terça-feira, 29 de julho de 2008

O Valor da Falta

Anteriormente, levantei, brevemente, a questão da falta e o jardim do Éden. Agora, desejo aprofundar um pouco mais no tema.

Deve-se ter cuidado para não transportar às Escrituras o modelo psicanalítico, de qualquer escola. Os personagens bíblicos não têm dados biográficos suficientes (com raras exceções) para qualquer interpretação que pretenda ser respeitável. Contudo, alguns conceitos podem, acredito, ser explorados pelas páginas sagradas.

Um destes é o da falta. O ser humano é descrito pelos freudianos como um "ser em falta", "um ser construído em torno de uma falta". Seu maior modelo neste ponto é o complexo de castração. Sumariamente, o efeito produzido na criança ao perceber a diferença entre os sexos, que seja, a presença peniana - e, portanto, a possibilidade de perder o órgão, para uns, e o fato de nunca tê-lo tido, para outros.

Tradicionalmente, a falta é descrita como algo de contorno negativo, ainda que seja a mola mestra de todo processo criativo humano. Apesar disto, continua sendo um fato a lamentar e a desejar um dia em que não mais exista.

Biblicamente, a falta pode ser rastreada na queda do primeiro casal. A falta, ao menos no seu sentido negativo, teria surgido neste momento, quando Adão e Eva são expulsos do Paraíso, do lugar da perfeição.

Minha hipótese é de que a falta faz parte dos planos do Criador desde o primeiro momento, e que a rejeição desta característica deu à luz ao primeiro pecado humano.

A descrição do Jardim é de um mundo perfeito, onde o homem, representado pelo primeiro casal, tornar-se mordomo do Criador, seu representante junto aos demais seres criados. Seu poder é tremendo: guardar, nomear, subjugar e sujeitar. E para esta tarefa, é deixado sozinho, e o autor de Gênesis não faz referência a nenhum "manual do fabricante". Parece que nomear, subjugar e sujeitar eram processos que eles aprenderiam fazendo.

Parece ser correto deduzir que Deus se ausentava do Éden, mas que nele passeava ao final do dia 1. O texto não diz que o Criador passava para "tomar satisfação", ou "fazer auditoria", ou "avaliar o trabalho desenvolvido". Diz que ele "passeava"; atividade de quem está tranqüilo, relaxado, despreocupado - provavelmente, confiante na capacidade dos seus representantes desempenharem a tarefa solicitada.

Usando o referencial psicanalítico, e supondo ser legítimo aplicá-lo a uma época tão arcaica, a convivência tão íntima entre Criador e criatura marcava uma diferença radical. Ela não era Ele! E isto não era fator negativo, não era uma falha na criação, alvo de 7 avaliações do seu autor como "...e viu Deus que era bom". O reconhecimento da diferença era fator constitutivo do casal e, supostamente, dos seus descendentes.

O fruto da árvore da vida nada mais era que o marco simbólico desta diferença. E como observou Rubem Alves 2, símbolo é aquilo que se inscreve na ausência de alguma coisa.

Naquela época primeva, o símbolo não marcava um fato negativo, marcava uma diferença constitutiva, relatava um fato, e punha uma escolha diária: o não comer reafirmava o caráter divino do casal, a aceitação da desigualdade como marca da perfeição. Digo que reafirmava o caráter divino porque este foi-lhe dado a partir do momento que fora criado "segundo a imagem e semelhança" de Deus que é Trino e Uno. Um Deus que é Uno numa coletividade de Três Pessoas que se revelam de modo diferente, através de funções diferentes. Cada dia em que se mantiam longa da árvore, reafirmavam sua aceitação de um mundo perfeito que integrava a falta na sua perfeição.

A rejeição se deu no momento em que decidiram não mais aceitar a falta como algo intrinsecamente bom, mas como algo a ser rejeitado ("sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal"), algo que os promoveria de categoria dentro da Criação.

A partir daí a falta tornou-se sinônimo de separação, de falha constitutiva e não de diferença constitutiva, com todas as conseqüências de milhares de anos de história puramente humana.

 

1 Gn 3.8

2 Alves R O que é religião, Editora Brasiliense

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