segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Considerações críticas acerca do infanticídio indígena no marco dos direitos humanos

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ISSN 1983-4640 • Segunda-feira, 31 de agosto de 2009

por Gerôncio Ferreira Macedo Júnior

Title: Critical considerations about the infanticide native in the frame of the human rights

Abstract: The present article prevails by the analysis of the infanticide native in the juridical order brazilian with the objective of demystify of subject, highlighting, besides, the paradigm that establish, in Brazil, with the conquest of a conception multicultural of the human rights.

Keywords: Infanticide native; Collision of fundamental rights; Human dignity; Habits; Constitucional interpretation.

Resumo: O presente artigo prima pela análise do infanticídio indígena na ordem jurídica brasileira com o escopo de desmistificar o tema, salientando, ademais, o paradigma que se instaura, no Brasil, com o advento de uma concepção multicultural dos direitos humanos.

Palavras chave: Infanticídio indígena; colisão de direitos fundamentais; dignidade humana; costumes; hermenêutica constitucional.

Sumário: 1 introdução – 2 tensões entre o universalismo e relativismo cultural – 3 diálogo intercultural – a possibilidade de uma ética global –hermenêutica constitucional – à guisa de conclusão – referências

1.0 - Introdução

Tema que emana dificuldades na realidade hodierna é a concernente à manifestação de práticas infanticidas no seio de tribos indígenas, afigurando-se empreitada complexa enveredar por tais caminhos, vez que denota a tentativa de "desprezar", daquele que estuda o problema, os próprios juízos de valor, intrínsecos da atividade cognoscitiva, pois, os costumes, a religião e os valores, mostram-se barreiras, muitas vezes incólumes, de difícil acesso à exegese que se apresenta destinada a compreender as circunstâncias fáticas.

O infanticídio indígena por ser prática reiterada constitui-se em costume de povos nativos, alçados na Constituição, tutelados em seu art. 231, consoante o qual "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições(...)". Como consectário lógico do dispositivo – fruto da tendência mundial de proteção aos direitos dos povos – surge a idéia de direitos a alteridade e diversidade que, em passos largos, caminha para uma concepção realista da pluralidade de culturas que se desenvolvem no seio das nações.

Assentados estes ditames, sob os auspícios de uma nova hermenêutica constitucional, aberta e flexível, buscaremos analisar o reconhecimento e os óbices, por parte do Estado brasileiro, que persistem para a efetividade dos direitos dos povos, sobretudo, a colisão entre direitos fundamentais, a qual, pretende-se analisar neste artigo, dando ênfase ao conflito existente entre a dignidade da vida e os costumes indígenas que legitimam o infanticídio.

2.0 – As tensões entre o universalismo e o relativismo cultural

A visão contemporânea dos direitos inseridos na CF/88 por influência da declaração de 19481 e de inúmeros organismos internacionais de tutela, estabeleceram o paradigma universalista dos direitos que se afigura como obstáculo para a efetividade dos direitos fundamentais ao colidir com a concepção relativista cultural presente nas Cartas anteriores e que ainda impregna a Constituição de 1988. Explica-se.

Desde o período pré-constituição de 1988, fixo e inerte, é possível constatar a vigência do relativismo cultural, especialmente, em decorrência da ultrapassada visão integracionista que engloba o Estatuto do Índio. Esta teoria parte do pressuposto que em decorrência da existência de uma "pluralidade de culturas no mundo, estas culturas produzem seus próprios valores"2, tornando nulo, portanto, a legitimação do universalismo. Vale dizer, enquanto a concepção universalista aduz um valor inerente a todo ser humano, o relativismo nega-o, ao asseverar que os valores são relativizados a partir da análise de cada cultura, firmando, assim, que os direitos seriam relativos e não universais.

Exemplo atual é a questão referente ao infanticídio indígena no alto do Xingu, onde tribos isoladas praticam há séculos tal costume que é defendido prontamente por antropólogos e sociólogos, além da FUNAI e FUNASA, órgãos legitimados pela Constituição à tutela dos direitos dos índios e seus costumes.

O enclave diz respeito a seguinte questão: é legitimado ao índio ceifar a vida de um indivíduo da sua tribo, quando a Constituição proclama como pilar axiológico a dignidade da vida humana e, ao mesmo tempo, a tutela dos costumes indígenas?

Segundo o professor Erwin Frank, "esse é o modo de vida deles e não cabe a nós julgá-los com base nos nossos valores. A diferença entre as culturas deve ser respeitada", defende o antropólogo.3

Ao revés, encontram-se O.N.G.'s em defesa dos direitos humanos que bradam por uma concepção universalista, pretendendo a interrupção dos casos de assassínios de crianças, imediatamente, por parte de ações do governo federal.4

É de notar as contradições naturais entre valores ocidentais e tribais no que tange ao sentido da vida. Todavia, como mediar tal conflito? Se a Constituição surge como um instrumento de transformação social, valendo-se de suas normas para colmatar os conflitos do ser, o que fazer ante a incompatibilização de dois preceitos máxime?

De certo que não concordamos com a simples ampliação do universalismo a um ponto extremo, vez que acarretaria a remodelação de costumes indígenas, que como se verifica, é uma lesão de fato a direitos dos povos, inadmissível no regime Democrático de Direito. Também não concordamos com a relativização extrema dos direitos, pois, ocasionaria a existência, no sistema constitucional, de um paradoxo ao sustentar a vida como valor máximo e, indiretamente, legitimar costumes indígenas na prática do infanticídio.

Desde logo, ademais, faz-se necessário recorrer a uma conciliação entre esses princípios, um cotejo entre teorias com vistas a uma aplicação concreta que não venha a excluir do ordenamento jurídico, por irremediável contradição, postulados basilares do Estado, muito menos, a descaracterização do modus vivendi das tribos indígenas.

3.0 – Diálogo intercultural

O diálogo intercultural foi cunhado por Boaventura de Souza Santos, que ao refletir acerca do atual paradigma da modernidade chegou à conclusão que as políticas de direitos humanos estavam fadadas ao fracasso em virtude da crise do Weltfare State.5

Com a perplexidade de como foram concebidos, os direitos são reconhecidos como universais, uma vez que se identificam com a política hegemônica e, portanto, acabam funcionando como mecanismo de "choque de civilizações" (Samuel Huntington, 1993). Neste contexto, o infanticídio indígena se enquadra por ser repudiado, já que, ao conflitar diretamente com valores ocidentais está atentando contra a ordem vigente onde se situam, atualmente, as políticas hegemônicas. Idêntico caso ocorre na África do sul, com seus conflitos entre grupos étnicos de dimensão internacional.

Assevera Boaventura que "contra o universalismo, há que se propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas"6. Se os conflitos axiológicos existentes na concepção de dignidade humana são distintos, deve-se recorrer a um diálogo entre as culturas para que, se necessário for, modifique-se o núcleo de sentidos. Este processo de re-conceituação encontra guarida na "incompletude das culturas", isto é, cada cultura é imperfeita, pois, se não fosse, existiria apenas uma perfeita e acabada.7 Sendo necessário, assim, ampliar a consciência de "incompletude" para haver um diálogo intercultural que, finalmente, proponha a remodelação de direitos universais para multiculturais.8

Com efeito, o mecanismo que irá concretizar tal concepção de direitos é a hermenêutica diatópica, na qual, mediante o cotejo das diversas culturas em conflito, busca-se ampliar ao máximo a consciência de "incompletude" dos grupos, para que de fato se possa, através da troca de saberes, chegar o mais perto possível da weltanschauung.

Nesse sentido, a hermenêutica diatópica subtende a existência dos topoi que são "os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura" (Boaventura, 2003). São os locais onde se encontram os pilares irrefutáveis de cada cultura, sobre os quais hão de incidir todas as tentativas de diálogo intercultural. Exemplo disso é o topos do dharma na cultura hindu, o qual fundamenta a filosofia e crença oriental.

Nesse momento, todavia, afigura-se a problemática da teoria de Boaventura, quanto à utilização do topos no cotejo de culturas diferentes.

Sabemos que no Brasil não se pode falar em uma tribo, ou melhor, um mundo indígena, ao contrário, fala-se em mundos indígenas em decorrência da pluralidade de etnias que se desenrolam, por sua vez, em diversas tribos. Enquanto o dharma orienta a crença hindu, e o umma a cultura islâmica, nas tribos indígenas iremos encontrar as mais variadas concepções de existência ou vida, direito e moralidade.

Deste modo, a teoria de Boaventura para ser aceita na realidade brasileira com vistas a solver o problema posto, teria que desenvolver uma estrutura metodológica capaz de situar as diferentes acepções de dignidade existentes no seio de cada etnia, pois, recordando que o infanticídio não é verificável somente numa tribo, mas pelo contrário, tem sido registrada numa pluralidade de etnias, tais como: Uaiuai, Bororo, Mehinaco, Tapirapé, Ticuna, Amondaua, Uru-eu-uauuau, Suruwaha, Deni, Jarawara, Jaminawa, Waurá, Kuikuro, Kamayurá, Parintintin, Yanomami, Paracanã e Kajabi.9 Essa questão – de situar o topos de todas as etnias – nos leva a crer numa missão utópica, uma vez que a diversidade é tamanha que mal pode ser catalogada por antropólogos.

Teríamos, assim, que analisar e estudar os Yanomami, por exemplo, para posteriormente cotejá-la com o topoi dos direitos humanos, recordando sempre que dentro daquela encontraremos v.g. a tribo Sanumá, com uma concepção de dignidade de vida distinta de outras etnias.

Faz-se imprescindível, portanto, a observação e a análise de cada etnia em particular, sobretudo das concepções de direitos existentes no grupo a fim de localizar uma "ponte" entre as culturas. Não seguir essas observações é legitimar a segregação de raças como o fez a Constituição de 1969, autoritária e reducionista, pregando como desígnio a incorporação dos índios à comunhão nacional.

4.0 – A possibilidade de uma Ética global

De fato, que a renovação dos grupos étnicos em todo o mundo, na segunda metade do séc. XX, tem levantado inúmeras discussões, sejam políticas ou econômicas quanto ao remodelamento das sociedades contemporâneas. O trato com a questão étnica não pode mais ser posta de lado, pois "constitui um elemento inerente aos assuntos humanos e não desaparecerá se for ignorada" (Maybury-Lewis, 1993). Foi assim no México, que deu início a uma política de indigenismo na década de trinta, e amplificou-a, com a revisão de 1993, na qual proclamava-se uma sociedade multiétnica. Também na Malásia apelou-se para uma Constituição multiétnica, todavia, os atuais conflitos axiológicos inerentes ao convívio mútuo de grupos étnicos têm demonstrado falhas.

Esse novo paradigma foi denominado como "la era de la migración" porque quantidades ingentes de pessoas atravessaram as fronteiras, fomentando com que todos os países sejam mais ou menos poliétnicos.10 Descreveu-se, também, como a "era del nacionalismo" vez que é cada vez maior o número de grupos que se mobilizam e afirmam sua identidade.11 A Constituição do Brasil, nesse sentido, andou bem ao ampliar a esfera de tutela dos índios, com ressalvas, ademais, quanto à velha problemática da demarcação de suas terras.

A partir desse panorama, Roberto Cardoso de Oliveira munindo-se de uma releitura da ética discursiva de Habermas e da hermenêutica crítica de Karl-Otto Apel, além de sua experiência antropológica, propõe a aplicação de uma ética global ligada a tentativa de formular uma nova postura ética diante das crises entre valores no seio de comunidades distintas.

Em síntese, a pesquisa do antropólogo chega muito perto do diálogo intercultural tratado acima, no entanto a análise cingiu-se aos valores morais, daí a necessidade de distinguir moralidade de ética. A primeira "trata do que é igualmente bom para todos", enquanto a segunda engloba a necessidade de "auto-esclarecimento", ou de esclarecimento de quem somos e quem gostaríamos de ser (Habermas, 1993). Ilustra-nos bem o seguinte exemplo registrado por Charles Wagley, no qual foi identificado a prática de infanticídio entre os índios Tapirapés, cujo quarto filho era eliminado para manter o equilíbrio no ecossistema.12 O conflito identificado diz respeito à reação de um grupo de missionárias à prática infanticida, na qual depreende-se um choque entre valores.

Contrariamente ao que era de se esperar, pois a história mantém viva em seus registros os casos de imposição por parte de grupos externos, as missionárias, através de um diálogo pautado na ética, conseguiram convencer o grupo indígena a abdicar o infanticídio. Constatou-se nesse fato o que Cardoso chama de "comunidade de comunicação" entre dois grupos. Enquanto os índios davam mais valor a comunidade, as freiras intercederam pela vida, "o que não diminui o seu significado ético" (Cardoso, 2000).

Como se apreende, a proposta trazida acima prima pelo diálogo "argumentativo e democrático", onde o relacionamento interétnico é conduzido por linhas de "negociação" entre comunidades com crenças diferentes.

A problemática de sua teoria, no entanto, está na "fidúcia" depositada nos sujeitos externos, que nada mais são que os instrumentos para realizar essa ética, exemplo disso foi o colapso cultural causado pelos missionários da Missão Salesiana, ao impor os índios da etnia Bororo que abandonassem seu modus vivendi com alarde de cometerem o pecado do incesto.

5.0 – Hermenêutica constitucional

Decerto que o neoconstitucionalismo reclama que suas normas sejam seguidas para que a ordem não se transmute num caos. Nesse âmbito, a jurisdição constitucional é o mecanismo estabilizador do status quo e o elo para novos paradigmas. É na hermenêutica constitucional que se assenta a possibilidade de conduzir os conflitos para um total ou parcial desfecho.

Como é de praxe, os conflitos entre direitos fundamentais reconduzem-se, mormente, a um conflito de princípios.13 Sendo necessário, em todo caso, não olvidar das circunstâncias e buscar estabelecer qual princípio deve prevalecer, segundo um critério de justiça.14

A priori, o conflito tal como se ramifica, situa-se na "colisão de caráter negativo de um direito com o caráter positivo desse mesmo direito"15, em outros termos, o conflito entre a tutela constitucional da vida e a proteção dos costumes, no qual está compreendido o infanticídio. Assevera Canotilho que nesses casos impõem "a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros".16 É o famoso princípio da concordância prática, pois a conseqüente colisão de valores plasmados na Constituição, favorece esse preceito na solução que não importe em exclusão de um ou outro, mas, ao revés, na sua conciliação.17

Nossa proposta, com fundamento no postulado da concordância prática e pautado nos fundamentos doutrinários aludidos acima, é que a solução do conflito deve ser norteada pela ponderação, seguido por circunstâncias que serão avaliadas em cada caso. Assim, se ficou constatado, nas pesquisas de Roberto Cardoso, que a "negociação ética" das missionárias foi capaz de neutralizar (ou pelo menos enfraquecer) o infanticídio na tribo, sem impor autoritariamente que cessasse o costume, insurge-se, assim, como instrumento para, se não alcançar, tentar enfraquecer esta prática, que, indubitavelmente, não atende as posições contemporâneas. Frise-se, desde já, que o direito dos povos deve ser resguardado a todo custo e não apregoamos a iniciativa despreparada de interceder com vistas autoritárias. A contrario sensu, clamamos pela criação de comissões especializadas em etnografia, compostas de antropólogos com notável conhecimento na área, para que criem "pontes" ou, no dizer de Boaventura, "diálogos interculturais" que definidos pela ética, alcancem soluções que se coadunem com o paradigma da Constituição e seus ditames.

Quanto à posição do Estado é verificável que o Congresso já se manifestou em audiência pública realizada em 2007, a requerimento do então deputado Henrique Afonso (PT/AC), na qual foram expostas opiniões divergentes acerca do caso em tela. O citado deputado é autor de projeto de lei, denominado Muwaji cujo escopo é combater praticas culturais "nocivas" ao país.

Saliente-se, todavia, que não concordamos com o conteúdo do projeto Muwaji18, pois consoante entendimento que perfilhamos, padece pela mácula da inconstitucionalidade material, quando dita pioneiramente, que os indivíduos que se omitirem de notificar a prática às autoridades – nada obstando, contudo, que não sejam indígenas –, recairão nas devidas sanções, de acordo com a lei penal vigente. De fato, que não podemos simplesmente no afã de resolver a questão impor aos índios que cumpram nossa legislação.

Ilustra-nos, no sentido da inconstitucionalidade, a interpretação do art. 6º, do citado projeto, segundo o qual:

    Constatada a disposição dos genitores ou do grupo em persistirem na prática tradicional nociva, é dever das autoridades judiciais competentes promover a retirada provisória da criança e/ou dos seus genitores do convívio do respectivo grupo e determinar a sua colocação em abrigos mantidos por entidades governamentais e não governamentais, devidamente registradas nos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Como se vê, o projeto determina o exílio para o índio que não seguir a norma. Consideramos que essa possibilidade jamais deveria ser prescrita em lei, vez que não demonstra respeito às populações, que sequer têm noção e muito menos culpa da atividade que realizam.19

"Ninguém se escusa da lei" é preceito frio e decadente na doutrina, pois nem os doutos a conhecem integralmente. Agora, impor aos índios o conhecimento de nossa legislação é falácia, algo estarrecedor a se pensar. Nesse sentido estabelece o citado projeto que "é dever de todos que tenham conhecimento das situações de risco (...), notificar imediatamente as autoridades (...)".20 Sublinhe-se que de certa forma o índio está, também, dentro do alcance desse dispositivo.

Por conseguinte, consoante entendimento que a Constituição não legitima a cominação de sanções deste calibre a grupos étnicos, o citado projeto apresenta-se, pois, como uma violência que emerge para ferir de morte o princípio da proporcionalidade, limite para os excessos discricionários do poder público.

Observa-se, enfim, que a concepção universalista presente acima prescreve a submissão dos povos indígenas aos direitos reconhecidos ou hegemônicos, como a "arma do Ocidente contra o resto do mundo" (Samuel Huntington, 1993, pág, 25). Ato que não se harmoniza ao Estado Constitucional de Direito e atenta contra os povos.

6.0 – À guisa de conclusão

Os casos estudados demonstram que não é fácil diagnosticar a questão axiológica ocidental quando interligada com os conflitos étnicos. Sabe-se que a questão indígena sempre foi tida como uma problemática nas sociedades contemporâneas, aliás, em todo o mundo a questão étnica foi olvidada ou conduzida para "tentativas" de sublimações por parte dos governantes. O que fez Huntington denominar como uma "receita para o desastre" (is a recipe for disaster) a omissão do Estado nas questões étnicas.

O infanticídio indígena, nesse diapasão, está intimamente relacionado com tais questões, quando desafia o paradigma hegemônico esbarrando-se na soberania nacional. Desse modo, quando se observar colisões dessa natureza, isto é, entre dois mundos distintos, deve-se recorrer, pois, a uma hermenêutica que considere todas as circunstâncias do caso concreto, e perscrute outros ramos do saber com vistas a encontrar uma "ponte" que oriente para soluções.

Urge, no caso em tela, fazer prevalecer a vida em face do costume, contudo, jamais impondo e desrespeitando o direito dos povos, como o querem alguns, ao utilizar de terminologia inadequada – v.g. práticas culturais"nocivas" – que transmite a sensação de que os índios seriam cruéis no exercício de seus costumes seculares, e reforçando a segregação entre os povos.

A interpretação da EC 45/2004 traduz, ao revés, uma áurea de harmonização ao fincar novos horizontes, tanto para os direitos humanos, como para os povos indígenas.21 Para estes, ademais, inseriu o princípio da autodeterminação cujo produto parece surtir efeito v.g. nos atuais conflitos de demarcação de terras, quando setecentos índios acamparam na frente do STF, o que reforça a tese defendida por Will Kymlincka, na qual caminhamos para uma "era das nacionalidades".

Importando ressaltar, enfim, que plantado esses princípios, a defesa da diversidade cultural passa a ser, para os Estados nacionais, um imperativo ético inseparável do respeito à dignidade humana, ainda que questões complexas como as do infanticídio denotem atenção dobrada.

7.0 – Referências

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SOUZA SANTOS, Boaventura de (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Notas

1 "(...) a Declaração de 1948 inova a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcados pela universalidade e indivisibilidade destes direitos (...)". Flávia Piovesan, Direitos Humanos: Desafios da Ordem Internacional Contemporânea. 2006.

2 Herskovits, maior difusor do relativismo acentuava "o que é considerado direito humano numa cultura pode ser considerado anti-social em outra". A questão étnica: qual a possibilidade de uma ética global? In As dimensões Culturais da transformação social, pág. 54-55.

3 Folha de Boa Vista – Infanticídio é uma tradição milenar dos Yanomami – 10 de março de 2005.

4 Tramita no congresso o projeto de lei 1057, denominado Muwaji dispondo sobre as praticas infanticidas em tribos indígenas, com forte participação da ONG ATINI.

5 Boaventura de Souza santos. Por uma Concepção Multicultural de Direitos humanos. Pág. 429-432.

6 Idem, pág. 440-441.

7 Idem, pág. 442-443.

8 Nesse sentido, Taylor, Charles. El Multiculturalismo y "la politica del reconocimiento". México, D.F: Fondo de Cultura Económica, 1993.

9 Quebrando o silencio. Um debate sobre o infanticídio nas comunidades indígenas do Brasil. Relatório Atini.

10 KYMLICKA, Will. Ciudadanía Multicultural. Pág. 40-43.

11 Idem, ibidem.

12 CARDOSO DE OLIVEIRA, ROBERTO. In As dimensões culturais da transformação global. Pág. 61-62.

13 Cf. especialmente ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales, pág. 130-133, e DWORKIN, Ronald. Levando a sério os direitos, pág. 36-50.

14 MENDES, Gilmar. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Pág. 181-182.

15 Idem, pág. 282.

16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, 6ª ed. (revista). 1993, pág. 228

17 Nesse sentido colhe-se da lavra de Jorge Miranda "Tais contradições hão de ser superadas, nuns casos, mediante a redução adequada do respectivo alcance e âmbito e da cedência de parte a parte e, noutros casos, mediante a preferência ou a prioridade, na efectivação, de certos princípios frente aos restantes – nuns casos, pois, através de coordenação, noutros através de subordinação". Manual de Direito Constitucional. Pág. 191.

18 PROJETO DE LEI Nº 1057 – Lei Muwaji; Dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais.

19 Nesse sentido manifesta-se Daniel Sarmento, A garantia do direito à posse dos remanescentes de quilombos antes da desapropriação, (...) "romper os laços de um índio com seu grupo étnico é muito mais do que impor o exílio do seu país para um típico ocidental".

20 Art. 4º. É dever de todos que tenham conhecimento das situações de risco, em função de tradições nocivas, notificar imediatamente as autoridades acima mencionadas, sob pena de responsabilização por crime de missão de socorro, em conformidade com a lei penal vigente, a qual estabelece, em caso de descumprimento: Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

21 A convenção 169 da OIT prescreve a tutela das tradições, culturas, crenças, reconhecendo, inclusive seu direito consuetudinário.

Revista Jus Vigilantibus, Quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Sobre o autor

Gerôncio Ferreira Macedo Júnior

Acadêmico do 4º semestre da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador.

2009 – Todos os direitos reservados.

fonte: http://jusvi.com/artigos/37745

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