terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Santos no mundo: os cristãos e a arena pública

Alderi Souza de Matos

Os acontecimentos dos últimos anos, tanto no Brasil quanto no cenário internacional, têm demonstrado amplamente a necessidade e a importância da participação dos cristãos -- como cristãos -- na vida da sociedade. No contexto altamente ideológico do mundo pós-moderno, discutem-se questões e adotam-se práticas que afetam as comunidades religiosas e suas convicções. Se os cristãos se omitirem, causarão grande dano às suas igrejas e às causas que abraçam. Fechar-se dentro das quatro paredes ou isolar-se numa torre de marfim é uma opção cada vez menos viável. Os que insistirem nessa postura, poderão ser atropelados pelos acontecimentos.

A expressão "arena pública" é usada intencionalmente aqui. É mais do que simples sinônimo de ambiente ou setor público. Arena significa um lugar de luta, e os cristãos são convocados explicitamente a pugnar por seus valores, ideais e crenças (Fp 1.27), não de maneira rancorosa, antipática, mas construtiva. A militância cristã na arena pública não pode ser semelhante à de certos grupos ideológicos que usam táticas de violência verbal, chantagem e intimidação. É claro que nem todos os cristãos estão qualificados, seja por temperamento ou aptidões, para atuar nessa esfera. Todavia, aqueles que se sentem chamados para tanto, devem exercer essa vocação e ter o apoio e o encorajamento dos demais.

Posições contrastantes
Na época da Reforma Protestante, houve grupos que, alarmados com os males e corrupções da sociedade, entenderam que a melhor atitude era se afastar dos ambientes urbanos. Alguns anabatistas, por exemplo, achavam que a maneira correta de evitar os vícios e tentações que viam ao seu redor era viver em comunidades agrícolas isoladas das cidades. Assim, pensavam eles, seria mais fácil preservar sua identidade, manter suas crenças, criar suas famílias e cultivar uma vida de consagração a Deus. Para eles, um cristão não devia exercer cargos públicos, fazer juramentos oficiais e participar das forças armadas. No seu entender, tudo isso atentava contra a sua liberdade em Cristo, contra uma vida de santificação.

Os calvinistas ingleses, mais conhecidos como "puritanos", adotaram uma posição diferente. Eles concluíram que era não só lícito, mas desejável, que os cristãos participassem plenamente da vida da coletividade. O mundo certamente oferecia perigos, mas era também o lugar em que os cristãos deveriam viver suas vidas, dar o seu testemunho e servir a Deus. Não havia uma dicotomia entre a santidade e o envolvimento com a família humana. Na verdade, era no contexto da vida social, com suas oportunidades e desafios, dores e alegrias, que os crentes deviam cultivar sua espiritualidade, seu relacionamento com Deus. Eles eram, no dizer de um autor, "santos no mundo", ou seja, sua santidade devia ser vivida na sociedade, e não fora dela. Existem algumas áreas específicas nas quais os cristãos devem atuar responsavelmente como tais, procurando exercer sua influência e prestar serviço à comunidade.

Esfera política
Os puritanos eram herdeiros do reformador João Calvino. Ao contrário dos grupos mencionados, que se retraíam da arena pública, Calvino defendeu com insistência a participação cristã nesse ambiente complexo e difícil. No século 16, a política de modo algum era mais íntegra e respeitável do que hoje. Havia corrupção, luta pelo poder, manipulação e outros males. Mesmo assim, o reformador adotou uma posição que parece absurda para muitos hoje. Em sua obra magna, ele declarou a certa altura: "Ninguém duvide que a autoridade civil é uma vocação não só santa e legítima diante de Deus, mas até mesmo a mais sagrada e a mais honrosa de todas as vocações em toda a vida dos mortais" ("Institutas", 4.20.4).

Foi graças a esse entendimento que a tradição calvinista ou reformada produziu o ideal do governante culto e piedoso, dotado de sólida formação intelectual, espiritual e ética. São exemplos disso Jeanne D'Albret (rainha de Navarra), John Winthrop e William Bradford (antigos governadores de Massachusetts), Abraham Kuyper (pastor, teólogo e primeiro-ministro da Holanda) e Woodrow Wilson (presidente dos Estados Unidos). À luz das Escrituras, Calvino afirmava que a tarefa dos cristãos em posição de autoridade era promover a justiça e a harmonia na vida social, preservar a paz e a tranquilidade comum e, em particular, proteger os fracos e os sofredores. Caso fossem negligentes, a igreja devia lembrar-lhes esses deveres, como fizeram os profetas do Antigo Testamento.

Outras áreas
Erasmo Braga, destacado líder da cooperação evangélica no início do século 20, defendia a participação cristã em todas as áreas da sociedade e criticava as igrejas que não davam aos seus fieis oportunidades para tal. Disse ele em seu último livro (1932): "A tendência para a centralização levanta uma cerca em torno das comunidades evangélicas, e isso inevitavelmente resultará em sua segregação da vida nacional. Participar do serviço à comunidade é um esplêndido meio de dar testemunho de Cristo tanto na vida particular quanto na vida pública... Os evangélicos assumem posições de destaque na vida cívica sempre que saem dos seus próprios círculos eclesiásticos e assumem com outros cidadãos a tarefa de prestar serviço à nação. É chegada a hora de que aqueles que são qualificados para tal se levantem diante do seu próprio povo e testemunhem de Cristo em todas as esferas que estão abertas para eles".

Além da esfera política, existem muitos outros ambientes da arena pública que requerem a participação dos cristãos. Um exemplo importante é o mundo científico e acadêmico. O cristianismo, com sua crença em um universo ordenado, governado por leis fixas, contribuiu para o surgimento da investigação científica. Durante várias gerações, os cristãos atuaram intensamente nos círculos acadêmicos e profissionais, mas hoje muitos estão na defensiva. Outra área significativa é a das artes. É desejável a participação consciente dos cristãos no cinema, no teatro, nas artes plásticas, na música. Ainda outra área fundamental é a das comunicações (imprensa, rádio, televisão, internet). É claro que os cristãos não devem simplesmente transformar esses instrumentos em púlpitos, mas utilizá-los com perspicácia, sensibilidade, criatividade e desejo de fazer o bem aos seus semelhantes.

Conclusão
É importante lembrar que o evangelho é algo a ser vivido na sociedade humana, para que possa cumprir o seu papel saneador e vivificador. O mundo do século 21 será palco de enormes tensões -- crise ecológica, enfrentamentos bélicos, aumento do fosso entre ricos e pobres, recrudescimento dos extremismos, criminalidade. Ao lado de progressos valiosos em muitas áreas, haverá ameaças antigas e novas ao bem-estar da humanidade. A própria fé cristã e a integridade das igrejas serão duramente testadas. Que os cristãos não se omitam -- por medo, alienação ou comodismo --, mas assumam o seu lugar nas diferentes áreas a que são chamados, na força daquele que não veio ao mundo para ser servido, mas para servir e dar a sua vida.


• Alderi Souza de Matos
é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e "Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil".

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