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Não quero entrar no mérito sobre a
ilegalidade das ações da polícia paulista em Pinheirinho. Não que elas
não mereçam análise de mérito, mas a deixo a cargo daqueles que, com o
cinismo característico, perdem-se num interminável complexo de Adão, que
comeu a maçã por culpa de Eva, que a comeu por culpa da serpente. E a
serpente... bem, a serpente são os outros. O soldado matou porque o
coronel mandou. O coronel mandou porque o governador assim o requereu. E
para o governador, que descumpriu uma ordem federal para que
suspendesse a reintegração de posse, a culpa é da justiça.
Minha
pequena nota dirige-se, então, especificamente a algumas observações
que li nas redes sociais nos últimos dias sobre esse caso. Muitos
comentaram que todos os moradores do Pinheirinho são “vagabundos e
preguiçosos” por morarem em terreno “dos outros”, e, portanto, mereceram
ser expulsos de lá, mesmo à bala. Fiquei pensando no seguinte: segundo
dados recentes da ONU (The Chronic Poverty Report 2008-09), 1,2 bilhões
de pessoas no mundo vivem abaixo da linha da pobreza, isto é, com menos
de US$ 1,00 (um dólar) por dia para satisfazer todas as necessidades
pessoais. Desse total, cerca de 1 bi (um bilhão) vive em favelas
(UN-Habitat 2010), sendo que mais da metade está em áreas privadas sem
regularização por parte do Estado, como é o caso do Pinheirinho. Ou
seja, estamos falando em 500 milhões de “vagabundos e preguiçosos” ao
redor do mundo que precisam ser expulsos de suas casas com urgência.
Outros
comentários alegavam que os “vagabundos” desobedeceram à lei ao
ocuparem um terreno privado. Não lhes culpo por acharem assim, mas
talvez desconheçam que estamos aqui diante de uma colisão de normas do
sistema jurídico. A propriedade privada merece, sim, a proteção
constitucional e efetiva do Estado. Mas esta mesma Constituição
estabelece como máxima que a propriedade urbana somente deve ser
passível de proteção pelo Estado se atender à sua função social, o que
não é o caso do Pinheirinho, cujo terreno é mantido unicamente como
fruto de especulação financeira imobiliária. A ordem judicial paulista
de reintegração de posse, além de desconsiderar esse princípio
constitucional, descumpriu acordos internacionais firmados pelo Brasil
em matéria de moradia. Alguns deles são: Declaração Universal dos
Direitos Humanos (artigo 25); Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 11); Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (artigo 4, artigo 17); Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (artigo 5, e,
iii); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra as Mulheres (artigo 14.2); Convenção dos Direitos das Crianças
(artigo 27.3).
Deduzo que há nas entrelinhas de
tais comentários, e, principalmente no senso comum dos brasileiros, uma
falsa ideia de que o crescimento econômico faz/fará automaticamente, e
por si só, com que desapareçam as favelas. Entretanto, se, como propaga o
governo, dez milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema no Brasil,
outros vinte milhões ainda continuam à margem. Tudo num contexto em que é
extremamente rarefeita a ligação de pessoas sem moradia com o acesso à
saúde, à educação, ao trabalho digno. Defender a fundamentalidade
transcendente do direito à moradia a essas pessoas é reconhecer,
portanto, que a moradia traça uma linha divisória entre a pobreza e a
miséria extrema, entre a vulnerabilidade e absoluta vulnerabilidade, de
modo que um melhor acesso à segurança social requer de igual modo um
melhor acesso à moradia.
Ver a questão do
Pinheirinho e de outras comunidades, tais como “Dandara” em Belo
Horizonte (MG), fora das lentes da justiça social é caminhar por um viés
que privilegia um discurso monocromático, unilateral, indiferente a
outras condicionantes, e que flerta com a assimetria do poder de polícia
numa síntese da visão do mundo nietzchiana, que glorifica o poder e a
força. Atitudes semelhantes às do Governo Paulista tornam o Brasil, tão
avesso e carente de respostas globais a problemas coletivos, mais
impermeável ainda às condicionantes históricas de pobreza, miséria,
escravidão, pseudo-empregos, precário sistema de saúde, analfabetismo
total e funcional e déficit de maturidade democrática de sua população.
Quando se atenua a justiça, a democracia torna-se delgada. Onde seres
humanos são mortos por defenderem seu abrigo, a liberdade perde a sua
casa e a justiça é destinada a ser morta também.
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Áquila Mazzinghy é professor de Direito Internacional e Direitos Humanos.
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