quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Transfusão de sangue e pecado capital

Eduardo Ribeiro Mundim

Uma mulher foi hospitalizada com um quadro de infecção. A situação se agravou, e passou a ter uma insuficiência renal que necessitava de processo dialítico. A infecção se acentuou, e um quadro de instabilidade circulatória estava em andamento. Gradativamente uma anemia discreta acentou-se no decorrer do processo. Ciente do que ocorria, sua médica discutiu com ela diversas vezes a possibilidade de hemotransfusão, sempre rechaçada, baseada no princípio por eles defendido (ver http://watchtower.org/t/rq/article_12.htm e http://pt.wikipedia.org/wiki/Testemunhas_de_Jeov%C3%A1_e_a_quest%C3%A3o_do_sangue). Em alguns momentos ficava a impressão, para a profissional, de que a paciente quase concordava, mas mudava de postura quando os familiares, também Testemunhas de Jeová, chegavam. A situação clínica agravou-se, e a vida da mulher passou a correr risco imediato. Dentre uma série de medidas clínicas, foi conseguida uma autorização judicial para a realização da transfusão. Esta foi realizada após a sedação da paciente, sem sua permissão, mas de forma delicada e atenciosa. Junto com as demais medidas, a paciente recebeu alta algumas semanas depois. Após um ano, a profissional é denunciada ao Conselho Regional de Medicina, assim como através de um processo civil.

Dentre os argumentos, é colocado que sua vontade não foi respeitada, assim como suas crenças pessoais. Em virtude da hemotransfusão, torno-se uma pária em sua comunidade, tendo sofrido sanções extraoficiais por parte de todos - na prática, encontra-se excluída.

Houve erro? da médica? do hospital? da justiça? da comunidade religiosa?

Uma vida foi salva, através do ato gerenroso de doadores anônimos que disponibilizaram parte de si mesmos para um outro anônimo. Também foi salva pela decisão médica complexa de diversas atitudes terapêuticas, incluindo a hemotransfusão (realizada em um quadro de insuficiência renal aguda e hemoglobina de 4 g/dl).

A paciente foi traída por sua médica, a quem comunicara sua decisão inabalável de não se submeter a um tratamento médico que discordava, tendo plena consciência das consequências de sua escolha, assim como da difícil situação que a equipe médica também ficava.

A médica optou por efetuar o tratamento médico amparada pela legistação do país, assim como por uma ordem judicial expressa. Todo o ordenamento jurídico nacional não autoriza a não-ação quando se é possível salvar a vida através de meios que não colocam outras em risco. Para evitar sofrimento adicional, a paciente foi sedada antes da instauração do processo de transfusão e comunicada do fato posteriormente.

A paciente foi vítima de uma ação pela qual não teve nenhuma responsabilidade, e contra a qual foi impossibilitada de reagir.

A sua comunidade de fé, traindo os princípios de amor ao próximo, solidariedade aos que sofrem e são oprimidos, perdão recíproco e graça absoluta, condenam a paciente ao ostracismo, marcando-a como indigna.

Sem entrar nas discussões da pertinência da posição anti-hemotransfusão das Testemunhas de Jeová (bastante particular) e do conflito entre fé e ordenamento jurídico (bastante abrangente) - que merecem discussão pormenorizada em outro momento - parece que o único errado, em absoluto, sem desculpa, é a comunidade de fé da paciente. Pelas razões apontadas no parágrafo anterior: absolutização da lei (em um aspecto) e anulação da graça; anulação da possibilidade do perdão; condenação por atos que não foram praticados, mas sofridos.

Quantas outras situações não são semelhantes em várias comunidades de fé?

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