quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Deus e o Diabo no NIH

Francis Collins, do NIH (Foto: Divulgação)O mais recente bafafá na blogosfera científica americana (um ambiente naturalmente fértil para bafafás, devemos admitir) envolve a nomeação de Francis Collins, antigo czar do Projeto Genoma Humano, para o cargo de diretor do NIH (sigla inglesa dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA).

O NIH, para quem não sabe, é a instituição pública com o maior orçamento de pesquisa médica do mundo. Collins está sumamente qualificado para lidar com projetos de vulto graças à experiência com o genoma. Mas uma coisa os críticos não engolem: a fé cristã militante do pesquisador.

Collins, ex-ateu e atual cristão evangélico, nunca escondeu sua profunda visão religiosa do mundo. Em seu livro "A Linguagem de Deus" e no site BioLogos (uma junção de "biólogo" com o Lôgos ou Verbo divino da tradição cristã), Collins se revela um defensor ardoroso da compatibilidade entre ciência e religião. Ele rejeita tanto o criacionismo quanto o Design Inteligente, mas argumenta que Deus poderia muito bem ter usado a evolução como ferramenta para criar os seres humanos ao longo de bilhões de anos

Blogueiros-cientistas (e ateus militantes) populares nos EUA, como P.Z. Myers e Jerry Coyne, andam flambando a reputação de Collins em óleo cru desde que sua indicação ao cargo foi cogitada pela primeira vez. O problema deles, afirmam, não é com a religiosidade de Collins, mas com o fato de ele supostamente usar seu prestígio para promovê-la publicamente como alternativa viável tanto ao ateísmo quanto ao fundamentalismo religioso. Ao menos enquanto usa o jaleco de cientista, Collins deveria ser um cristão "no armário", sugerem eles.

Em si, o argumento soa como polícia de pensamento. Se o sujeito quer defender a compatibilidade entre fé e ciência, está no direito dele, até porque Collins quase sempre está pregando para outros religiosos que relutam em aceitar a evolução, por exemplo, e não para ateus. O aspecto defensável da crítica, por outro lado, tem a ver com uma série de declarações do pesquisador, que afirmou repetidas vezes a impossibilidade, ou quase impossibilidade, de explicar o senso humano do certo e do errado com a ajuda da ciência. Para Collins, o conhecimento intuitivo da chamada "lei moral" seria prova da interação única de Deus com os seres humanos -- argumento que ele tomou emprestado do escritor e apologista cristão C.S. Lewis (1898-1963).

No entanto, ao dizer isso, Collins acaba ignorando anos de pesquisa que encontram sinais das bases da moralidade humana em primatas e outros mamíferos sociais, como os estudos do holandês Frans de Waal com a capacidade de empatia em bonobos, ou chimpanzés-pigmeus. Se não existem versões de Madre Teresa entre os chimpanzés e os elefantes, esses bichos, mesmo assim, têm uma noção considerável daquilo que chamamos de certo e errado. A preocupação dos críticos de Collins é que, ao tomar essa posição ideológica de "isso é inexplicável e deriva direto de Deus", ele possa desestimular novos estudos sobre o tema -- e talvez até cortar verbas do NIH para esse tipo de pesquisa. (A de Frans de Waal, por exemplo, que calha de receber esse financiamento.)

Claro que é cedo para dizer se Collins vai mesmo se comportar desse jeito. Mas, se ele aceitar um conselho de cristão para cristão, não é muito sábio do ponto de vista teológico atribuir qualquer fenômeno do Universo à intervenção direta de Deus (a palavra chave aqui é direta) e descartar explicações naturais a priori. Esse tipo de raciocínio é um caso clássico do chamado "Deus das lacunas" e equivale a batizar de "Deus" a ignorância humana -- até que essa ignorância seja sanada, como aconteceu no caso da evolução, por exemplo.

O efeito teológico disso é passar a sensação de que o "espaço" para Deus no mundo está encolhendo cada vez mais. Voltando à moralidade: mesmo que ela tenha evoluído por causas inteiramente naturais (o que é bem provável, na verdade), quem crê em Deus pode simplesmente postular que essas causas naturais foram os instrumentos divinos. Nada disso, claro, vai satisfazer os críticos mais raivosos de Collins, mas pelo menos pode aliviar os temores mais pertinentes deles.

(REINALDO JOSÉ LOPES)

fonte: http://laboratorio.folha.blog.uol.com.br/ em 06/08/09

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