domingo, 26 de dezembro de 2010

Valores do Reino e o mundo não-cristão

Eduardo Ribeiro Mundim

Política é o nome pelo qual o relacionamento entre as pessoas, quando o assunto é o estabelecimento de regras para as suas relações mútuas, é chamado. Enquanto sociedade, é necessária uma definição de papéis sociais, financiamento das atividades que a todos beneficiam (infraestrutura de saneamento básico, por exemplo), normas de comportamento e de punição.  Este acordo social precisa ser alinhavado porque os desejos individuais são discordantes, as visões de mundo são diferentes, as percepções das distorções variadas e as propostas de soluções, múltiplas. E não é possível ao homem viver isolado dos demais, pois nem na assim chamada idade da pedra isto acontecia. E a vivência de todos como eremitas acarretaria o fim da espécie humana.

Política é uma atividade onipresente, que se inicia no microcosmo (relacionamento em condomínios, por exemplo, onde existe a figura do síndico) e se estende ao macro - seu ápice hoje seria o secretário-geral da Organização das Nações Unidas. Perto do microcosmo, está o relacionamento dentro de uma igreja (onde há eleições para oficiais, diáconos e presbíteros), intradenominacional (onde as igrejas de certa denominação se reúnem em assembleia, concilio ou sínodo) e interdenominacional (onde a face mais visível foi, nas décadas passadas, a Confederação Evangélica Brasileira, mais recentemente a AEvB - Associação Evangélica Brasileira e sua sucessora, a Aliança Cristã Evangélica Brasileira [1]).

Política, portanto, é uma atividade inerente à condição de ser um humano - exceto àqueles que se refugiam solitariamente em cavernas. Curiosamente, não vejo maiores questionamentos sobre o cristão e seu envolvimento político quando se trata de sua igreja local ou denominação; ou mesmo condomínios. Mas quando se trata do Estado, há, grosso modo, três possibilidades [2].

O cristão pode ignorar a política secular. Ao adotar esta atitude, ele diz, explicitamente, que o Reino de Deus não tem nada a dizer ao relacionamento entre as pessoas não cristãs, que Deus as abandonou à própria sorte (se como castigo, ou descaso, ou cansaço, fica em aberto) e o Evangelho não tem aplicação prática para os pequenos dramas cotidianos.

O cristão pode submeter-se, completamente, à política secular. Desta forma, ele diz, explicitamente, que o Reino de Deus é menor que o mundo caído, com uma ética de menor valor e pior qualidade, e que somente terá significado em um futuro distante. Tal futuro distante assemelha-se aos dos contos de fada, ou às estórias do cinema, pois que futuro pode haver se não há relevância hoje?

O cristão pode expor sua opinião, calcada na análise da realidade através de todas as ferramentas disponíveis (como a sociologia, a biologia, a filosofia, a matemática, a linguística, etc) e confrontada esta realidade com a vontade de Deus expressa nas Escrituras. Esta conclusão pressupõe um cuidadoso trabalho de interpretação bíblica e contextualização, não podendo ser feito às pressas. Esta conclusão também pede um debate entre os cristãos, pois a Igreja trabalha em conjunto, e não de modo isolado. Desta forma, o cristão afirma, explicitamente, que é sal da terra e luz do mundo: diz ser portador de uma ética superior - ainda que, frequentemente, não viva segundo ela. Mas, pecador humilde que é, reconhece estar longe do ideal, e chama os não cristãos a trilhar o mesmo caminho com ele.

Quando o cristão resolve colaborar na política secular, há dois modelos: imposição e confronto.

Imposição foi o que Constantino iniciou no Império Romano, tornando o cristianismo religião oficial - um trabalho bem feito do Demônio. A igreja foi tola o suficiente para levar avante na Idade Média ocidental, impondo os padrões do evangelho indistintamente a todos os cidadãos. O resultado, consequência de uma série de fatos (baixa educação popular, clero despreparado, clero não cristão, dentre outros), foi uma sociedade culturalmente cristã e, na prática, pagã: as guerras entre os diferentes reinos cristãos, as cruzadas, a inquisição, etc. As consequências permanecem até hoje: os árabes com um inconsciente coletivo de massacres perpetrados por cristãos no passado (e atualizado pelo colonialismo dos séculos XIX e XX), desprezo pelo clero, igrejas vazias transformadas em qualquer outra coisa...

O confronto é o preceituado no Sermão da Montanha, analisado por John Stott com o provocante título de Contracultura Cristã [3]. A Igreja é chamada a ser uma cultura que confronta aquela na qual está inserida, não pelas palavras, mas pelos atos. Não foi assim na igreja em Jerusalém?

A imposição dos valores do Reino a uma sociedade não cristã (e desconheço qualquer sociedade cristã, ou seja, constituída por 100% de cristãos por opção, e não culturais) traz uma série de problemas, de éticos a teológicos:
- é compatível com o ensino bíblico impor a quem não deseja, ou para quem não há nenhum sentido perceptível no seu horizonte, uma ordem a ser cumprida onde a justificativa não está no bem comum, mas no cumprimento de ordem divina?
- a Igreja não é Israel!!!
- os valores do Reino somente são significativos para aqueles que neles creem. Impor um valor, através da força policial, a quem nele não crê somente traz violência e violação do mesmo valor
- os cristãos, que lutam para impor a si mesmos estes valores, o fazem com boa dose de renúncia pessoal (sofrimento), pois, por amor a um Deus que os ama, querem ser como Ele deseja que sejam. Paulo deixa bem claro que as obras da carne são para serem deixadas para trás (atitude consciente) e suas cartas à igreja em Corinto mostram como aquela comunidade tão rica de dons espirituais e tão abençoada e perdoada era imensamente pecadora, a ponto de fazer um testemunho ao contrário. Como nós, entre outras atitudes, foram aos tribunais seculares resolver disputas internas! Como impor a alguém um processo de santificação quando ele não é desejado? Nossos pastores já não foram fonte suficiente de escândalos? Nossos políticos evangélicos são, todos, genuinamente cristãos ou apenas eleitoralmente? O termo "abuso espiritual" não tem sido fonte de livros e artigos?
- não há, nas Escrituras, mandamento para que os valores do Reino sejam impostos a quem quer que seja. Eles devem ser ensinados com toda a perícia e empenho, mas não há ordem para sua imposição a quem quer que seja. Incluindo ao cristão apóstata.

O confronto, quando a Igreja se apresenta como sociedade alternativa, que, inclusive, pune os seus com a justiça necessária [4], demonstra, na prática do dia a dia, a começar pelos pequenos conflitos, os valores do Reino. Estes, por serem basicamente o amor altruísta, podem seduzir aqueles que assim o desejam ser (na perspectiva arminiana) ou aqueles predestinados para tal (na calvinista), pelo valor que tem em si, única e exclusivamente. A lógica dos valores do Reino pode, e deve, ser traduzida em linguagem não cristã, com argumentação calcada em outros campos do conhecimento humano que são aceitos, pelos não cristãos, como fonte de conhecimento. Usar a bíblia como fonte não tem sentido no diálogo político, exceto se o propósito for a proclamação do Evangelho.


[2] Matos AS. Cristãos e política: uma relação imprescindível. Revista Ultimato.... disponível em http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/327/cristaos-e-politica-uma-relacao-imprescindivel
[3] editado no Brasil pela ABU Editora (http://www.abueditora.com.br/livros.htm)
[4] não é esta a queixa das vítimas da pedofilia, ou do abuso espiritual, de que os responsáveis não são punidos na proporção do crime cometido?

corrigido em 14/06/13

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