quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A ciência pede uma ética secular

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segunda-feira, 17 de agosto de 2009, às 8h05

Coordenador do colóquio que se abre nesta segunda-feira, na UFMG, Ivan Domingues concedeu entrevista ao BOLETIM, agora reproduzida pelo Portal em versão ampliada, quanto às linhas de pensamento que poderão ser observadas no debate sobre os impactos da biotecnologia na vida humana. Professor de filosofia na federal mineira, o pesquisador, dedicado a temas ligados à teoria do conhecimento, filosofia da técnica e à relação entre ética e conhecimento, observa que, no país, a discussão sobre o tema ainda é incipiente e credita o problema à pouca tradição do ensino superior entre nós. "A universidade no Brasil mal tem 100 anos", analisa.


Como está a discussão do tema da bioética na comunidade acadêmica internacional?

Se você me pergunta quais são as ênfases eu diria o seguinte: a discussão da bioética está muito avançada na Inglaterra. É uma agenda importante do Reino Unido e a Universidade de Oxford cumpre um papel muito importante, nesse campo.


O debate que se trava na Inglaterra é laico ou ainda possui viés religioso?

O debate é predominantemente laico, mas religiosos da Igreja Anglicana podem ser vistos integrados ao debate.


Mas as referências, digamos, morais, desse debate são diferentes das que se colocaram no Brasil, à época da aprovação do uso de células-tronco embrionárias em experimentos científicos?

Sim. A legislação inglesa é mais aberta e permissiva do que a nossa. E mais permissiva também do que na Europa Continental – França, Alemanha, e demais países. E na área da bioética, a influência inglesa é muito forte.


E os Estados Unidos?

A Inglaterra anda muito próxima aos Estados Unidos – os dois países têm uma simbiose, uma relação de amor e ódio, muitas vezes, mas nas questões essenciais adotam posições parecidas, como se sabe, nos campos econômico e político. No plano cultural, a língua permite uma intimidade muito grande. Mas, em termos de filosofia da tecnologia, que é o campo de meu interesse – das biotecnologias – a influência é menor, se eu comparo com os Estados Unidos. A bibliografia norte-americana na área de filosofia da tecnologia é mais forte.


E a filosofia da ciência, os britânicos ainda lideram?

Não, são os Estados Unidos. Ela se deslocou para os Estados Unidos. A maioria dos intelectuais de influência foram para lá.


Mas não são de lá.

Mas é preciso entender as propostas das universidades americanas, que é pegar gente do mundo inteiro e levar para lá. A Inglaterra tem centros importantes em termos acadêmicos, mas a escala americana é maior.


No período do Bush, no entanto, a pesquisa nessa área sofreu um grande revés.

É verdade. Em contraste com a legislação inglesa, a americana era mais conservadora, com Bush. Obama mudou o panorama, mas não muito. A América profunda é conservadora. O país é grande; populoso, e as relações são mais dispersas. Então há centros e comunidades isolados, o que produz contrastes. Já a Inglaterra é uma ilha; as relações são intensas. Foi conservadora durante muito tempo, mas hoje, em muitos setores, os ingleses são muito abertos e permissivos.


Permissivo no sentido de liberal?

Sim. Falo no sentido positivo, não estou moralizando. Eles permitem mais, no sentido de tolerar mais. É uma sociedade mais aberta.


A qualidade do debate está par a par entre os centros americanos e ingleses, então?

Descontada a ética religiosa americana, isto é, a influência do puritanismo das igrejas protestantes, se você coloca a questão no plano laico, a relação entre o pensamento deles é muito próximo.


A ética sempre vai estar em conflito com a ciência?

Precisamos tomar cuidado quanto a isso. No evento da UFMG, o esforço é pensar a ética das – ou para as – novas biociências e a condição humana. Creio que, para compreender o problema, temos de considerar as ciências e as tecnologias, ou tecnociências, como um sistema. A dependência entre as tecnologias e as ciências é enorme, por exemplo, nas áreas de exatas e biológicas. Essa relação possui feedback, logo, temos aí um sistema dinâmico. Isso leva a pensar as tecnociências como uma força social, sistema que põe um poder extraordinário nas mãos dos seres humanos, ampliando o horizonte de sua ação e convocando a ética a se pronunciar sobre muitas questões, como a seleção de sementes e o melhoramento genético. Então, quando a ciência é isolada da tecnologia, o que entra em jogo? A ciência tem várias dimensões: é um discurso, uma experiência, uma ação e uma instituição. Se reunirmos todas essas dimensões, é possível pensá-la com pertinência em toda a sua extensão. E então fica claro que a ética vai entrar em vários lugares. Logo, aquela ideia segundo a qual a ciência é isenta de valores, neutra e desinteressada se despedaça. Com o advento das tecnociências, isso não faz sentido. Ciência é uma força social. Produz tecnologia, interfere no mundo humano e tem implicações de toda a sorte. O tema da neutralidade e da isenção possui abrangência muito limitada. É possível neutralizar todos os valores? Não. Os valores epistêmicos estão subjacentes e comandam essas operações: a busca da verdade, a exigência de objetividade e a ideia da ciência como um bem da civilização. É possível neutralizar valores ideológicos, políticos, morais, mas não os valores epistemológicos. Por esse motivo, muitas vezes o debate entre ética, ciência e tecnologia é deslocado e confuso.


Que vertente comanda a visão contemporânea?

A moral utilitarista, pragmatista, ganhou o debate e se impôs nas atividades científicas. Não sei se é a melhor moral, mas a maioria dos cientistas, sabendo ou não, a segue. E este evento aqui na UFMG será a oportunidade para discutir esta moral e outras.


Mas ela se impôs também sob o argumento de serem as biotecnologias um direito do ser humano. Assim, não desenvolver uma linha de pesquisa envolve arcar com as consequências de não proporcionar solução para uma dor humana...

Há, sim, essa dimensão, que procura dar uma mensagem humanista ao processo. Só que, no meu modo de ver, ela é meio enviesada. A moral utilitarista, no sentido estrito, é consequencialista - se pauta pelo exame do custo-benefício envolvendo as consequências das ações. Mesmo dentro do utilitarismo nem sempre é claro que a tecnologia é uma boa coisa, pois ela pode resultar em coisas ruins. Além do mais, há outras éticas que disputam com a moral utilitarista e que são importantes.


Poderia citá-las?

A moral deontológica kantiana seguida por muitos intelectuais põe o dever acima do cálculo. Muitas vezes vê nas ações das biotecnologias algo perigoso, porque pode levar à instrumentalização do ser humano. Aí a discussão fica acirrada. O extremo oposto do consequencialismo é a deontologia.


E as demais linhas?

Entre esses dois extremos há outras morais. Como as morais neoaristotélicas prudenciais. Elas não examinam só o custo-benefício; pautam as decisões com base em outros princípios. Além do tema da qualidade de vida e do bem-estar, compartilhado com as morais utilitaristas, elas estão associadas à prudência. As morais prudenciais são extremamente fortes e têm a hegemonia nos comitês de ética, que seguem o princípio da precaução. E há aí uma nuance: precaução é diferente de calcular custo-benefício.


Qual a questão central do debate entre elas?

O que está em jogo é o seguinte: como pensar uma ética para essas situações novas geradas pelas tecnociências, sabendo que a antiga ética está defasada? Por isso, é preciso carregar no neo: neokantiano, neoaristotélico... A velha ética passava ao largo da ciência e da tecnologia e, até o início da era moderna, era muita influenciada pela ética religiosa. Isso afeta o debate até hoje e pode levar a impasses incontornáveis. A ciência e a tecnologia pedem uma ética secular.


Ética é a solução?

A filosofia é um campo do conhecimento em que a ética tem um lugar natural e quem vai disputar com ela nesse terreno não é a ciência, é a religião – você tem a ética religiosa a ética teológica, a teologia moral. Porém há mais de uma possibilidade, não se está condenado a fazer uma ética religiosa, há uma ética laica. Quando estudei, a ética não tinha o menor prestígio, estava em baixa. Era a política e o marxismo que comandavam toda a cena. A minha preocupação é que hoje se pede ética para tudo. Mas pode haver uma grande frustração. A ética não é poderosa assim, não vai ter esse poder de regular as ações humanas. Há outras dimensões importantes, como o direito e a política.


No Brasil parece haver uma lacuna de uma filosofia pública nesse debate. Isso ficou claro no caso das discussões das células-tronco embrionárias...

O Brasil chegou um pouco tarde a essas discussões. Por um lado, é preciso considerar que nossas universidades mal têm 100 anos e a pesquisa forte mal chega aos 40 anos. Por outro lado, não podemos ignorar que a questão religiosa vem travando esse debate ao longo do tempo.


Como está esse diálogo entre as áreas na UFMG?

Está se intensificando. O colóquio vai repercutir e trabalhar essas questões. Um ponto que me levou a formular a temática global do colóquio dessa maneira – Biotecnologias e a condição humana – é a necessidade de enfatizar as novas biotecnologias, o impacto delas nas questões antropológicas e as implicações morais. Esse é que é o nervo, o núcleo duro do debate. Isso é novo. A idéia de natureza estava em crise, por isso preferimos o termo condição humana. Vamos repercutir ainda um debate importante no cenário contemporâneo que é a controvérsia entre os bioconservadores e os trans-humanistas.


Afinal, qual a diferença entre eles?

Pós-humanos, trans-humanos: a ideia de natureza humana volta ao debate. A questão é saber se faz sentido pensar a natureza humana como referência nesse debate, sabendo que o ser humano é um ser plástico – moldável, cooperável. Se faz algum sentido, então é possível pensar as intervenções biotecnológicas no sentido de aceitá-las ou proibi-las. Aquele que diz que o corpo é sacrossanto e não pode ser violado, está alinhado com os bioconservadores. Eles vão dizer não para as intervenções genéticas, porém se sentirão desconfortáveis se forem perguntados sobre terapias gênicas. Quando se distingue as bioengenharias com fins terapêuticos – restabelecer órgãos e funções – das tecnologias que implicam o melhoramento e a eugenia, muitos desse campo chamado bioconservador são levados a aceitar as primeiras e a negar as últimas. Do outro lado, que é o trans-humanista há uma posição completamente diferente. É o tudo pode e a dificuldade de aceitar qualquer regulação jurídica ou ética.


Aqui parece estar o pessoal das fantasias tecnológicas também...

Sim, na linha de O admirável mundo novo. O debate com Sérgio Danilo Pena, que é geneticista, vai trabalhar com o balanço das promessas e das realizações das fantasias. Porque há muita fantasia...


Trazendo Habermas à discussão, como pensar a liberdade do homem enquanto produto da técnica, de uma relação entre programado e programador? Isso é relevante?

Quando falo que há uma discussão deslocada que muitas vezes confunde, penso também em Habermas, que diz que a tecnologia acaba com a liberdade, com a autonomia do indivíduo, e coloca-o nas mãos do grande programador. É uma maneira pessimista de ver as coisas. Entendo que é bastante confusa a articulação que ele faz entre a ética do discurso e a ética da espécie ao voltar com a natureza humana.


A crítica dele de uma eugenia liberal descarta a ação do Estado, mas põe em relevo o desejo individual...

Porque o Estado não é nazista. Eugenia, programação, isso pode existir em toda parte. Mas a experiência totalitária não pode ser desprezada. Ela pode voltar.


O que o leva a ter essa percepção?

Pode ocorrer, não estou falando que isso ocorrerá. Mas o problema não será resolvido com base em uma eugenia liberal, em que o indivíduo vai ao supermercado e compra o seu melhoramento, sua seleção, sua prole. Sob esse aspecto, a reserva de Habermas faz sentido.


No entanto são exercícios que se fazem sobre possibilidades...

Aí é válido, porque ganha-se cognição, compreensão.


E toca uma questão fundamental sobre a ação do ser humano.

Por isso que a biotecnologia explode a questão da neutralidade. Nesse momento, como afirmar que é uma ferramenta neutra que pode ser usada para lá e para cá? Não. Ela é mais do que uma ferramenta, é uma força.


O mito grego de Hefestos fica aquém da simbologia da questão na atualidade?

Para trabalhar as implicações das biotecnologias, delineio paradigmas a partir de três mitos: Prometeu, que de perdedor torna-se um vencedor na era moderna – a essência moderna é prometéica, a favor do ser humano, e foi vista assim por Descartes e Bacon. O outro é Fausto, de Thomas Mann, que permite pensar o pacto da ciência diabólica. Por esse paradigma, ela não seria coisa dos deuses, mas do Diabo. O terceiro mito é o Ciborgue, da ficção científica, baseado nas máquinas cibernéticas.


Há uma linha em comum entre eles?

Não, são experiências mentais e nenhum dos mitos dá conta do problema. Prometeu não vem sozinho, ele traz consigo o irmão Epimeteu, que era um imprevidente [abriu a caixa de Pandora, apesar do alerta de Prometeu, deixando, assim, todas as mazelas escaparem para o mundo]. Já Fausto não dá certo porque, como se sabe, no fim do contrato o Diabo vai embora; leva a alma e não cria o Bem. A tecnologia cria o Bem. Quanto a Ciborgue, ele não replica e, portanto não gera descendência. As bioengenharias querem gerar uma descendência. Então o mito precisa ser ressemantizado, à luz desses novos problemas.

fonte: http://www.ufmg.br/online/arquivos/012763.shtml

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