Cena 1: casa de cômodos amplos, paredes esburacadas, retalhos pendurados nas janelas tentando preservar a intimidade e o calor durante as noites frias, sem luz elétrica. Crianças são ali abrigadas, feridas, muletas como pernas. A lei é feita por aquele que tem armas e homens ao seu comando. O único adulto do local poderia ter fugido mas não o fez. O "senhor da guerra" visita o local mensalmente, com uma quantidade insuficiente de dinheiro, a única fonte de sustento para elas. Como preço, leva uma consigo, que nem sempre volta. Caso lhe fosse recusada a "contribuição", levaria dez e não deixaria nada em troca. Opções: recusar o auxílio e resistir; espalhar as crianças pela região, na esperança de que alguma seja abrigada.
Cena dois: um caminhão com refugiados da guerra na fronteira entre dois países. Na carroceria coberta, um bebê e sua mãe, um pré-adolescente e o pai, diversos passageiros solitários. O motorista arrecadou US$5.000,00 por cabeça, grande parte para subornar a guarda ao longo do caminho. O militar exige, além do dinheiro, meia hora com a mãe do bebê, "lá atrás do posto". O marido petrificado não reage; outro passageiro levanta-se e a defende. O tiro só não sai devido a chegado do oficial superior, que autoriza a partida.
Cena 3: o país encontra-se em plena revolução. O Estado aniquilado: economia desorganizada, guerra civil, falta de estrutura burocrática eficiente, fome em várias regiões. Em muitas, neva. O canibalismo torna-se o único meio de se alimentar em alguns grotões; tabernas oferecem carne de crianças no cardápio.
As duas primeiras cenas são da novela "O Caçador de Pipas", de Khaled Hosseini; a última, descrita por Elio Gaspari, na Folha de São Paulo de 27/01/08. Será que o autor exagerou para turbinar as vendas do livro? Será que o historiador não distorce os fatos? Os 2 primeiros, a invasão soviética e o regime talibã; o último, os primeiros anos do comunismo. Citando um dos personagens da novela, a recusa em acreditar nos fatos é uma demonstração de que reconhecemos neles verdade.
São as pessoas envolvidas destituídas de ética? Não parece, já que ética é um conjunto de valores que norteia as atitudes - portanto, não é possível pessoa a-ética. Existe aquela que não tem a mesma ética que a minha.
O talibã e o russo usam seus interesses pessoais como guias de suas atitudes, reforçados pelo poder bruto das armas e pela absoluta falta de sim-patia. O defensor sim-patisa e está disposto ao auto-sacrifício. O diretor do orfanato aceita uma carga para que a maior parte de crianças sejam salvas, mesmo ao preço da vida, total ou parcial, de alguns. Quais as opções ao canibalismo? será a morte comunitária por solidariedade superior à própria vida?
Não é o objetivo atual analisar cada uma dessas situações, mas usá-las, talvez de forma injusta, para iniciar uma reflexão: quando um princípio ético / bioético é aceito, que tipo de sociedade ele está formando? Quais as conseqüências práticas de sua adoção?
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