quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Ciência como religião

Eduardo Ribeiro Mundim

Em texto recente (1), concordei com Euler R Westphal que a ciência ocupa o espaço da religião. Baseado emr outro autor (2), pretendo dissecar um pouco mais esta afirmação.

Segundo ele, o que une todas as religiões "é o esforço para pensar a realidade toda a partir da exigência de que a vida faça sentido" (pg 8). Dar sentido significa explicar, dar um esquema de pensamento sobre algo, tornar algo aceitável e compreensível. Frente ao mistério da existência busca-se um sentido. Provavelmente todo ser humano, ao longo de sua existência, pelo menos uma vez se perguntará "de onde eu vim?", "para onde eu vou?", "a morte é tudo?". Estas questões são tão sérias que a biologia tem uma subárea específca, o evolucionismo, que se propõe a responder, como pode, a primeira questão. Estas questões são tão sérias que o homem dedica parte de sua atividade racional, objetiva e supostamente imparcial para analisar algo que não se transformará em produto comercializável, não será vendido, não subsidiará diretamente medicamentos... mas dará uma resposta. A teoria da evolução, neste particular, é um exemplo do que ele afirma ao final da página 11: "o que ocorre com frequência é que as mesma perguntas religiosas do passado se articulam agora, travestidas, pormeio de símbolos secularizados".

Segundo a psicanálise, o ser humano é "um ser em falta". Governado e estimulado pela permanente certeza de que algo lhe escapa permanentemente através dos dedos, sem saber exatamente o que é. Portanto, dá-se a isto o nome de "desejo". E desejo é aquilo que não se tem no espaço e no tempo vividos. Por serem seres racionais, portanto capazes de se tornar independentes das necessidades imediatas do corpo, os seres humanos constroem mundos diferentes conforme o local que habitam, repletos de construções e realizações que não são necessários ao corpo (pinturas, histórias, leis), ao qual se chama cultura. Mas mesmo ela não retém aquilo que se esvai pela mão fechada...

Neste contexto, onde o espanto pela própria existência inexplicável e o desejo nunca satisfeito tensionam a existência, surge o discurso religioso que "...pretende fazer com as coisas: transformá-las,de entidades brutas e vazias, em portadoras de sentido, de tal maneira que elas passem a fazer parte do mundo humano, como se fossem extensões de nós mesmos" (pg 28) e "a religião aparece como a grande hipótese e aposta de qeu o universo inteiro possui uma face humana".

Há mais de dois mil sistemas religiosos ao longo do globo. Três são, aparentemente, hegemônicos, ainda que estejam subdivididos em centenas de subgrupos: cristianismo, islamismo e budismo. Quais as razões pelas quais estes se sobressaem? Não tenho competência para tentar dar uma resposta, mas Rubem Alves aponta uma direção (pg 38): respostas que funcionam, que constroem. Estas são transformadas em verdade, e as que não funcionam, em mentira. O parâmetro não é um juízo de valor, mas de praticidade. E esta praticidade reveste-se de valor moral, tornando-se verdade inquestionável, reduzindo os contraditórios a mentiras.

À medida que a atividade científica vai satisfazendo desejos, ela adquire a aura de verdade...

A atividade racional de observação, experimentação, conclusão, aplicação, questionamentos novos, nova observação, nova experimentação - num ciclo sem fim - tem se mostrado extremamente eficaz no prolongamento da expectativa de vida, no conforto progressivo, na redução do peso do trabalho, na maior disponibilidade para o lazer. Ela funciona, logo é verdadeira...

A atividade científica tornou o conhecimento mais democrático, livre de amarras éticas ou morais. Não é necessário subscrever nenhum códio específico que invada a vida íntima do indivíduo; basta apenas a legislação civil. Não é necessário crer em um ser superior, nem render-lhe culto. A atividade científica exige o chamado "ateísmo metodológico" - deuses não são levados em consideração.

Como explicar a manchete da Revista Época (3) "traídas pela medicina"? Como é possível a ciência trair? Trair é uma ação, e ciência não existe enquanto entidade, apenas como atividade humana. Portanto, o título mais preciso seria "traídas pelos cientistas da medicina". Mas, por que traídas? Trair é ser desleal, infiel. Em que os cientistas atraiçoaram as mulheres? Um conclusão honestamente equivocada pode ser taxada de infâmia? Trair também é decepcionar. Parece que expectativas além do razoável foram postas sobre conclusões científicas. Não é o que se faz nas religiões? Colocar expectativas vistas como irreais por muitos, mas como possíveis pelo que crê?

Não é uma forma de imortalidade (promessa de todas as religiões, de algum modo) a busca incensante pelo sucesso de manipulação do código genético? A clonagem? A chamada dermatologia estética não promete uma pele sempre jovem, a cirurgia plástica um corpo corrigido, a chamada medicina ortomolecular uma luta contra os agentes promotores do envelhecimento (os oxidantes)...e agora, introduziu-se a "medicina anti-idade"!

A verdade não é uma afirmativa das religiões? Mas a ciência diz que "a evolução é verdade inquestionável" (e não é, a teoria é cheia de buracos).

E as possibilidades tecnológicas trazem transformações éticas: é possível diagnosticar a falta de cérebro de uma criança no útero de sua mãe (nesta hora convenientemente chamada "feto"), portanto impedir seu nascimento torna-se possível e...desejável. A capacidade instrumental adquire o status de promulgador da ética. Não é este o espaço da religião?


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(1) Ciência e bioética: um olhar teológico - a ciência como religião
(2) Rubem Alves, O que é religião. 2ª ed Editora Brasiliense 1981
(3) http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT341671-1880,00.html

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