(Jo 20.19-29)
"Porque viste, creste? Felizes os que não viram, e creram". As palavras de Jesus a Tomé ecoam desde aquela época até os dias de hoje. Todo esse incidente nos fala de dúvida. E Dídimo não foi o único a duvidar. Passou à história de modo injusto, como se fosse o único incrédulo dentre os onze, quando apenas expressou de modo claro o que, na verdade, todos os discípulos pensavam em segredo: será verdade? O que prova que Ele ressuscitou? A passagem paralela em Lucas deixa claro o que a de João apenas cita: Jesus provou sua corporalidade a todos os apóstolos.
Vamos rever os fatos, em conjunto com Lc 24.36-42:
1. Jesus se apresenta aos discípulos reunidos
2. Eles temiam os judeus (provavelmente as portas estavam trancadas e as janelas cerradas)
3. Eles se assustaram com a súbita aparição de Jesus
4. O confundiram com um "fantasma"
5. Jesus insiste que o apalpem e o vejam, atestando o fato da ressurreição
6. Ele os comissiona
7. A dúvida de Tomé
8. O novo encontro e a confissão de Tomé
Esse momento, somado aos demais encontros pós-crucificação, é vital para a história da salvação. É necessário que a ressurreição seja fato histórico, incontestável. Ela não pode ser uma metáfora, ou um sonho, mas uma realidade visível, ainda que somente pela fé, para os que não O viram. Paulo demonstra a questão quando escreve à igreja em Corinto (I Co 15):
1. A ressurreição de Cristo é garantia de que nossos pecados estão perdoados
2. Ela também garante que ressuscitaremos, ou seja, de que nosso destino final não é a morte
3. Portanto, se Jesus não ressuscitou, não há pecado perdoado nem morte vencida
4. Se não há ressurreição, todo o Evangelho é uma ilusão, sendo melhor "curtir a vida" que "perdê-la" por um sonho absurdo
Os apóstolos e os primeiros discípulos serão os únicos a conviver com quem esteve morto mas reviveu em definitivo[1], estando hoje na presença de Deus Pai. Os demais cristãos terão de aceitar o fato pela fé, ou seja, sem provas, no espírito de Hebreus: "fé é ... a prova de que existem coisas que não vemos" (Hb 11.1, tradução na Linguagem de Hoje - SBB).
Durante seu ministério, Jesus enfrentou questionamentos acerca de sua autoridade e identidade. Apesar de todos os milagres e prodígios que já executara, certa ocasião foi-lhe requisitado que provasse sua messianidade. Respondeu que o único sinal que daria seria a sua morte e sua ressurreição. Os evangelhos não registram nenhum contato pós-crucificação entre Ele e aqueles que se postavam como seus inimigos. O sinal de Jonas teria de ser aceito por eles, através da fé...
Noutro momento Ele frisa a importância da certeza de que as Escrituras são a Revelação do Pai. Narra a parábola do rico e de Lázaro. Aquele solicita a Abraão que permita ao último retornar ao mundo dos vivos, a fim de avisar seus parentes e amigos dos riscos que corriam pela vida que levavam. Afinal, o testemunho de alguém que ressuscitasse seria levado a sério. Abrãao é taxativo: os vivos têm a Revelação escrita (Moisés e os profetas). Se não crêem nela (pela fé), não crerão em nenhum tipo de testemunho.
A parábola coloca que a questão não é de evidência externa, ou científica; é de evidência interna, íntima- aquilo que estamos dispostos, ou não, a acreditar. Por isso foi mais conveniente às autoridades subornarem os guardas para espalharem que o corpo de Cristo tinha sido roubado (Mt 28.11-15). Igualmente, foi mais fácil ao Faraó "endurecer seu coração" a acreditar no Deus de seus escravos. Dados científicos dizem "o conjunto dos dados disponíveis torna altamente provável que isso ou aquilo seja verdadeiro", validando o "é possível", ou dizem: "o conjunto dos dados disponíveis torna altamente improvável que isso ou aquilo seja verdadeiro". Ou seja, nada provam; apenas embazam.
O que nos torna cristãos é, na verdade, a ação do Espírito em nós, convencendo-nos de nossa distância dos propósitos do Criador (ainda que tenhamos aspectos bons), do nosso estado de perpétua rebeldia (ainda que, eventualmente, nos submetamos) e da intermediação que a morte e a ressurreição fazem entre o Pai e nós, de modo que somos aceitos, mesmo que inadequados e desobedientes (ainda que não compreendamos por que as coisas são assim).
O que nos torna cristãos é, na verdade, uma aceitação dos fatos acima por evidência íntima, não porque temos convicção que alguém ressuscitou dos mortos. A partir da convicção "do pecado, da justiça e do juízo", é que cremos na ressurreição.
Somos convencidos, ou não, intimamente, pelo somatório de diversos fatores, como, por exemplo: a criação que tivemos, nossa estrutura psicológica, nosso ambiente cultural, a forma como a mensagem do Evangelho foi apresentada, nossas escolhas pessoais e nossa natural resistência à soberania de Deus. Mas, uma vez apresentados a Ele, nada escusa a Sua rejeição permanente[2]. As Escrituras dizem:
"Os céus contam a glória de Deus,
e o firmamento proclama a obra de suas mãos" (Sl 19.1)
mas,
"Diz o insensato no seu coração:
'Deus não existe!'" (Sl 14.1)
É curioso que a metáfora de Paulo sobre o Reino ("agora vemos em espelho e de maneira confusa" - I Co 13.12a) é perfeitamente aplicada à ciência. Ela apenas nos dá um vislumbre das possibilidades, não uma certeza absoluta. Aliás, em termos científicos, o que é supostamente verdade hoje, deixa de sê-lo amanhã.
Portanto, cremos porque o nosso coração se inclina para crer, não porque nossa razão nos obriga (ainda que uma compreensão racional da fé seja necessária para um crescimento espiritual saudável).
"Felizes os que não viram, e creram".