da hospitalidade
e/ou a percepção do risco em especial que eles estariam correndo
caso ficassem na praça. Por outro lado, é improvável que
imaginasse a reação da multidão, pois se assim fosse, não exporia
suas filhas, garantia de sua descendência, ao risco do opróbrio e
da morte (como ocorre com a concubina em Jz 19).
Não
há como negar a violência explícita da história. Contra três
homens, toda a população masculina pleiteia o direito de “conhecer”
os visitantes, mesmo contra a vontade deles. O caráter sexual da
intenção é claro, e pode ser demonstrado sem maiores dificuldades:
- “conhecer” (yada') é um verbo utilizado no livro de Gênesis doze vezes, e em dez a conotação é, indiscutivelmente, de relacionamento sexual5;
- Ló propõe uma troca, suas duas filhas virgens pelos visitantes, para que o direito à hospitalidade não fosse violado. E ele as oferece adicionando “façam com ela o que bem entenderem”. Esta atitude6 elimina qualquer possibilidade da turba desejar apenas conhecer os visitantes para ter certeza de suas boas intenções políticas.
A
proposta de troca explicita o caráter, no minimo, bissexual dos
atacantes, já que não faria sentido a proposta se ela não fosse
“atrativa”. Portanto, fica em aberto a razão da turba. Estupro é
tratar o outro como coisa, é humilhá-lo, desonrá-lo. Um
comentarista citou que o tratamento que ela pretendia dar aos
visitantes era o praticado com os prisioneiros de guerra7.
Outro autor discute que a sexualidade da região era basicamente
falocêntrica, e a penetração de um homem por outro o rebaixava,
mas não retirava o caráter heterossexual dos envolvidos8.
A
história remete a que tipo de estupro: por parte de homossexuais ou
de heterossexuais/bissexuais? Poderia ser aplicado a esta época
situações contemporâneas, como, por exemplo, o relato de que o
estupro por parte de homossexuais ser incomum fora de ambientes
fechados, como prisões (nesta circunstância predomina a violência
sobre o ato sexual em si), quando o estupro demonstra raiva e
poder9,10?
A
análise do texto demonstra o óbvio: há diversos pecados11.
O abuso do fraco e indefeso; o desrespeito a um costume, se não lei,
sagrada, a hospitalidade; a covardia em fazer o mal através da força
bruta desproporcional em relação ao adversário; o prazer em
infligir sofrimento e dor ao próximo.
O
profeta Ezequiel (16.49-50) pontua que o pecado destas cidades foi a
soberba, a riqueza, a tranquilidade, com a exclusão do “desgraçado
e pobre”, acrescido do envaidecimento em frente a Iahweh e
abominações. Dentro do contexto do Velho Testamento, abominações
inclui uma série de relações sexuais entre aparentados
consanguíneos ou por afinidade, além do homossexualismo e
bestialismo12.
Isaías
(1.9; 3.8,9), por sua vez, acrescenta à lista hipocrisia, injustiça
social e rebelião aberta.
Jeremias
(23.14) proclama que os profetas de sua época agiam como Sodoma e
Gomorra: adultério, mentira, apoio ao perverso, obstáculo ao
arrependimento.
A
epístola de Judas enfatiza que estas cidades “se entregaram à
imoralidade e a relações sexuais antinaturais”, “fornicaram,
deram-se a vícios contra a natureza” (Bíblia do Peregrino), “por
se terem prostituído, procurando unir-se a seres de uma natureza
diferente” (Bíblia de Jerusalém). A nota de rodapé da Nova
Versão Internacional13
explicita que o grego original no versículo 7 é “foram após
outra carne”; a Bíblia de Jerusalém entende “uma carne
diferente”, e seu comentarista propõe que o pecado delas foi terem
atentado contra anjos14.
O que, exatamente, está sendo dito aqui?
Pelo
restante das Escrituras, que usa figuras de linguagem mais claras, ou
expressões diretas, para expressar a relação homossexual, fica
prejudicada a leitura da condenação do ato homossexual. Aceitar a
sugestão do comentarista da BJ torna o julgamento das cidades
estranho, pois, apesar da clara intenção de pecar de modo torpe,
cruel e violento, a origem angelical dos visitantes lhes era
desconhecida. Talvez a opção mais viável seja uma referência
educada ao bestialismo.
Partindo
do princípio de que escritura interpreta a escritura, o balanço
geral é de que Sodoma e Gomorra eram cidades absolutamente
corrompidas, em todas as esferas, do privado ao social, e que seu
castigo, exemplo para as gerações futuras, foi decorrente do clamor
que tal situação elevou aos céus. Assim como em outras situações
bíblicas (como, por exemplo, os Evangelhos) cada autor inspirado
usou o aspecto do episódio que dizia respeito ao assunto que ele
abordava. Foram punidas por se encontrarem fora da possibilidade de
arrependimento, em rebelião aberta e de longa data. Não há um
pecado que sobreponha ao outro.
2Conf
nota de rodapé Bíblia do Peregrino, 2ª ed, Editora Paulus, São
Paulo, SP,2006, pg 40
3Verbete
“hospitalidade”, O Novo Dicionário da Bíblia, 3ª ed, Edições
Vida Nova, São Paulo, SP, 1979, pg 725.
4Wenhan,
op. cit.
5Pinto
CO e Sayão LAT. A questão do homossexualismo. Vox Scripturae
5(1):43-70, março 1995.
6Pinto
CO e Sayão LAT, op. cit.
7Wenhan,
op. cit.
8Carden,
M. Homophobia and rape in Sodom and Gibeah - a response to Ken
Stone. Journal for the Study of the Old Testament, 82: 83-96;
resumo disponível em http://espace.library.uq.edu.au/view/UQ:144151
9Kaplan
HI, Sadock BJ. Compêndio de psiquiatria dinâmica. Editora Artes
Médicas, 3ª ed, Porto Alegre, RS, 1981, pag 506. interessante
observa que esta edição ainda traz homossexualidade como
perturbações psicossexuais (cap 22, pg 484)
10Masters
WH, Jonhson VE, Kolodny RC. O relacionamento amoroso. Editora Nova
Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1988, pg 407
11Wenhan,
op. cit.
12cf.
Lv 18, onde a seção se inicia e se fecha com a afirmativa de que
as abominações listadas eram praticas no Egito, donde os
israelitas saíram, e em Canaã, para onde se dirigiam
13
Cf Bíblia Sagrada
Nova Versão Internacional, Editora Vida, São Paulo, SP, 2000,
pg 987
14Cf
Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 9ª edição, São Paulo,
SP, 1985, pg 2297
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