No
último domingo, 22 de janeiro, uma área em São José dos Campos (SP)
conhecida como “Pinheirinho” foi alvo de uma grande operação da Polícia
Militar de São Paulo, que cumpriu um mandado de reintegração de posse,
retirando 6 mil moradores do terreno. Durante a ação policial houve
mortes, incluindo a de uma criança de três anos, que não foram
noticiadas na imprensa, mas foram confirmadas pelo presidente da
Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de
São José dos Campos, Aristeu César Pinto Neto. O Pinheirinho, que tem
mais de um milhão de metros quadrados, é uma das maiores ocupações
urbanas da América Latina e é o centro de uma enorme disputa judicial.
De um lado, figura Naji Nahas, dono do terreno, mega especulador
financeiro que deve milhões aos cofres públicos, tendo sido preso na
Operação Satiagraha, em 2008, por evasão de divisas e lavagem de
dinheiro. De outro lado, 1.600 famílias que ocuparam a área há cerca de
oito anos.
Não quero entrar no mérito sobre a
ilegalidade das ações da polícia paulista em Pinheirinho. Não que elas
não mereçam análise de mérito, mas a deixo a cargo daqueles que, com o
cinismo característico, perdem-se num interminável complexo de Adão, que
comeu a maçã por culpa de Eva, que a comeu por culpa da serpente. E a
serpente... bem, a serpente são os outros. O soldado matou porque o
coronel mandou. O coronel mandou porque o governador assim o requereu. E
para o governador, que descumpriu uma ordem federal para que
suspendesse a reintegração de posse, a culpa é da justiça.
Minha
pequena nota dirige-se, então, especificamente a algumas observações
que li nas redes sociais nos últimos dias sobre esse caso. Muitos
comentaram que todos os moradores do Pinheirinho são “vagabundos e
preguiçosos” por morarem em terreno “dos outros”, e, portanto, mereceram
ser expulsos de lá, mesmo à bala. Fiquei pensando no seguinte: segundo
dados recentes da ONU (The Chronic Poverty Report 2008-09), 1,2 bilhões
de pessoas no mundo vivem abaixo da linha da pobreza, isto é, com menos
de US$ 1,00 (um dólar) por dia para satisfazer todas as necessidades
pessoais. Desse total, cerca de 1 bi (um bilhão) vive em favelas
(UN-Habitat 2010), sendo que mais da metade está em áreas privadas sem
regularização por parte do Estado, como é o caso do Pinheirinho. Ou
seja, estamos falando em 500 milhões de “vagabundos e preguiçosos” ao
redor do mundo que precisam ser expulsos de suas casas com urgência.
Outros
comentários alegavam que os “vagabundos” desobedeceram à lei ao
ocuparem um terreno privado. Não lhes culpo por acharem assim, mas
talvez desconheçam que estamos aqui diante de uma colisão de normas do
sistema jurídico. A propriedade privada merece, sim, a proteção
constitucional e efetiva do Estado. Mas esta mesma Constituição
estabelece como máxima que a propriedade urbana somente deve ser
passível de proteção pelo Estado se atender à sua função social, o que
não é o caso do Pinheirinho, cujo terreno é mantido unicamente como
fruto de especulação financeira imobiliária. A ordem judicial paulista
de reintegração de posse, além de desconsiderar esse princípio
constitucional, descumpriu acordos internacionais firmados pelo Brasil
em matéria de moradia. Alguns deles são: Declaração Universal dos
Direitos Humanos (artigo 25); Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 11); Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (artigo 4, artigo 17); Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (artigo 5, e,
iii); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra as Mulheres (artigo 14.2); Convenção dos Direitos das Crianças
(artigo 27.3).
Deduzo que há nas entrelinhas de
tais comentários, e, principalmente no senso comum dos brasileiros, uma
falsa ideia de que o crescimento econômico faz/fará automaticamente, e
por si só, com que desapareçam as favelas. Entretanto, se, como propaga o
governo, dez milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema no Brasil,
outros vinte milhões ainda continuam à margem. Tudo num contexto em que é
extremamente rarefeita a ligação de pessoas sem moradia com o acesso à
saúde, à educação, ao trabalho digno. Defender a fundamentalidade
transcendente do direito à moradia a essas pessoas é reconhecer,
portanto, que a moradia traça uma linha divisória entre a pobreza e a
miséria extrema, entre a vulnerabilidade e absoluta vulnerabilidade, de
modo que um melhor acesso à segurança social requer de igual modo um
melhor acesso à moradia.
Ver a questão do
Pinheirinho e de outras comunidades, tais como “Dandara” em Belo
Horizonte (MG), fora das lentes da justiça social é caminhar por um viés
que privilegia um discurso monocromático, unilateral, indiferente a
outras condicionantes, e que flerta com a assimetria do poder de polícia
numa síntese da visão do mundo nietzchiana, que glorifica o poder e a
força. Atitudes semelhantes às do Governo Paulista tornam o Brasil, tão
avesso e carente de respostas globais a problemas coletivos, mais
impermeável ainda às condicionantes históricas de pobreza, miséria,
escravidão, pseudo-empregos, precário sistema de saúde, analfabetismo
total e funcional e déficit de maturidade democrática de sua população.
Quando se atenua a justiça, a democracia torna-se delgada. Onde seres
humanos são mortos por defenderem seu abrigo, a liberdade perde a sua
casa e a justiça é destinada a ser morta também.
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Áquila Mazzinghy é professor de Direito Internacional e Direitos Humanos.
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