terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Bênçãos da carne, pecados do espírito

Rev. Sandro Cerveira

“Os pecados do espírito são mais dolorosos que os pecados da carne”
 Tomaz de Aquino

O Carnaval, durante muito tempo, foi um dos principais símbolos de tudo aquilo que deveria ser combatido e evitado pelos evangélicos ou por qualquer pessoa que tenha compromisso com Deus. Parece haver motivo para isso. A própria noção de uma “festa da carne”, durante a qual a ordem tradicional é relativizada se não invertida, sugere que nesse período de “liberou geral” os comportamentos moralmente reprováveis não são apenas permitidos, mas também incentivados. Essa percepção de uma liberalidade exacerbada associada a um período dedicado à “carne” motivou e motiva esforços de igrejas e do próprio Estado no sentido de evitar o pecado, no primeiro, caso e reduzir danos, no segundo. As igrejas pregam contra, exortam, fazem retiros e o Ministério da Saúde faz campanhas, distribui camisinhas (este ano serão 55 milhões de unidades) e facilita o acesso às chamadas pílulas do dia seguinte.
Embora essas ações sejam positivas e necessárias, no sentido de evitar maiores males advindos do exacerbamento dos comportamentos autodestrutivos do período, creio que é preciso ir mais fundo nessas questões.
No que se refere às ações de Estado, uma ponderação. Segundo pesquisa publicada pela Universidade Federal Fluminense em 2008, ao contrário do que se imagina, “o carnaval não está associado a um aumento no número de casos de doenças sexualmente transmissíveis ou dos índices de gravidez.”  Dada a seriedade da instituição que assina a pesquisa, ocorrem-me duas possibilidades: ou os “excessos” carnavalescos não são tão excessivos assim ou as campanhas de prevenção feitas no período estão sendo eficientes. Uma combinação das duas hipóteses também é razoável. O fato de que, segundo o Ministério da Saúde, “o número de partos feitos em adolescentes na rede pública diminuiu 30,6%”  na última década sugere que o acesso às políticas de prevenção e orientação sobre saúde sexual, intensificados nos últimos anos, tem realmente dado resultados positivos. Pondero que, dada essa eficácia, é preciso que elas sejam efetivamente universais e atemporais. A ilusão de que a gravidez indesejada e a contaminação pela AIDS é um castigo para os pecadores que se entregam à devassidão e à promiscuidade já não se sustenta. Apoiar políticas responsáveis que salvem vidas e evitem maiores dores é nosso dever como cristãos, ainda que tenhamos algo mais a dizer sobre o assunto.
Falemos desse algo mais.  A pregação que condena as “obras da carne” por muito tempo foi reduzida à condenação do sexo e até mesmo de qualquer expressão de nossa sexualidade. Nossa noção de pecado ficou tão atrelada a uma visão negativa do corpo que, às vezes, acreditamos ter o mal uma origem física e que uma vida totalmente “espiritual” seria a verdadeira santidade. Reconheço que muitos textos bíblicos dão margem a essa visão, entretanto é preciso olhar o assunto com mais cuidado sob o risco de assumirmos posturas gnósticas e maniqueístas sem o sabermos. Ao escrever a Timóteo, Paulo afirmou  que a origem de todos os males estava no amor... Calma, leia o texto bíblico. “Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores.” (1 Timóteo 6:10) A fala de Paulo  nos lembra que amar o objeto errado nos traz muitas dores. Dentre as muitas definições de pecado está aquela que diz que pecar é errar o alvo. O amor, algo divino e intrinsecamente espiritual, quando apontado para o alvo errado se transforma em pecado e morte. De Agostinho sempre lembramos a frase “ama e faze o que quiseres” mas ele também teria dito: “atenta para o objeto do teu amor”. Tomaz de Aquino definiu pecado como “amor mal dirigido”.
Para finalizar, quero enfatizar a necessidade de sermos cuidadosos com as “paixões da juventude”, em especial em dias durante os quais ouvimos que tudo é permitido e não há conseqüências. Para tudo há conseqüência. Tudo tem seu preço e não há como escapar disso. Entretanto, quero nos convidar a uma reflexão mais radical que supera o dualismo carne e espírito, lembrando que o pecado é algo espiritual e que, mesmo que tenhamos o corpo sob total controle ascético, podemos ser miseráveis e perversos em nossos afetos e relacionamentos. Abrindo mão de toda a arrogância, sexismo, autoritarismo, racismo, egoísmo, indiferença (entre outras tantas formas de mal), busquemos ajustar bem o foco do nosso amor: Deus sobre todas as coisas e o próximo como a nós mesmos. (Mateus 22: 35-37)

O título e a epígrafe desse texto são uma referência ao livro que me inspirou a escrever essa pastoral:  “Pecados do Espírito, Bênçãos da Carne: lições para transformar o mal na alma e na sociedade” do teólogo Matthew Fox, publicado no Brasil pela Verus Editora. 

fonte: http://www.segundaigreja.org.br/pastorais_view.asp?id=62

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