Gripe Suína — Influenza A(H1N1) [1/2] Um susto revelador Marinilda Carvalho Nada como um susto sanitário global para detectar a taxa de solidariedade entre as nações — ou a falta dela. Também se mede o bom senso das autoridades de saúde nas medidas de prevenção — ou as pressões políticas e econômicas que as embasam. O vírus da Influenza A(H1N1), nome adotado pela OMS em lugar de gripe suína após protestos da indústria de carne de porco e derivados, espalhou preconceito e alarmismo, além de medo institucional. A origem desse nome inodoro, Influenza A(H1N1), está na estrutura viral: um envoltório de superfície com suas glicoproteínas, logo abaixo dele a matriz (membrana); dentro, nucleoproteínas (NP) e material genético, ou RNA. Esse vírus ganhou em abril o nome de A/California/4/2009 (H1N1). A nomenclatura funciona assim: uma cepa de influenza tipo A isolada, por exemplo, nas Filipinas em 1982, tendo o segundo vírus descoberto no local as proteínas de superfície H3 e N2, seria descrita como A/Filipinas/2/82 (H3N2). Na hora do "batismo", o virologista considera o tipo do vírus, a localização geográfica do isolamento, o número de casos, o ano do isolamento e as propriedades antigênicas das glicoproteínas, a hemaglutinina (HA) e a neuraminidase (NA) — as tais iniciais H e N do H1N1 (essa relação já está em H16 e N9). A hemaglutinina liga o vírus ao receptor da célula hospedeira; a neuraminidase produz substância que facilita o transporte do vírus pelo muco. Graças a essa "sopa de letras" os virologistas descobriram que esse vírus era algo novo. Segundo a bióloga Laurie Garrett, premiada escritora de ciência, ele foi detectado pela primeira vez em novembro de 2005 nos Estados Unidos, quando um garoto de 17 anos de Sheboygan, Wisconsin, contraiu gripe. Ele ajudara o cunhado açougueiro a abater porcos. Como estava muito frio, abrigou em casa a galinha que a família prepararia para o feriado de Ação de Graças. O vírus de Sheboygan era um mosaico: continha cepa de influenza aviária, suína e humana, um triplo "rearranjo" genético (o reassortment de que falam os virologistas) resultando em novo vírus com traços genéticos de três espécies — uma delas, o Homo sapiens. O garoto ficou bom logo e esse "novo passo na árvore da evolução genética" foi esquecido. Para nós, brasileiros, espanta a omissão dos americanos, que podem não prover assistência universal a seu povo, mas têm vigilância epidemiológica impecável (um exemplo: em outubro de 2001, um mês depois do 11 de Setembro, 60 casos confirmados de dengue no Havaí causaram frenesi; recorreu-se até ao serviço meteorológico para que o satélite localizasse a incidência, e o foco foi logo controlado). A ROTA DO VÍRUS Pois em setembro de 2008 o novo H1N1 reapareceu no Texas; em meados de março, mais dois casos, no Texas e na Califórnia. Laurie Garrett contou essa história primeiro em 27/4, em entrevista por conference call de Nova York, mas poucos acompanharam: aqui, só o Jornal do Brasil, que em 28/4 reproduziu sua fala em formato de artigo. Nos EUA, a revista Newsweek prestou atenção a ponto de entregar a Laurie sua capa (nas bancas do Rio na manhã de 8/5), com o artigo "A rota de uma pandemia", de 7 páginas (www.newsweek.com/id/195692). Em tempos de medo, diz ela, é próprio dos humanos procurar culpados. "O dedo está apontado para a espécie suína Sus domestica ou a nação do México". Foi lá que o vírus eclodiu, matou gente e transformou os mexicanos em alvo de cruel discriminação. Nos EUA, aprofundou a xenofobia (ver pág. 2). China, Cuba, Peru, Equador e Argentina suspenderam voos. Nem os nacionais podiam regressar a sua terra. Na Argentina, o governo foi alarmista. "Como não podiam voltar direto, os argentinos que estavam no México faziam conexão em outro país qualquer e desembarcavam em Buenos Aires sem problemas", contou à Radis um brasileiro lá radicado. "Era só para inglês ver". Colômbia e Chile negaram seus estádios a equipes mexicanas para partidas da Copa Libertadores. Antes da proibição, um time do México que jogou no Chile denunciou que foi tratado "como leproso". Em campo, estressado pelas provocações, um atleta mexicano tossiu no rosto do oponente e gritou: "Agora te infectei!" As imagens correram mundo. O governo chinês trancou em hotéis e hospitais mexicanos lá desembarcados — alguns nem viviam no México — e todos que com eles tiveram contato. O México denunciou as medidas draconianas à ONU e fretou avião para repatriar seus cidadãos. Os chineses tentaram explicar: não podem se arriscar a epidemias numa população de quase 1,5 bilhão — e com sistema de saúde deficiente, acrescente-se (uma das causas apontadas para a letalidade da doença no México, agravada pela pobreza, mas falar disso virou tabu entre as autoridades de saúde). Na Newsweek, Laurie fala de vários tabus, como o vírus similar ao H1N1 que circula no mundo. Não é muito letal, mas no ano passado desenvolveu resistência ao Tamiflu. "Seria preocupante se o H1N1 humano de 2008 trocasse material genético com o novo vírus suíno/humano: teríamos cepa pandêmica tratável apenas com Relenza, que exige um inalador". E mais: circula no Egito um vírus aviário antigo, com traços do H5N1 (Radis 40) que evoluiu muito. "É uma ironia", diz ela, que o Egito sacrifique 300 mil porcos, carne consumida pela minoria cristã, enquanto a variação do H5N1, que já matou 23 egípcios, deixe em paz os frangos da maioria muçulmana. "Um grupo islâmico egípcio declarou que a gripe suína é a vingança de Deus contra os infiéis", conta. A Irmandade Muçulmana, com cadeiras no Parlamento, quer fechar a Namru, unidade naval americana de pesquisa médica "que prestou serviços de saúde ao Oriente Médio por décadas". A Namru deve parar de enviar amostras do H5N1 à OMS, exigem, ecoando a ministra indonésia da Saúde: Siti Supari se nega a compartilhar amostras de H5N1 com a OMS desde 2006 — lacuna no acompanhamento de sua evolução. Em 28/4, Supari declarou: o H1N1 foi "geneticamente fabricado e espalhado para promover as vendas das farmacêuticas americanas". Bem, sabemos que o Tamiflu é da suíça Roche e o Relenza, da britânica GlaxoSmithKline — mas, em tempos globalizados, quem sabe o que é de quem? Teorias conspiratórias à parte, a organização Médicos Sem Fronteiras e países emergentes condenam a OMS por estocar Tamiflu, que envia a nações pobres. Por que não o genérico oseltamivir, questionam? Em janeiro, por pressão dos EUA e da Europa (leia-se fabricantes de medicamentos), a OMS tentou mudar em resolução a definição de "remédio falsificado", numa redação que incluiria os genéricos. O Brasil, liderado pela embaixadora Maria Nazareth Azevedo, montou aliança de emergentes e derrubou temporariamente a tentativa. Acusado de demorar a anunciar a gripe, o paciente ministro da Saúde mexicano, José Córdoba, reagiu indignado: "A Opas sabia desde 11/12 de abril, queriam que o México alardeasse foco de influenza?" De fato, os casos de La Glória, onde começou o foco, foram estudados pelos americanos da Veratect Consulting, que dizem ter alertado a Opas. A obsessão antiterror dos EUA e seu controle de materiais biológicos impediram a chegada de 200 amostras de mexicanos infectados ao CDC de Atlanta em meados de abril. Foram então para Winnipeg, no Canadá — o dobro da distãncia. E o CDC não soube que se tratava "dele", o vírus de Sheboygan. BRASIL SOLIDÁRIO O Brasil foi exemplar: não fechou fronteiras, não suspendeu voos, não isolou ninguém à força, não cedeu à histeria ensaiada. O ministro José Gomes Temporão eximiu o México: atribuiu a responsabilidade pela hesitação à OMS, que só disparou o alerta internacional em 25/4; aos repórteres que cobravam medidas duras respondia: "Seguimos as recomendações da OMS". Um susto sanitário mostra, além de tudo, a dimensão tecnológica das nações. Poucos países (EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Japão e mais alguns) puderam identificar com rapidez a variação do vírus, e o Brasil, por enquanto, não está entre eles, lembra o sanitarista Expedito Luna, professor do Instituto de Medicina Tropical da USP. Ex-diretor de Vigilância Epidemiológica (2003-2007), Luna entende que o Brasil levaria talvez o mesmo tempo que o México para identificar o vírus. É provável. Primeiro, os países — os periféricos, nem se fala — dependem da distribuição das cepas pelo CDC. Aqui, os primers (kits de diagnóstico) só chegaram em 6/5 (o St. Jude Children's Research Hospital, de Memphis, Tennessee, recebeu-os na última semana de abril — mas é um dos cinco laboratórios-referência da OMS no mundo). Por isso, na 62ª Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, de 18 a 22 de maio, o Brasil liderou bloco que reivindica que os vírus e seus sequenciamentos genéticos sejam declarados "bens públicos mundiais", para garantir o acesso de qualquer país a tecnologias e dados científicos em eventuais pandemias. Com apoio de africanos e sul-americanos, impediu que EUA e Canadá — e México! — encerrassem as discussões sobre o tema. Temporão anunciou: o Brasil também quer sediar o primeiro laboratório-referência da OMS na América do Sul. Para Luna, é fundamental ainda uma política de investimentos em vigilância, cuja urgência "só aparece nessas horas". Os gestores deslocam recursos da vigilância para a assistência e o pesquisador vai embora. "Os profissionais mais mal pagos estão na pesquisa básica". Tudo isso, contudo, é consequência. A causa: os gigantescos criadouros de animais em confinamento das grandes corporações do agronegócio, hipermedicados e sujeitos a todo tipo de reassortment genético. A OMS silencia, os governos não se rebelam, a mídia não denuncia. As exceções são Laurie Garrett, que fala da "estranha ecologia que inventamos para alimentar com carne nossas populações", e o historiador Mike Davis, da Universidade da Califórnia, que cita com raiva a "fracassada estratégia antipandêmica da OMS, a progressiva deterioração da saúde pública mundial, a mordaça das grandes transnacionais farmacêuticas aos medicamentos vitais e a catástrofe planetária que é uma produção pecuária industrializada e ecologicamente insustentável". Aqui, o jornalista Mauro Santayana falou disso no JB ("A gripe dos porcos e a mentira dos homens"), citando deputado mexicano que denuncia: a Carroll, subsidiária da Smithfield Foods, expulsa da Virgínia e da Carolina do Norte por danos ambientais, montou em La Glória imenso criadouro de porcos — coberto por nuvem de moscas. Haja vírus novo. (Laurie, Davis e Santayana estão no Radis na Rede). è Fontes Projeto Grog, Unifesp/Adolfo Lutz http://www.grogbrasil.com.br/default.asp Manual da OMS para jornalistas (2005) http://www.opas.org.br/influenza/UploadArq/jornalista.pdf |
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