quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A Vingança da Ilusão

"O que caracteriza e marca a ilusão não é sua oposição à verdade, mas o menosprezo que demonstra diante das condições da realidade, levada por sua atenção exclusiva ao mundo dos desejos."

Frase importante de Morano, que diz algumas outras coisas que desejo destrinchar. Ilusão e verdade não são, necessariamente, autoexcludentes. Ilusão aqui é definida como aquilo que recusa a enxergar além de si mesma. E olhar além de si mesmo não significa autonegação, mas a aceitação de que a realidade a transcende; a ilusão está contida na realidade, e não o contrário. A ilusão se torna ilusão quando somente enxerga o desejo, e nega o mundo no qual o desejo tem a única chance de deixar de ser desejo e tornar-se fato.

Quando Freud analisou a religião partiu de um ponto de vista materialista e positivista. Ele fez uma escolha metodológica e uma escolha filosófica, e toda escolha implica em uma não-escolha, a do rejeitado. E o único critério real é o desejo de que a opção seja a minha, tenha significado para mim, esteja inscrita no meu desejo.

Psicanalistas posteriores a Freud viram na religião "a experiência de uma confiança básica e inata na vida". O campo do ilusório como "uma dimensão essencial do psiquismo humano que cumpre funções de vital importância para seu desenvolvimento e amadurecimento...a necessidade da ilusão como domínio em que a pessoa pode se expressar de um modo fundamental".

A ilusão é o campo onde o subjetivo e o objetivo se encontram, em diálogo permanente. E como todo diálogo, pode ser frutífero ou infrutífero. No primeiro caso, o subjetivo aceita o questionamento da realidade, ao menos como matéria de reflexão, permitindo-se modificar-se, ou não; ou, partindo para atitudes que tentam transformar a realidade segundo a subjetividade. Diálogo infrutífero quando, na verdade, não há diálogo entre as partes, mas apenas teimosa onipotência da ilusão em afirmar-se como toda a realidade.

Dentro da ideia do diálogo frutífero, a ilusão "pode ser concebida como um modo de trânsito para a realidade e não como  um simples impedimento a experimentá-la".

A oração sincera é, portanto, um descortinar-se perante o Outro, abrindo-se consciente e inconscientemente, expressando tanto desejos infantis quanto adultos, tanto a necessidade de onipotência (que tem de ser transformada em aceitação da não-onipotência), quanto os desejos de transformação da realidade, seja interior (em direção a um padrão moral mais exigente) seja exterior (uma sociedade mais justa e fraterna, por exemplo).


(texto produzido a partir do livro "Orar depois de Freud", de Carlos Domínguez Morano, Edições Loyola 1994)

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