Ricardo Barbosa de Souza
Talvez em virtude de nossa formação racional leiamos as cartas de
Paulo como tratados sistemáticos de teologia. O tema principal da carta
aos Romanos é a “justificação pela fé”. O da carta aos Gálatas e a
“graça de Deus”, e por aí vai. No entanto, sou muitas vezes levado a
reconhecer que, embora os tratados teológicos sejam fundamentais em suas
cartas, Paulo está profundamente preocupado com um outro assunto: a
formação do povo de Deus. Este é o grande tema das cartas de Paulo.
Como
que judeus com sua longa tradição religiosa e romanos com sua bagagem
pagã e sincrética, iriam se encontrar, na grande capital do Império
Romano, e ter uma identidade comum como povo de Deus? Como que numa
cidade como Corinto, com sua população híbrida formada de ex-soldados
romanos, escravos, escravos livres, gregos, judeus, comerciantes,
marinheiros, prostitutas cultuais, todos com suas tradições, moral,
hábitos, que agora se encontram num mesmo lugar para cultuar o mesmo
Deus e afirmar que Jesus Cristo é seu Senhor? A formação da identidade
cristã sempre foi uma grande preocupação dos autores do Novo
Testamento.
A argumentação teológica de Paulo é a forma
como ele estabelece os alicerces desta nova identidade. Sua intenção é a
formação da identidade do povo da nova aliança. Para os cristãos de
Roma ele diz: “não vos conformeis com este século…”. Para os de Éfeso:
“não andem como andam os gentios…”. Para os de Colossos: “dispam-se do
velho homem…”. O povo de Deus é o povo da nova aliança, a nova
humanidade inaugurada em Cristo, a nova criação. Este povo é chamado
para um novo modo de ser, um novo jeito de viver. A teologia e a
doutrina dão o fundamento para isto.
Por outro lado, a
igreja encontra-se constantemente sob o olhar e o juízo do mundo. Paulo
afirma que ela é o corpo de Cristo, a representação visível do Senhor
não visível. Suas obras e palavras devem refletir e revelar ao mundo
algo do caráter e da natureza divina, algo do amor e santidade. É por
esta razão que Paulo se preocupa com o comportamento dos cristãos. O
conhecimento de Deus era, muitas vezes, negado pelo comportamento dos
cristãos. A forma como viviam negava aquilo que criam e afirmavam sobre
Deus. A fórmula de Tiago era muito simples: A fé sem as obras
decorrentes dela é morta. Não se demonstra a fé sem um comportamento
adequado a ela. O apelo que Paulo faz aos crentes de Creta é para que
“embelezem a doutrina de Deus com um comportamento apropriado (Tt 2.10).
Jesus
afirma que o mundo nos reconhecerá como seus discípulos pelo amor que
demonstramos para com o próximo (Jo 13.34,35). Afirma também, em sua
oração de despedida, que o mundo haveria de crer que ele é o Salvador
pela comunhão e unidade que os discípulos dele haveriam de demonstrar
(Jo 17.21). Jesus oferece ao mundo o direito de julgar a identidade do
seu povo pela forma como amam e respondem à missão do Filho.
O
chamado de Deus envolve a doutrina e o comportamento ou, nas palavras
de Francis Schaeffer, a ortodoxia da doutrina e a ortodoxia da
comunidade. Só podemos compreender a importância e a influência da
igreja nos primeiros séculos por estas duas realidades combinadas.
As
igrejas sempre enfrentaram dificuldades, ora com a doutrina, ora com o
comportamento. Na maioria das vezes, com ambos. Líderes gananciosos e
enganadores, cristãos insolentes e desobedientes comprometem a
integridade e a identidade da igreja de Cristo. Ser povo de Deus,
reconhecer que temos um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e
Pai, que fazemos parte de um mesmo corpo onde, embora sendo distintos,
formamos uma só realidade, nunca foi tarefa fácil.
Exatamente
por ser uma tarefa difícil é que Paulo exorta os cristãos a serem
diligentes e a se esforçarem para preservar sua identidade comum. É uma
tarefa que requer humildade, mansidão, compaixão, submissão, e muitas
outras virtudes que são rejeitadas pela cultura moderna. No passado, um
grande obstáculo à unidade da igreja eram as barreiras denominais e
institucionais. Hoje, as muralhas que foram construídas ao redor das
denominações vem sendo ruídas, mas enfrentamos uma outra muralha, talvez
ainda maior. Nós mesmos.
O narcisismo é a marca do século. Se o século 19 foi marcado pela
cultura racional, o século 20 foi o século da cultura terapêutica. Uma
cultura que, ao intensificar o individualismo, legitimou uma forma de
“divinização do self”. A saúde mental e o bem-estar tornaram-se
substitutos para a salvação. O que o ser humano busca hoje não é a
salvação através do arrependimento e fé, mas o sentir-se bem e
confortável. A cultura terapêutica introduziu um modelo de
relacionamento que rejeita qualquer forma de julgamento, fazendo com que
o indivíduo crie sua própria realidade.
Não existem
limites para o “ego” narcisista, carente e faminto. A consciência de
dever para com o outro foi substituída pelo “dever que tenho para
comigo”. A busca pela autorrealização, autossatisfação,
autossuficiência, descrevem o frágil reconhecimento do outro. Tudo isto
nos leva a viver a partir daquilo que é aparente. Nós nos preocupamos
mais com o exterior e não com o interior. Esta preocupação nos leva a
fugir de nossa realidade pessoal mais profunda, das frustrações
decorrentes de relacionamentos superficiais e frágeis, vivendo numa
agitação constante, agenda cheia, negando a realidade interior e
pessoal.
Os desdobramentos deste espírito narcisista e
secularizado é grande e profundo para a igreja de Jesus Cristo. Os
líderes cristãos estão cada vez mais ocupados com suas agendas e
projetos pessoais na busca frenética de autoafirmação. Seus
relacionamentos não são nem pessoais, nem profundos, o que os leva a
cultivarem uma forma de “irrealismo ministerial”. Acham que estão
“conectados” por participarem de redes sociais, mas a família
encontra-se fragmentada e adoecida. Fazem comentários, declarações, que
não tem nenhuma relação com a forma que vivem. É justamente aqui que
muitos líderes caem porque vivem a partir de uma fantasia e não da
realidade.
A afirmação de João Batista em relação a
Cristo é invertida pelo espírito narcisista. Ao invés de dizer: “convém
que ele cresça e que eu diminua”, passamos a dizer: “convém que ele
diminua para que eu cresça”. Os modelos de ministério e de
espiritualidade têm por objetivo aumentar o senso de autoimportância, e
não o contrário. Queremos ser nosso próprio “messias”. Frutos do
Espírito como humildade, mansidão, bondade, não são buscados, muito
menos desejados. A necessidade de autoafirmação é tão intensa que
preferimos ser cercados de bajuladores do que de irmãos e irmãs que nos
ajudam a viver de forma mais verdadeira diante de Deus.
O
maior obstáculo para a igreja de Jesus Cristo viver em unidade como
povo de Deus somos nós mesmos. Nos critérios diagnósticos para o
Transtorno da Personalidade Narcisista encontramos algumas
características que refletem bem o perfil da liderança cristã. Segundo a
Dra. Elaine Marini (com base no Manual de Diagnósticos de Transtornos
nº 4), este transtorno descreve “Um padrão invasivo de grandiosidade (em
fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e falta de
empatia, que começa no início da idade adulta e está presente em uma
variedade de contextos, indicado por pelo menos cinco dos seguintes
critérios:
(1) sentimento grandioso da própria
importância (por exemplo, exagera realizações e talentos, espera ser
reconhecido como superior sem realizações comensuráveis);
(2) preocupação com fantasias de ilimitado sucesso, poder, inteligência, beleza ou amor ideal;
(3)
crença de ser "especial" e único e de que somente pode ser compreendido
ou deve associar-se a outras pessoas (ou instituições) especiais ou de
condição elevada;
(4) exigência de admiração excessiva;
(5)
sentimento de intitulação, ou seja, possui expectativas irracionais de
receber um tratamento especialmente favorável ou obediência automática
às suas expectativas;
(6) é explorador em relacionamentos interpessoais, isto é, tira vantagem de outros para atingir seus próprios objetivos;
(7) ausência de empatia: reluta em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e necessidades alheias;
(8) frequentemente sente inveja de outras pessoas ou acredita ser alvo da inveja alheia;
(9) comportamentos e atitudes arrogantes e insolentes.
O
curioso é que no próximo Manual de Diagnósticos de Transtornos (nº 5)
que será publicado em 2012, o Transtorno de Personalidade Narcisista
será retirado. Deixará de ser uma patologia. Imagino que para estes
“cientistas”, quando uma patologia torna-se um padrão de comportamento,
deixa de ser patologia e passa a ser um comportamento normal. Por este
critério, muitos líderes cristãos deveriam estar numa clínica, e não num
púlpito.
É este espírito, ao meu ver, o maior inimigo à
identidade comum que precisamos ter como povo de Deus. Existem duas
afirmações de Paulo em sua carta a Tito que descrevem posturas distintas
em relação aos líderes cristãos e a formação do povo de Deus:
1.
“No tocante a Deus, professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas
obras; é por isso que são abomináveis, desobedientes e reprovados para
toda boa obra” (1.16) – A negação do conhecimento de Deus vem pela
ausência da prática das boas obras. A fé sem obras é morta. Conhecimento
de Deus sem a ética e a espiritualidade adequada a este conhecimento é
vazio. Estes líderes falam muito, agitam-se muito, mas permanecem vazios
e negam a doutrina de Cristo e dividem o povo de Deus. São líderes
narcisistas. Pensam mais em si do que no “corpo de Cristo”.
2.
“Não furtem; pelo contrário, deem prova de toda a fidelidade, a fim de
ornarem, em todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador” (2.10).
O apelo de Paulo é para que os líderes cristãos embelezem a verdade do
evangelho com a prática das boas obras e da vivência real do “fruto do
Espírito”. Adornamos a doutrina de Deus na medida em que o mundo, ao ver
a forma como amamos e servimos e a unidade do povo de Deus, reconhecerá
a verdade acerca de Jesus Cristo.
É isto que o
historiador Eusébio de Cesareia (265-339) afirma ao descrever o
comportamento dos cristãos em meio a uma terrível peste. “Eles eram,
efetivamente, os únicos que nesta circunstância calamitosa demonstravam
com suas próprias obras, compaixão e o amor aos homens. Uns perseveravam
todo dia no cuidado e no enterro dos mortos (pois eram milhares os que
não tinham quem se ocupasse deles) e outros, reunindo num mesmo lugar a
multidão dos que em toda a cidade estavam esgotados pela fome, repartiam
pão para todos, de forma que o fato correu de boca em boca, e todos os
homens glorificavam o Deus dos cristãos, e convencidos pelas próprias
obras, confessavam que estes eram os únicos verdadeiramente piedosos e
temerosos a Deus”.
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