sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O Que John Wesley Praticou e Ensinou Sobre o Dinheiro?

Charles Edward White 

John Wesley pregou muitas vezes sobre o uso do dinheiro. Possuindo provavelmente o maior salário já recebido na Inglaterra, ele teve oportunidades de colocar suas ideias em prática. O que ele disse a respeito do dinheiro? E o que fez com o próprio dinheiro?

 John Wesley experimentou uma pobreza opressiva quando criança. Seu pai, Samuel Wesley, era pastor anglicano numa das paróquias que pagavam os menores salários do país. Ele tinha dezenove filhos para sustentar e raramente ficava sem dívidas. Uma vez John viu seu pai sendo levado para a prisão dos devedores. Portanto, quando seguiu seu pai no ministério, não tinha ilusão alguma acerca das recompensas financeiras.

 É provável que tenha sido uma surpresa para John Wesley que, embora Deus o houvesse chamado para mesma vocação de seu pai, não o havia chamado para ser tão pobre quanto ele. Em vez de ser pastor numa paróquia, John sentiu a direção de Deus para ensinar na Universidade de Oxford. Lá, ele foi escolhido para ser membro do conselho do Lincoln College. Sua posição lhe garantia pelo menos trinta libras por ano, mais do que o suficiente para um rapaz solteiro viver. John parecia desfrutar de sua relativa prosperidade. Gastou seu dinheiro em jogos de cartas, tabaco e conhaque.

 Enquanto estava em Oxford, um incidente transformou sua perspectiva acerca do dinheiro. Ele havia acabado de comprar alguns quadros para colocar em seu quarto, quando uma das camareiras chegou à sua porta. Era um dia frio de inverno, e ele notou que ela não tinha nada para se proteger, exceto uma capa de linho. Ele enfiou a mão no bolso para dar-lhe algum dinheiro para comprar um casaco, mas percebeu que havia sobrado bem pouco. Imediatamente, ficou perplexo com o pensamento de que Deus não havia se agradado pela forma como havia gasto seu dinheiro. Ele perguntou a si mesmo: O mestre me dirá “Muito bem servo bom e fiel”? Tu adornaste as paredes com o dinheiro que poderia ter protegido essa pobre criatura do frio! Ó justiça! Ó misericórdia! Esses quadros não são o sangue dessa pobre empregada?

O que Wesley fez? 

Talvez, como resultado desse incidente, em 1731, Wesley começou a limitar seus gastos para que pudesse ter mais dinheiro para dar aos pobres. Ele registrou que, em determinado ano, sua renda fora de 30 libras, suas despesas, 28, assim, tivera duas libras para dar. No ano seguinte, sua renda dobrou, mas ele continuou administrando seus gastos para viver com 28, desse modo, restaram-lhe 32 libras para dar aos pobres. No terceiro ano, sua renda saltou para 90 libras. Em vez de deixar suas despesas crescerem juntamente com sua renda, ele as manteve em 28 e doou 62 libras. No quarto ano, recebeu 120 libras. Do mesmo modo que antes, suas despesas se mantiveram em 28 libras e, assim, suas doações subiram para 92. 

Wesley sentia que o crente não deveria simplesmente dar o dízimo, mas dar toda sua renda excedente, uma vez que já tivesse suprido a família e os credores. Ele cria que com o crescimento da renda, o que deveria aumentar não era o padrão de vida, mas sim o padrão de doações.

 Essa prática começou em Oxford e continuou por toda a sua vida. Mesmo quando sua renda ultrapassou mil libras esterlinas, ele viveu de modo simples, doando rapidamente seu dinheiro excedente. Houve um ano em que seu salário superou 1400 libras. Ele viveu com 30 e doou aproximadamente 1400. Por não ter uma família para cuidar, não precisava poupar. Ele tinha medo de acumular tesouros na terra, portanto, seu dinheiro ia para as obras de caridade assim que chegava às suas mãos. Ele registrou que nunca permaneceu com 100 libras.

 Wesley limitava suas despesas, não adquirindo coisas que eram tidas como essenciais para um homem de sua posição. Em 1776, os fiscais de impostos inspecionaram suas restituições e lhe escreveram a seguinte sentença: “Não temos dúvidas de que o senhor possui algumas baixelas de prata para cada item que o senhor não declarou até agora”. Eles queriam dizer que um homem proeminente como ele, certamente possuía alguns pratos de prata em sua casa, e o acusavam de sonegação. Wesley lhes respondeu: “Tenho duas colheres de prata em Londres e duas em Bristol. Essa é toda a prata que possuo no momento e não comprarei mais prata alguma, visto que muitos ao meu redor almejam por pão”.

 A outra forma pela qual Wesley limitava seus gastos era identificando-se com os pobres. Ele pregava que os crentes deveriam se considerar como membros dos pobres, a quem Deus havia dado dinheiro para ajudá-los. Portanto, ele vivia e comia com os pobres. Sob a liderança de Wesley, a igreja Metodista de Londres estabeleceu dois abrigos para viúvas na cidade. Elas eram sustentadas pelas ofertas recolhidas nos encontros e nas celebrações da Ceia do Senhor. Em 1748, nove viúvas, uma mulher cega e duas crianças viviam ali. Juntamente com elas, vivia John Wesley e outro pregador metodista que se encontrava na cidade naquela ocasião. Wesley se alegrava em comer da mesma comida que elas, à mesma mesa, antevendo o banquete celestial que todos os crentes compartilharão.

 Durante quatro anos, a dieta de Wesley consistia principalmente em batatas, em partes para melhorar sua saúde, mas também para economizar dinheiro. Ele dizia: “Aquilo que eu guardo para comprar carne pode alimentar alguém que não possui comida alguma”. Em 1744, Wesley escreveu: “Quando eu morrer, se eu deixar dez libras para trás… você e toda a humanidade poderão testemunhar contra mim, dizendo que tenho vivido e morrido como um ladrão e salteador”. Quando ele morreu em 1791, o único dinheiro que estava em sua posse eram algumas moedas, encontradas em seus bolsos e em sua gaveta de roupas.

 O que havia acontecido ao restante do dinheiro que ele ganhara em toda a sua vida, uma quantia estimada em trinta mil libras? Ele o havia doado. Como Wesley havia dito: “Não poderei evitar deixar meus livros para trás quando Deus me chamar, porém minhas próprias mãos executarão a doação de todas as demais coisas”.

O que Wesley Pregou?

 O ensino de Wesley sobre o dinheiro oferece diretrizes simples e práticas para qualquer cristão.

 A primeira regra de Wesley acerca do dinheiro era “Ganhe o máximo que puder”. Apesar de seu potencial para o mau uso, o dinheiro em si é algo bom. O bem que ele pode fazer é infinito: “Nas mãos dos filhos de Deus, ele é comida para os famintos, água para os sedentos, roupas para os que estão descobertos. Ele dá ao viajante e ao estrangeiro um lugar onde pousar a cabeça. Por meio dele, podemos manter a viúva, no lugar de seu marido, e aos órfãos, no lugar de seu pai. Podemos ser uma defesa para os oprimidos, levar saúde aos doentes e alívio aos que têm dor. Ele pode ser como olhos para o cego, como pés para o coxo e como o socorro para livrar alguém dos portões da morte”!

 Wesley acrescenta que ao ganhar o máximo que podem, os crentes devem ser cuidadosos para não prejudicar sua própria alma, mente e corpo ou a alma, mente e corpo de quem quer seja. Desse modo, ele proibiu o ganho de dinheiro em empresas que poluem o meio ambiente ou causam danos aos trabalhadores.

 A segunda regra de Wesley para o uso correto do dinheiro era “Poupe o máximo que puder”. Ele insistiu para que seus ouvintes não gastassem dinheiro somente para satisfazer a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. Ele clamava contra comidas caras, roupas luxuosas e móveis elegantes. “Cortem todas essas despesas! Desprezem as iguarias e a variedade, e estejam contentes com o que a simples natureza requer”.

 Wesley tinha duas razões para dizer aos crentes para comprarem somente o necessário. Uma era óbvia: para que não desperdiçassem dinheiro. A segunda era para que seus desejos não aumentassem. O antigo pregador destacou sabiamente que, quando as pessoas gastam dinheiro em coisas que, de fato, não precisam, elas começam a desejar mais coisas das quais não precisam. Em vez de satisfazerem aos seus desejos, elas apenas os fazem aumentar: “Quem dependeria de qualquer coisa para satisfazer esses desejos, se considerasse que satisfazê-los é o mesmo que fazê-los crescer? Nada é mais verdadeiro do que isto: A experiência diária demonstra que quanto mais os satisfazemos, mais eles aumentam”.

 Wesley advertiu principalmente sobre a questão de comprarmos muitas coisas para os filhos. Pessoas que raramente gastam dinheiro consigo mesmas podem ser bem mais indulgentes com seus filhos. Ao ensinar o princípio de que gratificar um desejo desnecessariamente tende a intensificá-lo, ele perguntou a esses pais bem-intencionados: “Por que você compraria para eles mais orgulho ou cobiça, mais vaidade, tolice e desejos prejudiciais? …Por que você teria um gasto extra apenas para trazer-lhes mais tentações e ciladas, e para  transpassá-los com mais tristezas”.

 A terceira regra de John Wesley era “Doe o máximo que puder”. A oferta de uma pessoa deve começar com o dízimo. Ele disse àqueles que não dizimavam: “Não há dúvidas de que vocês têm colocado o seu coração no seu ouro”. E advertia: “Isso ‘consumirá sua carne como o fogo’”! Entretanto, a oferta de uma pessoa não deve se limitar ao dízimo. Todo o dinheiro dos crentes pertence a Deus, não apenas a décima parte. Os crentes devem usar 100% de sua renda da forma como Deus direcionar.

 E como Deus direciona os crentes a usarem sua renda? Wesley listou quatro prioridades bíblicas:

 1. Providencie o que é necessário para você e sua família (1Tm 5.8). O crente deve estar certo de que sua família possui suas necessidades e comodidades supridas, ou seja, “quantidade suficiente de uma comida modesta e saudável para comer, e roupas adequadas para vestir”. O crente também deve garantir que a família tenha o suficiente para viver caso haja imprevistos em relação ao seu ganha-pão.

 2. “Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes” (1Tm 6.8). Wesley acrescentou que a palavra traduzida para “vestir” é literalmente “cobrir”, o que inclui tanto moradia como roupas. “Conclui-se claramente que tudo o que tivermos além dessas coisas, no sentido empregado pelos apóstolos, é riqueza – tudo quanto estiver além das necessidades, ou no máximo, além das comodidades da vida. Qualquer um que tenha comida suficiente para comer, roupas para vestir, um lugar onde repousar a cabeça, e mais alguma outra coisa, é rico”.

 3. Providencie o necessário para “fazer o bem perante todos os homens” (Rm 12.17) e não fique devendo nada a ninguém (Rm 13.8). Wesley disse que a reivindicação pelo dinheiro do crente que se seguia à família era a reivindicação dos credores. Ele acrescentou que aqueles que dirigiam o próprio negócio deveriam ter ferramentas adequadas, estoque ou o capital necessário para manter seu negócio.

 4. “Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé” (Gl 6.10). Após o crente ter provido o necessário para a família, credores e para o próprio negócio, sua próxima obrigação é utilizar todo o dinheiro que sobrou para suprir as necessidades dos outros.

 Ao dar esses quatro princípios bíblicos, Wesley reconheceu que algumas situações não são assim tão claras. A forma como os crentes devem usar o dinheiro de Deus nem sempre é óbvia. Por essa razão, ele ofereceu quatro perguntas para ajudar seus ouvintes a decidirem como gastar seu dinheiro:

 1. Ao gastar o dinheiro, estou agindo como se o possuísse ou como se fosse o curador de Deus?

 2. O que as Escrituras exigem de mim ao gastar o dinheiro dessa maneira?

 3. Posso oferecer essa compra como um sacrifício a Deus?

 4. Deus me recompensará por esse gasto na ressurreição dos justos?

Finalmente, para um crente que ainda estivesse perplexo, John Wesley sugeriu a seguinte oração antes de realizar uma compra:

 “Senhor, tu vês que estou para gastar esta quantia naquela comida, naquela roupa ou naquele móvel. Tu sabes que estou agindo com sinceridade nessa questão; como um mordomo de teus
bens; gastando uma porção dele desta maneira, em conformidade com o desígnio que tu tens ao confiá-los a mim. Sabes que faço isso em obediência à tua Palavra, conforme tu ordenas e porque tu o ordenas. Peço-te que isso seja um sacrifício santo e aceitável a Ti, por meio de Jesus Cristo! Dá-me testemunho em mim mesmo de que, por meio desse esforço de amor, serei recompensado quando Tu recompensares a cada homem segundo as suas obras”. Ele estava confiante que qualquer crente de consciência limpa que fizesse essa oração usaria o seu dinheiro com sabedoria.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Tentações da educação teológica no Brasil

Regina Fernandes Sanches

Vivemos um tempo de inovação da educação teológica no Brasil e, por isso, de desafios. Os desafios não dizem respeito somente à sua competência para lidar com as novidades, mas principalmente em relação ao testemunho e à ética cristã. 

A educação teológica existe no Brasil desde os tempos de implantação do protestantismo de imigração, por meio das escolas de formação cristã e de líderes eclesiais. O protestantismo de missão intensificou este esforço com programas de capacitação de líderes para as igrejas nacionais, criando cursos de Teologia que deram origem aos seminários históricos existentes até hoje em algumas regiões do país. Outros foram ponta de lança para grandes universidades, chamadas de confessionais. Os institutos bíblicos, surgidos em meados do século passado junto aos movimentos de renovação espiritual e às igrejas pentecostais, pretenderam ser uma reação ao que chamavam de academicismo dos seminários históricos. Propuseram então cursos mais voltados para a prática ministerial e com possibilidades em níveis médio e básico. 

No final da década de 90, por pressão de algumas instituições teológicas, o MEC decidiu reconhecer os cursos de Teologia por meio da homologação do Parecer CNE/CES 241 de 99. Para não caracterizar tal ato como inconstitucional abriu mão do currículo mínimo, mas exigiu a organização das instituições conforme o que é exigido para o ensino superior. Com o Parecer CNE/CES 0063 de 2004, o MEC possibilitou o aproveitamento dos estudos realizados nos cursos livres pelos cursos agora reconhecidos, permitindo que pessoas que haviam realizado tais cursos pudessem então complementar seus estudos e obter o diploma de curso superior. No final de 2010 o MEC reviu a liberação dos antigos currículos mínimos do Parecer 241 e estabeleceu, então, os eixos curriculares para os cursos de Teologia. São eles: Eixo Teológico, Eixo Filosófico, Eixo Metodológico, Eixo Histórico-cultural, Eixo Sócio-político, Eixo Linguístico e Eixo Interdisciplinar. A partir de então, todos os cursos de Teologia que pretendam autorização e reconhecimento do MEC terão que ter seus projetos pedagógicos organizados a partir de tais eixos.

Este histórico impõe alguns desafios para a educação teológica no país, que são:

1) Optar ou não pela busca do credenciamento institucional e autorização do curso, visto que não há nenhum impedimento para que continuem existindo os cursos livres, para uma formação teológico-ministerial. Aliás, temos notícias de escolas teológicas livres que estão se revitalizando, com projetos mais consistentes e recebendo até mais alunos do que escolas reconhecidas. De fato, isso dependerá mais dos rumos da Igreja no Brasil e de um despertamento vocacional do que de outras questões. Importante mesmo são as instituições repensarem suas motivações e razão de existir, e se organizarem a partir dessa reflexão.

2) Ao decidirem pelo reconhecimento e construírem, para isso, seu planejamento institucional, as escolas teológicas devem definir com clareza sua finalidade: se é meramente a existência como instituição de ensino superior iniciando com a Teologia, ou se é de fato uma instituição de educação teológica. São razões diferentes de existir. Há escolas que perderam o rumo da educação teológica, mas continuam oferecendo o curso e se servindo do discurso ministerial para atrair alunos. São cursos que se configuram em nível de conteúdo e proposta muito mais como de Ciências da Religião ou Filosofia, do que de Teologia. Muitos jovens vocacionados, seja para o ministério cristão ou para a reflexão teológica propriamente dita, sentem-se decepcionados ou desorientados em tais cursos, por não receberem a formação esperada. Se tais escolas desejam um curso genérico com fins empresariais, devem então buscar seu público nesse mesmo meio e não nas igrejas e entre os vocacionados para o ministério eclesial.

Outro risco ou problema que algumas escolas incorre é de tornarem o estudo da Teologia um projeto comercial. Oferece-se o que atrai mais alunos, aos moldes da educação superior comercializada que sabemos existir em nossa sociedade. Quando isto acontece a ética cristã sucumbiu ao dinheiro e à fama institucional, pois nesse meio é mais quem possui mais alunos, melhores prédios, mais recursos financeiros. Esta tendência vem se revelando com a utilização do Parecer 0063 de 2004, que permite o aproveitamento de estudos realizados em cursos livres por cursos superiores de Teologia. Todos que são da educação teológica vêm assistindo, quando não participando, da enlouquecida distribuição de diplomas por instituições que visam prioritariamente o enriquecimento institucional, envolvendo não somente instituições novas, mas algumas antigas e bem conceituadas, seja na forma de oferecedoras, como de mediadoras de tais serviços.

De fato, a ética da educação teológica no Brasil está sobre a mesa e deverá comprovar a que veio. Não basta dizer que se é ético, é necessário se comprovar com decisões institucionais. Ela foi tirada dos âmbitos dos prédios de educação cristã das igrejas e colocada sob os holofotes da sociedade que a Teologia está chamada não a conformar, mas a ajudar na transformação visando um mundo melhor para todos.
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Regina Fernandes Sanches é mestre em teologia e práxis e atuante na educação teológica desde 1995.
 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ortodoxia e Narcisismo

Ricardo Barbosa de Souza

Talvez em virtude de nossa formação racional leiamos as cartas de Paulo como tratados sistemáticos de teologia. O tema principal da carta aos Romanos é a “justificação pela fé”. O da carta aos Gálatas e a “graça de Deus”, e por aí vai. No entanto, sou muitas vezes levado a reconhecer que, embora os tratados teológicos sejam fundamentais em suas cartas, Paulo está profundamente preocupado com um outro assunto: a formação do povo de Deus. Este é o grande tema das cartas de Paulo.
Como que judeus com sua longa tradição religiosa e romanos com sua bagagem pagã e sincrética, iriam se encontrar, na grande capital do Império Romano, e ter uma identidade comum como povo de Deus? Como que numa cidade como Corinto, com sua população híbrida formada de ex-soldados romanos, escravos, escravos livres, gregos, judeus, comerciantes, marinheiros, prostitutas cultuais, todos com suas tradições, moral, hábitos, que agora se encontram num mesmo lugar para cultuar o mesmo Deus e afirmar que Jesus Cristo é seu Senhor?  A formação da identidade cristã sempre foi uma grande preocupação dos autores do Novo Testamento.
A argumentação teológica de Paulo é a forma como ele estabelece os alicerces desta nova identidade. Sua intenção é a formação da identidade do povo da nova aliança. Para os cristãos de Roma ele diz: “não vos conformeis com este século…”. Para os de Éfeso: “não andem como andam os gentios…”. Para os de Colossos: “dispam-se do velho homem…”. O povo de Deus é o povo da nova aliança, a nova humanidade inaugurada em Cristo, a nova criação. Este povo é chamado para um novo modo de ser, um novo jeito de viver. A teologia e a doutrina dão o fundamento para isto.
Por outro lado, a igreja encontra-se constantemente sob o olhar e o juízo do mundo. Paulo afirma que ela é o corpo de Cristo, a representação visível do Senhor não visível. Suas obras e palavras devem refletir e revelar ao mundo algo do caráter e da natureza divina, algo do amor e santidade. É por esta razão que Paulo se preocupa com o comportamento dos cristãos. O conhecimento de Deus era, muitas vezes, negado pelo comportamento dos cristãos. A forma como viviam negava aquilo que criam e afirmavam sobre Deus. A fórmula de Tiago era muito simples: A fé sem as obras decorrentes dela é morta. Não se demonstra a fé sem um comportamento adequado a ela. O apelo que Paulo faz aos crentes de Creta é para que “embelezem a doutrina de Deus com um comportamento apropriado (Tt 2.10).
Jesus afirma que o mundo nos reconhecerá como seus discípulos pelo amor que demonstramos para com o próximo (Jo 13.34,35). Afirma também, em sua oração de despedida, que o mundo haveria de crer que ele é o Salvador pela comunhão e unidade que os discípulos dele haveriam de demonstrar (Jo 17.21). Jesus oferece ao mundo o direito de julgar a identidade do seu povo pela forma como amam e respondem à missão do Filho.
O chamado de Deus envolve a doutrina e o comportamento ou, nas palavras de Francis Schaeffer, a ortodoxia da doutrina e a ortodoxia da comunidade. Só podemos compreender a importância e a influência da igreja nos primeiros séculos por estas duas realidades combinadas.
As igrejas sempre enfrentaram dificuldades, ora com a doutrina, ora com o comportamento. Na maioria das vezes, com ambos. Líderes gananciosos e enganadores, cristãos insolentes e desobedientes comprometem a integridade e a identidade da igreja de Cristo. Ser povo de Deus, reconhecer que temos um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai, que fazemos parte de um mesmo corpo onde, embora sendo distintos, formamos uma só realidade, nunca foi tarefa fácil.
Exatamente por ser uma tarefa difícil é que Paulo exorta os cristãos a serem diligentes e a se esforçarem para preservar sua identidade comum. É uma tarefa que requer humildade, mansidão, compaixão, submissão, e muitas outras virtudes que são rejeitadas pela cultura moderna. No passado, um grande obstáculo à unidade da igreja eram as barreiras denominais e institucionais. Hoje, as muralhas que foram construídas ao redor das denominações vem sendo ruídas, mas enfrentamos uma outra muralha, talvez ainda maior. Nós mesmos.

O narcisismo é a marca do século. Se o século 19 foi marcado pela cultura racional, o século 20 foi o século da cultura terapêutica. Uma cultura que, ao intensificar o individualismo, legitimou uma forma de “divinização do self”. A saúde mental e o bem-estar tornaram-se substitutos para a salvação. O que o ser humano busca hoje não é a salvação através do arrependimento e fé, mas o sentir-se bem e confortável. A cultura terapêutica introduziu um modelo de relacionamento que rejeita qualquer forma de julgamento, fazendo com que o indivíduo crie sua própria realidade.
Não existem limites para o “ego” narcisista, carente e faminto. A consciência de dever para com o outro foi substituída pelo “dever que tenho para comigo”. A busca pela autorrealização, autossatisfação, autossuficiência, descrevem o frágil reconhecimento do outro. Tudo isto nos leva a viver a partir daquilo que é aparente. Nós nos preocupamos mais com o exterior e não com o interior. Esta preocupação nos leva a fugir de nossa realidade pessoal mais profunda, das frustrações decorrentes de relacionamentos superficiais e frágeis, vivendo numa agitação constante, agenda cheia, negando a realidade interior e pessoal.
Os desdobramentos deste espírito narcisista e secularizado é grande e profundo para a igreja de Jesus Cristo. Os líderes cristãos estão cada vez mais ocupados com suas agendas e projetos pessoais na busca frenética de autoafirmação. Seus relacionamentos não são nem pessoais, nem profundos, o que os leva a cultivarem uma forma de “irrealismo ministerial”. Acham que estão “conectados” por participarem de redes sociais, mas a família encontra-se fragmentada e adoecida. Fazem comentários, declarações, que não tem nenhuma relação com a forma que vivem. É justamente aqui que muitos líderes caem porque vivem a partir de uma fantasia e não da realidade.
A afirmação de João Batista em relação a Cristo é invertida pelo espírito narcisista. Ao invés de dizer: “convém que ele cresça e que eu diminua”, passamos a dizer: “convém que ele diminua para que eu cresça”. Os modelos de ministério e de espiritualidade têm por objetivo aumentar o senso de autoimportância, e não o contrário. Queremos ser nosso próprio “messias”. Frutos do Espírito como humildade, mansidão, bondade, não são buscados, muito menos desejados. A necessidade de autoafirmação é tão intensa que preferimos ser cercados de bajuladores do que de irmãos e irmãs que nos ajudam a viver de forma mais verdadeira diante de Deus.
O maior obstáculo para a igreja de Jesus Cristo viver em unidade como povo de Deus somos nós mesmos. Nos critérios diagnósticos para o Transtorno da Personalidade Narcisista encontramos algumas características que refletem bem o perfil da liderança cristã. Segundo a Dra. Elaine Marini (com base no Manual de Diagnósticos de Transtornos nº 4), este transtorno descreve “Um padrão invasivo de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e falta de empatia, que começa no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos, indicado por pelo menos cinco dos seguintes critérios:
(1) sentimento grandioso da própria importância (por exemplo, exagera realizações e talentos, espera ser reconhecido como superior sem realizações comensuráveis);
(2) preocupação com fantasias de ilimitado sucesso, poder, inteligência, beleza ou amor ideal;
(3) crença de ser "especial" e único e de que somente pode ser compreendido ou deve associar-se a outras pessoas (ou instituições) especiais ou de condição elevada;
(4) exigência de admiração excessiva;
(5) sentimento de intitulação, ou seja, possui expectativas irracionais de receber um tratamento especialmente favorável ou obediência automática às suas expectativas;
(6) é explorador em relacionamentos interpessoais, isto é, tira vantagem de outros para atingir seus próprios objetivos;
(7) ausência de empatia: reluta em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e necessidades alheias;
(8) frequentemente sente inveja de outras pessoas ou acredita ser alvo da inveja alheia;
(9) comportamentos e atitudes arrogantes e insolentes.
O curioso é que no próximo Manual de Diagnósticos de Transtornos (nº 5) que será publicado em 2012, o Transtorno de Personalidade Narcisista será retirado. Deixará de ser uma patologia. Imagino que para estes “cientistas”, quando uma patologia torna-se um padrão de comportamento, deixa de ser patologia e passa a ser um comportamento normal. Por este critério, muitos líderes cristãos deveriam estar numa clínica, e não num púlpito.  
É este espírito, ao meu ver, o maior inimigo à identidade comum que precisamos ter como povo de Deus. Existem duas afirmações de Paulo em sua carta a Tito que descrevem posturas distintas em relação aos líderes cristãos e a formação do povo de Deus:
1. “No tocante a Deus, professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são abomináveis, desobedientes e reprovados para toda boa obra” (1.16) – A negação do conhecimento de Deus vem pela ausência da prática das boas obras. A fé sem obras é morta. Conhecimento de Deus sem a ética e a espiritualidade adequada a este conhecimento é vazio. Estes líderes falam muito, agitam-se muito, mas permanecem vazios e negam a doutrina de Cristo e dividem o povo de Deus. São líderes narcisistas. Pensam mais em si do que no “corpo de Cristo”.
2. “Não furtem; pelo contrário, deem prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador” (2.10). O apelo de Paulo é para que os líderes cristãos embelezem a verdade do evangelho com a prática das boas obras e da vivência real do “fruto do Espírito”. Adornamos a doutrina de Deus na medida em que o mundo, ao ver a forma como amamos e servimos e a unidade do povo de Deus, reconhecerá a verdade acerca de Jesus Cristo.
É isto que o historiador Eusébio de Cesareia (265-339) afirma ao descrever o comportamento dos cristãos em meio a uma terrível peste. “Eles eram, efetivamente, os únicos que nesta circunstância calamitosa demonstravam com suas próprias obras, compaixão e o amor aos homens. Uns perseveravam todo dia no cuidado e no enterro dos mortos (pois eram milhares os que não tinham quem se ocupasse deles) e outros, reunindo num mesmo lugar a multidão dos que em toda a cidade estavam esgotados pela fome, repartiam pão para todos, de forma que o fato correu de boca em boca, e todos os homens glorificavam o Deus dos cristãos, e convencidos pelas próprias obras, confessavam que estes eram os únicos verdadeiramente piedosos e temerosos a Deus”.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Cientistas recomendam que freiras tomem pílula anticoncepcional

Quarta-feira, 14 de dezembro de 2011 (ALC) - "As freiras católicas pagam um preço alto pelo voto de castidade", afirmaram os especialistas Roger Short, da Universidade de Melbourne, e Kara Britt, da Universidade Monash. Em artigo publicado na revista científica The Lancet , Roger e Kara recomendaram que elas tomem a pílula anticoncepcional.
O autor e a autora disseram que, por não terem filhos, as religiosas estão mais sujeitas a desenvolver cânceres do sistema reprodutivo, como os de mama, ovário e útero. O risco maior resulta do fato de que mulheres que não têm filhos e não amamentam menstruam mais vezes e, por isso, são mais propensas a desenvolver essas doenças, explicaram.

"Investigações indicam claramente que um maior número de ciclos aumenta as probabilidades de câncer no sistema reprodutivo", disse Britt. "Então, não ter filhos, chegar cedo à puberdade ou mais tarde à menopausa afetará essa incidência. E a pílula poderia ajudar a reduzir esses riscos nas monjas".

As propostas de Britt e Short estão baseadas em dois estudos sobre os benefícios da pílula anticoncepcional para a saúde. Essas pesquisas, publicadas no ano passado, revelaram que o índice total de mortalidade em mulheres que já haviam tomado a pílula por via oral era 12% menor, em comparação com mulheres que nunca tomaram a pílula.

Os riscos de câncer do ovário e do útero foram reduzidos entre 50% e 60% em usuárias, em comparação com mulheres que não usam a pílula, mostraram os estudos, entre os quais um apresentado pelo Royal College of General Practitioners, na Grã-Bretanha, que envolveu 46 mil mulheres durante um período de quatro décadas.

Os autores da publicação sabem que a doutrina católica condena as formas de contracepção, mas lembram a encíclica Humanae Vitae, publicada pelo papa Paulo VI em 1968, ao dizer que "a Igreja não considera ilegal de forma alguma meios terapêuticos considerados necessários para curar doenças orgânicas, mesmo que eles também tenham efeitos contraceptivos".

Com base nessa análise é que as freiras, especificamente, deveriam se sentir livres para tomar a pílula como proteção, escreveram os especialistas.
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Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC)
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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Precisamos de muita coragem

Leonardo Boff

Em 14 de setembro último, celebrou 90 anos de idade uma das figuras religiosas brasileiras mais importantes do século XX: o Cardeal Paulo Evaristo Arns. Voltando da Sorbonne, foi meu professor quando ainda andava de calça curta em Agudos-SP e depois, em Petrópolis-RJ, já frade, como professor de Liturgia e da teologia dos Padres da Igreja antiga. Obrigava-nos a lê-los nas linguas originais em grego e latim, o que me infundiu um amor entranhado pelos clássicos do pensamento cristão. Depois foi eleito bispo auxiliar de São Paulo. Para protegê-lo porque defendia os direitos humanos e denunciava, sob risco de vida, as torturas a prisioneiros políticos nas masmorras dos órgãos de repressão, o Papa Paulo VI o fez Cardeal.

Embora profético mas manso como um São Francisco, sempre manteve a dimensão de esperança mesmo no meio da noite de chumbo da ditadura militar. Todos os que o encontravam podiam, infalivelmente, ouvir como eu ouvi, esta palavra forte e firme: "coragem, em frente, de esperança em esperança".

Coragem, eis uma virtude urgente para os dias de hoje. Gosto de buscar na sabedoria dos povos originários o sentido mais profundo dos valores humanos. Assim que na reunião da Carta da Terra em Haia em 29 de junho de 2010, onde atuava ativamente sempre junto com Mercedes Sosa enquanto esta ainda vivia, perguntei à Pauline Tangiora, anciã da tribo Maori da Nova Zelândia qual era para ela a virtude mais importante. Para minha surpresa ela disse:"é a coragem". Eu lhe perguntei: "por que, exatamente, a coragem?" Respondeu:
"Nós precisamos de coragem para nos levantar em favor do direito, onde reina a injustiça. Sem a coragem você não pode galgar nenhuma montanha; sem coragem nunca poderá chegar ao fundo de sua alma. Para enfrentar o sofrimento você precisa de coragem; só com coragem você pode estender a mão ao caído e levantá-lo. Precisamos de coragem para gerar filhos e filhas para este mundo. Para encontrar a coragem necessária precisamos nos ligar ao Criador. É Ele que suscita em nós coragem em favor da justiça".
Pois é essa coragem que o Cardeal Arns sempre infundiu em todos os que, bravamente, se opunham aos que nos seqüestraram a democracia, prendiam, torturavam e assassinavam em nome do Estado de Segurança Nacional (na verdade, da segurança do Capital). 

Eu acrescentaria: hoje precisamos de coragem para denunciar as ilusões do sistema neoliberal, cujas teses foram rigorosamente refutadas pelos fatos; coragem para reconhecer que não vamos ao encontro do aquecimento global mas que já estamos dentro dele; coragem para mostrar os nexos causais entre os inegáveis eventos extremos, conseqüências deste aquecimento; coragem para revelar que Gaia está buscando o equilíbrio perdido que pode implicar a eliminação de milhares de espécies e, se não cuidarmos, de nossa própria; coragem para acusar a irresponsabilidade dos tomadores de decisões que continuam ainda com o sonho vão e perigoso de continuar a crescer e a crescer, extraindo da Terra, bens e serviços que ela já não pode mais repor e por isso se debilita dia a dia; coragem para reconhecer que a recusa de mudar de paradigma de relação para com a Terra e de modo de produção pode nos levar, irrefreavelmente, a um caminho sem retorno e destarte comprometer perigosamente nossa civilização; coragem para fazer a opção pelos pobres contra sua pobreza e em favor da vida e da justiça, como o fazem a Igreja da libertação e Dom Paulo Evaristo Arns.

Precisamos de coragem para sustentar que a civilização ocidental está em declínio fatal, sem capacidade de oferecer uma alternativa para o processo de mundialização; coragem para reconhecer a ilusão das estratégias do Vaticano para resgatar a visibilidade perdida da Igreja e as falácias das igrejas mediáticas que rebaixam a mensagem de Jesus a um sedativo barato para alienar as consciências da realidade dos pobres, num processo vergonhoso de infantilização dos fiéis; coragem para sentar na cadeira de Galeleo Galilei para defender a libertação e a dignidade dos pobres; coragem para anunciar que uma humanidade que chegou a perceber Deus no universo, portadora de consciência e de responsabilidade, pode ainda resgatar a vitalidade da Mãe Terra e salvar o nosso ensaio civilizatório; coragem para afirmar que, tirando e somando tudo, a vida tem mais futuro que a morte e que um pequeno raio de luz é mais potente que todos as trevas de uma noite escura. 

Para anunciar e denunciar tudo isso, como fazia o Cardeal Arns e a indígena maori Pauline Tangiori, precisamos de coragem e de muita coragem.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Homossexualismo, Sodoma e Gomorra

Eduardo Ribeiro Mundim

O comportamento sexual dos habitantes de Sodoma acabou gerando o termo sodomia, e derivados, usado para descrever, de modo habitualmente pejorativo, o ato sexual anal, tanto hetero quanto homossexual, podendo se estender ao coito com animais e crianças1. Estas duas cidades permanecem no imaginário como destruídas em função exclusiva da homossexualidade dos seus habitantes.

A história é narrada nos capítulos 18 e 19 de Gênesis, como parte da história de Abrão e Ló (contexto imediato, de importância teológica menor), mas também do relacionamento entre Iahweh e Abrão (contexto remoto, de maior importância na história da salvação). Nos capítulos precedente, é narrada a evolução da aliança entre ambos, quando ele se faz circuncidar, assim como todos os homens (livres ou não) de sua casa, em resposta à promessa de que seria pai de muitos povos e de reis. Como consequência, seu nome é modificado para Abraão, e Sarai se torna Sara.

O contexto é fortemente teológico, dentro da história que se desenrola. Iahweh discute ética2 com Abraão, já que ele fora escolhido para “para que ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe prometeu” (Gn 18.19, NVI). Ele notifica Seu eleito de que as “as acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas e o seu pecado é tão grave que descerei para ver se o que eles têm feito corresponde ao que tenho ouvido” (v. 20 e 21). E a questão posta por Abraão é se o justo seria destruído por causa do culpado. Talvez estivesse nas entrelinhas qual o número de justos necessário para salvar tantos culpados. A discussão termina com a aceitação por Iahweh de que 10 justos salvariam a cidade.

Por que Abrão se preocupa com as cidades? A destruição delas parece ser assunto decidido previamente, e a visita dos Anjos à cidade era apenas para verificação final, como se estivesse apresentando ao patriarca um processo judicial. Desconhecia ele os pecados das cidades? Estaria preocupado com seu sobrinho? O texto não diz. Pode ser conjecturado que esta última possibilidade é improvável, pois o diálogo entre ambos é franco, ainda que formal (mas de uma familiaridade espantosa entre duas pessoas de poderes absolutamente assimétricos), e nada impediria a observação de que Ló não compactuava com os pecados da cidade.

Igualmente Deus não necessita descer à terra para ter ciência do pecado. Provavelmente o faz como recurso didático, objetivando tanto a Abraão quanto a sua incontável descendência. Em nenhum momento uma possível impertinência por parte dele é anotada ou criticada, e fica levantada uma série de possibilidades sobre o lugar destes acontecimentos no desenrolar da história da salvação.

A hospitalidade3 naquela época (por volta de 2.000 ac) era um dever universalmente reconhecido, como forma de garantia mútua contra os perigos da natureza e gerados pelo próprio homem. A atitude estabelecia um vínculo de obrigações mútuas: ao anfitrião caberia alimentar e proteger o peregrino (mesmo às custas de sacrifício pessoal ou da família – já que era ela a anfitriã, e não somente o chefe), e a este respeitar a casa que o acolhia, poupando-lhe inconvenientes.

O texto guarda relação próxima com a história do dilúvio4. Destruição completa em virtude de pecado completo, à exceção de uma família, não compactuante com as atitudes da maioria. No primeiro, uma destruição universal, pouco citada no decorrer nas Escrituras; na segunda, uma destruição igualmente radical, mas limitada, e lembrada por outros autores inspirados como exemplo – incluindo Jesus em uma ocasião (cf Mt 10.15).

Igualmente é muito semelhante ao episódio narrado em Jz 19 e seguintes, onde a destruição ocorre através de violenta guerra civil.

Ló insiste com os dois visitantes, que não reconhece enquanto anjos, para que desfrutem de sua hospitalidade. Sua insistência sinaliza duas possibilidades: seu empenho em cumprir o dever da hospitalidade e/ou a percepção do risco em especial que eles estariam correndo caso ficassem na praça. Por outro lado, é improvável que imaginasse a reação da multidão, pois se assim fosse, não exporia suas filhas, garantia de sua descendência, ao risco do opróbrio e da morte (como ocorre com a concubina em Jz 19).

Não há como negar a violência explícita da história. Contra três homens, toda a população masculina pleiteia o direito de “conhecer” os visitantes, mesmo contra a vontade deles. O caráter sexual da intenção é claro, e pode ser demonstrado sem maiores dificuldades:
  1. “conhecer” (yada') é um verbo utilizado no livro de Gênesis doze vezes, e em dez a conotação é, indiscutivelmente, de relacionamento sexual5;
  2. propõe uma troca, suas duas filhas virgens pelos visitantes, para que o direito à hospitalidade não fosse violado. E ele as oferece adicionando “façam com ela o que bem entenderem”. Esta atitude6 elimina qualquer possibilidade da turba desejar apenas conhecer os visitantes para ter certeza de suas boas intenções políticas.

A proposta de troca explicita o caráter, no minimo, bissexual dos atacantes, já que não faria sentido a proposta se ela não fosse “atrativa”. Portanto, fica em aberto a razão da turba. Estupro é tratar o outro como coisa, é humilhá-lo, desonrá-lo. Um comentarista citou que o tratamento que ela pretendia dar aos visitantes era o praticado com os prisioneiros de guerra7. Outro autor discute que a sexualidade da região era basicamente falocêntrica, e a penetração de um homem por outro o rebaixava, mas não retirava o caráter heterossexual dos envolvidos8.

A história remete a que tipo de estupro: por parte de homossexuais ou de heterossexuais/bissexuais? Poderia ser aplicado a esta época situações contemporâneas, como, por exemplo, o relato de que o estupro por parte de homossexuais ser incomum fora de ambientes fechados, como prisões (nesta circunstância predomina a violência sobre o ato sexual em si), quando o estupro demonstra raiva e poder9,10?

A análise do texto demonstra o óbvio: há diversos pecados11. O abuso do fraco e indefeso; o desrespeito a um costume, se não lei, sagrada, a hospitalidade; a covardia em fazer o mal através da força bruta desproporcional em relação ao adversário; o prazer em infligir sofrimento e dor ao próximo.

O profeta Ezequiel (16.49-50) pontua que o pecado destas cidades foi a soberba, a riqueza, a tranquilidade, com a exclusão do “desgraçado e pobre”, acrescido do envaidecimento em frente a Iahweh e abominações. Dentro do contexto do Velho Testamento, abominações inclui uma série de relações sexuais entre aparentados consanguíneos ou por afinidade, além do homossexualismo e bestialismo12.

Isaías (1.9; 3.8,9), por sua vez, acrescenta à lista hipocrisia, injustiça social e rebelião aberta.

Jeremias (23.14) proclama que os profetas de sua época agiam como Sodoma e Gomorra: adultério, mentira, apoio ao perverso, obstáculo ao arrependimento.

A epístola de Judas enfatiza que estas cidades “se entregaram à imoralidade e a relações sexuais antinaturais”, “fornicaram, deram-se a vícios contra a natureza” (Bíblia do Peregrino), “por se terem prostituído, procurando unir-se a seres de uma natureza diferente” (Bíblia de Jerusalém). A nota de rodapé da Nova Versão Internacional13 explicita que o grego original no versículo 7 é “foram após outra carne”; a Bíblia de Jerusalém entende “uma carne diferente”, e seu comentarista propõe que o pecado delas foi terem atentado contra anjos14. O que, exatamente, está sendo dito aqui?

Pelo restante das Escrituras, que usa figuras de linguagem mais claras, ou expressões diretas, para expressar a relação homossexual, fica prejudicada a leitura da condenação do ato homossexual. Aceitar a sugestão do comentarista da BJ torna o julgamento das cidades estranho, pois, apesar da clara intenção de pecar de modo torpe, cruel e violento, a origem angelical dos visitantes lhes era desconhecida. Talvez a opção mais viável seja uma referência educada ao bestialismo.

Partindo do princípio de que escritura interpreta a escritura, o balanço geral é de que Sodoma e Gomorra eram cidades absolutamente corrompidas, em todas as esferas, do privado ao social, e que seu castigo, exemplo para as gerações futuras, foi decorrente do clamor que tal situação elevou aos céus. Assim como em outras situações bíblicas (como, por exemplo, os Evangelhos) cada autor inspirado usou o aspecto do episódio que dizia respeito ao assunto que ele abordava. Foram punidas por se encontrarem fora da possibilidade de arrependimento, em rebelião aberta e de longa data. Não há um pecado que sobreponha ao outro.

2Conf nota de rodapé Bíblia do Peregrino, 2ª ed, Editora Paulus, São Paulo, SP,2006, pg 40
3Verbete “hospitalidade”, O Novo Dicionário da Bíblia, 3ª ed, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, 1979, pg 725.
4Wenhan, op. cit.
5Pinto CO e Sayão LAT. A questão do homossexualismo. Vox Scripturae 5(1):43-70, março 1995.
6Pinto CO e Sayão LAT, op. cit.
7Wenhan, op. cit.
8Carden, M. Homophobia and rape in Sodom and Gibeah - a response to Ken Stone. Journal for the Study of the Old Testament, 82: 83-96; resumo disponível em http://espace.library.uq.edu.au/view/UQ:144151
9Kaplan HI, Sadock BJ. Compêndio de psiquiatria dinâmica. Editora Artes Médicas, 3ª ed, Porto Alegre, RS, 1981, pag 506. interessante observa que esta edição ainda traz homossexualidade como perturbações psicossexuais (cap 22, pg 484)
10Masters WH, Jonhson VE, Kolodny RC. O relacionamento amoroso. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1988, pg 407
11Wenhan, op. cit.
12cf. Lv 18, onde a seção se inicia e se fecha com a afirmativa de que as abominações listadas eram praticas no Egito, donde os israelitas saíram, e em Canaã, para onde se dirigiam
13 Cf Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional, Editora Vida, São Paulo, SP, 2000, pg 987
14Cf Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 9ª edição, São Paulo, SP, 1985, pg 2297

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Repúdio

42 homens encapuzados e fortemente armados invadiram no dia 18 de novembro a comunidade indígena Kaiowá Guarani do acampamento Tekoha Guaiviry, localizado no município de Amambaí (MS), fronteira com o Paraguai. O alvo principal foi o cacique Nísio Gomes, de 59 anos, executado com tiros de armas calibre 12, informou a FUNAI em nota enviada à Agência France Presse.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), "o que acontece no local é um conflito de terra. Essa região sofreu uma colonização entre os anos 60 e 70, com a expansão dos latifúndios agrícolas. Os indígenas tiveram que sair, mas agora estas terras estão em processo de demarcação para reconhecer a área indígena".
O CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) publicou uma carta de repúdio contra o ataque. No documento, o Conselho critica o "abandono e o descaso da administração governamental no que se refere ao projeto da colonização das fronteiras com o Paraguai". Para o CONPLEI, os órgãos governamentais praticam "genocídio omissivo" e "barbárie dos brancos".
Leia abaixo a carta na íntegra.
 
Brasil – Palco de Massacre Indígena

O CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) - instituição criada em prol do índio brasileiro, e dentre outros objetivos de sua constituição organizacional e diretiva, têm a incumbência de representar várias tribos indígenas de nossa nação, e neste sentido vem a público manifestar o seu repúdio ao massacre ocorrido na fronteira do Brasil com o Paraguai, no município de Amambai (MS), no dia 18 de novembro de 2011, em pleno terceiro milênio.
O massacre acima mencionado, não passou de um bárbaro e frio plano para executar tais indígenas, porém, o genocídio omissivo que vem sendo praticado pelos órgãos governamentais, conhecedores da causa que envolve terras em litígio, sem sombra de dúvida, se trata não de um massacre, mas sim de 'barbárie dos brancos', visto que a sua responsabilidade de defender os direitos do índio, não passam de um jogo de palavras descompromissadas, cuja administração governamental já não busca o efetivo cumprimento do dever de reintegrar à posse, nas áreas mencionadas, ao seu verdadeiro proprietário: indígenas Guarani e Kaiuwa.
A título de alerta, e com o fim de evitar novos massacres, lembramos que na região dos índios Guaranis e Kaiuwa se vislumbra o abandono e o descaso da administração governamental no que se refere ao projeto da Colonização das Fronteiras com o Paraguai, cuja argumentação, na época, incentivava a colonização da fronteira com o Paraguai. No entanto, o projeto deixou de ser prioridade, e outra leitura não se faz, senão a de que o governo pleiteava, apenas, a proteção das fronteiras com o índio brasileiro, e não o seu desenvolvimento como ser humano carente de direitos básicos.
Com o passar dos séculos, e diante dos inúmeros empecilhos para sobrevivência, a história mostra que mais esta estratégia governamental para extermínio deste povo falhou.
A tribo Guarani/Kaiuwa, mesmo vivendo abaixo da linha de miséria, sobrevive e agoniza, com uma única esperança: justiça.
A esperança é a mola propulsora de sobrevivência deste indígena, na espera de uma nova geração de governantes que expressem boa vontade, compromisso, responsabilidade e senso de dignidade humana. E, neste ínterim, os indígenas continuam sonhando e mantendo a expectativa de uma vida sem desnutrição e que muitas vezes é sufocada pelo suicídio como solução de seu desespero.
Como evitar o desespero da fome indígena?                                                          
Vejamos a matéria que trata de direitos humanos:
"Pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, a matéria concernente aos Direitos Humanos foi tratada na Constituição promulgada em 1988, adquirindo o status jurídico, abrangendo os direitos e garantias fundamentais, e a instauração de um Estado Democrático de Direito, elencados no Título II na Constituição, e subdivididos em cinco capítulos:
  • direitos individuais e coletivos: correspondentes aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade.
  • direitos sociais: caracterizados como liberdades positivas, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida.
  • direitos de nacionalidade: capacita o indivíduo a exigir proteção, ao passo que o obriga ao cumprimento dos deveres impostos.
  • direitos políticos: regras que disciplinam a atuação da soberania popular.
  • direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos."   Estudo parcial de Direitos Humanos. Autores: Aércio Pereira de Lima Filho, Diego de Almeida Cabral, Flávio Henrique F. E. Gondim e Marcos Alexandre B. W. Queiroga.
Diante do exposto, é notório o descaso das autoridades governamentais no que se refere aos direitos individuais e coletivos: correspondentes aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade, em afronta ao dispositivo da Carta Magna, sem adentrar às demais determinações legais, portanto, ao CONPLEI, compete solicitar de nossas autoridades governamentais, um posicionamento eficaz e urgente a favor da justiça ao povo indígena.
E neste sentido, buscamos evitar novos massacres e genocídios omissivos, aos índios que ainda sobrevivem neste território nacional - terra que nós indígenas amamos e, por isto, também temos vestido a farda do exército brasileiro, entendendo que a bandeira brasileira é o símbolo de nossa nação, unimos esforços para lutar pelo Brasil, seu território, e pelo povo que habita e detém esta terra antes mesmo de sua colonização.
Temos orgulho de sermos brasileiros, e temos também a esperança de sermos atendidos em nossos pedidos, visando lutar e trabalhar juntos para construir um Brasil cada dia melhor.
Brasília, 24 de novembro de 2011.

Pr. Henrique Terena (presidente) e Pr. Luiz Bitencourt (1º secretário)


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A religião e seus destinos

Karin Hellen Kepler Wondracek

A paráfrase com o título freudiano sobre os destinos das pulsões não é acidental - mas tem um percurso que passa em Zurique, pelo gabinete do pastor e psicanalista Pfister.
 
Em 1914, o pastor e psicanalista Pfister publica “O método psicanalítico”, prefaciado por Freud - e lá defende um conceito de pulsão que difere de Freud. Para Pfister, a pulsão não é, como para Freud, uma energia sexual na sua origem - é uma energia que se manifesta em várias formas - sexualidade é uma delas, mas espiritualidade também é uma forma de manifestação desta energia vital.
 
Para Pfister, pulsão é um coletivo - sob o qual se expressam desde a força da sexualidade, com a busca do prazer sensorial, a descarga motora, passando pela agressividade, com sua pulsão de morder, de triturar, - estas seriam a forma "toupeira" de expressão da pulsão.
 
Mas, na outra ponta, a pulsão tem a forma “águia”, não como sublimação da pulsão originária, mas como expressão direta deste feixe pulsional - que nas alturas congrega expressões da busca da liberdade, da estética, da cultura, e da religião.
 
A religião, para Pfister, é uma pulsão - e a partir desta ótica gostaria de tecer alguns pensamentos. Como pulsão, pode ter vários destinos:
 
- pode ser reprimida – simplesmente desalojada da superfície da consciência, e alojar-se em profundidades do inconsciente. Pode ficar ali, bem segura pelos núcleos já abrigados no inconsciente. Mas, também pode haver o retorno do reprimido. E, sabemos por Freud que este retorno pode assumir formas bizarras.

- retornar na forma histérica - como em alguns cultos que sobrevalorizam transes e êxtases, paralisias e sensações corporais.
 
- retornar na forma obsessiva- e temos comportamentos e pensamentos obsessivos transformados em rituais cúlticos - privados ou públicos.

- retornar na forma fóbica - certos objetos de culto, divindades ou inimigos da divindade são demonizados - despertam temor, pânico - lá estão projetados os impulsos inaceitáveis - quase sempre na forma de sexualidade ou agressividade.
 
E, se não houve repressão, a religiosidade pode assumir a forma perversa - como tristemente assistimos à prisão de líderes religiosos que castravam meninos para suas oferendas.
 
A religião também pode retornar associada com outras pulsões - como a agressiva - e então assistimos a caça aos hereges, agressividade legitimada e até recompensada por um ser divino.
 
Graças a Freud, podemos desmascarar o neurótico, o perverso e o psicótico presente na religiosidade. Mas, será que temos de, com nossas interpretações, promover a varredura da pulsão religiosa da cultura e do imaginário humano?
 
O pastor e psicanalista Pfister agradecia a Deus pela genialidade de Freud, que lhe possibilitava retirar os ídolos dos átrios dos templos. [2]
 
Qual então pode ser o futuro da religião?
 
Gostaria de fazer uma associação com outra expressão pulsional - a do amor. Ele também surge de formas tão neuróticas, perversas e doentes, mas nunca houve tentativa séria de erradicá-lo, só porque se mostra doente. Antes, a tentativa da humanidade tem sido no sentido de aprimorar nossa capacidade de amar.
 
Pfister labutava no mesmo sentido, para a religião - que a psicanálise fosse a "humilde lavadora dos pés da verdade" - limpando as sujeiras que a conflitiva humana aglutinou nas suas devoções. Por isso, a psicanálise tem de continuar varrendo ídolos, sendo iconoclasta, retirando amuletos e rezas fortes e fracas, pilotos automáticos da devoção. Mas, aí cessa seu papel. Pfister defendia junto a Freud, e neste artigo publicado na própria revista de Freud - que uma religiosidade purificada e purificadora poderia se ligar ao amor - debaixo do conceito cristão de graça. O imperativo do amor poderia substituir o imperativo do dever - gênese da obsessão, do recalcamento.
 
Não cessamos de amar depois que nos analisamos - antes amamos mais e melhor. Não precisamos parar de crer depois que descobrimos a neurose incrustada em nossas crenças. Podemos amar mais e melhor, aceitar mais nossa humanidade com suas ambivalências e falhas - a tolerância para conosco e para com os outros.
 
A religião mais perigosa, e que deve merecer o controle e a denúncia das autoridades - é aquela que mescla a pulsão agressiva à pulsão religiosa. Esta mescla pulsional gera morte - e não estamos mais nos tempos de Comte ou Darwin para acreditar que haja uma progressão da humanidade rumo à perfeição. O caos pulsional sempre está à espreita por baixo da casca da cultura, e pode se combinar em formas tão destrutivas como o fanatismo religioso.
 
É a combinação da pulsão religiosa com a amorosa que transforma até a pulsão agressiva. Desta forma podemos entender os depoimentos daqueles criminosos que se tornam doces ao se converterem a uma fé religiosa.
 
Pfister, ironicamente, está mais próximo do conceito judaico de pulsão - ao menos como colocado na voz do rabino Halévy na fábula sobre as religiões, escrita por Shafique Keshavjee:
 
“A pulsão sexual e a pulsão espiritual são as duas faces de uma mesma moeda. E essa moeda é aquela que o próprio Deus cunhou. Na carne do ser humano está inscrita uma pulsão biológica e afetiva que o faz sair de si mesmo para acolher um outro, uma outra. No espírito do ser humano está inscrita uma pulsão metafísica e espiritual que o faz sair de seu ego para descobrir o Outro por excelência, Deus. Da mesmo forma que uma mulher pode ficar obcecada pelo rosto de um homem e um homem pelo de uma mulher, Deus é o grande Sedutor que obceca a alma humana. Sem essas duas pulsões que se encontram interligadas, a vida seria aborrecida, centrada sobre si mesma.”
 
Enquanto os cristãos matavam os mouros em nome de Deus, viveu o cristão Francisco de Assis que, depois de tentar impedir a realização de mais uma mortífera cruzada, foi pessoalmente ao califa muçulmano. Chegando lá, foi agredido sem revidar, permaneceu preso até que sua conduta chamou tanta atenção que o califa o recebeu. Depois de muitos dias em conversas amistosas, acontece a despedida e a bênção que até hoje perdura entre muçulmanos e franciscanos. Francisco era admirado por Freud e Pfister.
 
Exceção entre todos? Quantos anônimos religiosos, de muitas confissões e credos, associaram sua pulsão religiosa com a amorosa, e geraram vida e não morte? Talvez, a única morte, neste nível, seja a do próprio Eu, e até do próprio corpo.
 
Esta religião tem futuro e gera futuro, porque gera vida. A religião que mais prefere morrer - desde a dimensão simbólica até, se for preciso, na dimensão concreta - esta gera vida. A parábola do grão de trigo - agregada à história da tensão do joio – ensina a aguentarmos o diferente, a tensão das interfaces.
 
Como expressão desta religiosidade, me comovo cada vez que relembro o exemplo do casal judeu messiânico que, em função da sua fé, abriu uma casa para cuidar de órfãos... palestinos. Fizeram-no em nome de Deus.
 
 
Artigo publicado originalmente no site do CPPC.
 
_____________
Karin Hellen Kepler Wondracek é psicóloga e psicanalista, e mestra em teologia. É tradutora de Cartas entre Freud e Pfister, autora de Caminhos da Graça e uma das autoras de Uma Criança os Guiará.
 
 
Notas
[1] Mesa-redonda sobre O futuro da religião, no Santander Cultural, Feira do.
[2] Cf. carta introdutória ao texto-resposta A ilusão e o futuro.
 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Homossexual na sua igreja


Eduardo Ribeiro Mundim

Imagine que sua igreja receba um visitante, que se sente à vontade no meio da comunidade, aceito como é: um pecador em busca da graça e de nova vida em Cristo Jesus. Confessa-O como seu Senhor e Salvador e solicita sua admissão como membro arrolado da sua comunidade, disposto a assumir os deveres e gozar os direitos desta posição.

Só que esta pessoa é homossexual, confessa depois.

Como sua igreja reagiria?

Baseado nos princípios do pecado universal da humanidade, da sua depravação total e da graça infinita de Deus Pai evidenciada na morte e ressurreição de Jesus vamos deixar de acolhê-lo e estender-lhe a destra de comunhão?

Lembrando o princípio estabelecido pelo apóstolo Paulo a respeito do comer carne sacrificada aos ídolos, sua comunidade esperaria deste irmão discrição e cuidado com aqueles (mais fracos na fé?) que se escandalizariam com sua orientação sexual, esperando que dela não fizesse propaganda ou apologia? Ainda que pudesse ser dito que esta expectativa seria um "acordo" onde a difícil questão da homossexualidade e a frágil suscetibilidade de outras fossem equilibradamente tratadas, até onde se estaria disposto a ir? Seria justo por parte da sua comunidade exigir, em troca da aceitação, que não houvesse união estável homoafetiva?

Provavelmente alguém se levantará no seu meio e lembrará que na igreja em Corinto havia ex-homossexuais, e que, portanto, a admissão como membro pleno da comunidade somente poderia ocorrer quando o Espírito Santo fizesse a obra na vida deste irmão, livrando-o ("curando-o"?) deste pecado? Não seria esta ideia o equivalente a "ensinar ao vigário o padre-nosso", ou seja, dizer ao Espírito onde ele deve trabalhar, e quando, e como?

Também outro poderia se levantar e recordar que João, o batista, exigiu dos fariseus frutos dignos do arrependimento. Analogicamente, a transformação da homossexualidade em heterossexualidade seria uma decorrência normal da conversão; não ocorrendo, não teria existido verdadeira conversão... Será que as Escrituras ensinam esta doutrina? A Sua leitura correta, em oração?

É uma questão de tempo, mas a sua, a minha, a comunidade do outro, mais cedo ou mais tarde terá de lidar com esta possibilidade.

Estamos preparados?

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Dinamarquês mostra o "sangue no celular"

ALC


Sexta-feira, 11 de novembro de 2011 (ALC) - As matérias-primas que tornam esse início de século XXI tão bem informado e conectado vêm, muitas vezes, de áreas onde ainda impera o trabalho escravo. É o que mostra o filme "Blood in the mobile" (Sangue no celular), do cineasta dinamarquês Frank Poulsen. 

Ele filmou as condições de trabalho na mina de cassiterita de Bisie, na República Democrática do Congo. Milhares de pessoas, inclusive crianças, dedicam-se à exploração desse minério que é um dos componentes dos telefones celulares.

"A situação nas minas é análoga à escravidão. As pessoas ganham para trabalhar, mas estão aprisionadas, amarradas em dívidas com os grupos armados", relatou Poulsen ao repórter Camilo Rocha, de O Estado de S. Paulo.  O que ele lá presenciou está "muito além de tudo" que ele já tinha visto. 

O dinamarquês contraria aqueles que pensam que o que ocorre na África nada tem a ver com elas. "Estamos todos conectados. O nosso modo de vida depende do sofrimento de outras pessoas", denunciou. 

Para chegar na região das minas, Poulsen teve que empreender uma maratona. De Kinshasa, capital do Congo, foi de avião até a cidade de Goma, de onde tomou helicóptero até a vila de Walikale. Deslocou-se, então, 200 Km numa moto e finalmente outros dois dias de caminhada pelas montanhas para chegar ao destino.

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