quinta-feira, 18 de novembro de 2010

É NECESSÁRIO PREOCUPAR-SE COM A LIBERDADE RELIGIOSA NO GOVERNO DA PRESIDENTA DILMA?

Sandro Amadeu Cerveira


Em seu primeiro pronunciamento como presidenta eleita, Dilma Roussef fez questão de enfatizar que zelará pela liberdade religiosa no país. Fiquei imaginando o que os observadores externos ficaram pensando desse compromisso.  Afinal o Brasil não é uma democracia? A liberdade religiosa nesse país não esta garantida?
 
De fato, apesar de jovem, nossa democracia político-institucional já pode ser considerada consolidada. A discussão sobre transição democrática se desloca cada vez mais para os estudos históricos e o debate na ciência política sobre a consolidação da democracia, tão intenso nos anos 90, cede lugar às pesquisas sobre as questões da qualidade de nossa democracia. Salvo para os ainda acometidos da síndrome de colono nossas instituições democráticas têm se mostrado de forma geral  robustas e eficazes no enfrentamento dos desafios próprios de uma sociedade moderna.
 
No que se refere à relação igrejas–estado o Brasil pode ser considerado dos mais avançados, com um regime de separação de Estado e Igreja sem dispositivos jurídicos e políticos particulares à Igreja Católica. A concordata Brasil-Vaticano referendada recentemente pelo Congresso brasileiro pode ser considerada um retrocesso em relação a essa tradição isonômica, mas é preciso lembrar que a aprovação só aconteceu após acordo com a bancada evangélica em troca da extensão das prerrogativas as demais confissões. Comparado com a maioria dos países latinoamericanos é correto ainda dizer que o arranjo brasileiro contribui para a igualdade de direitos entre as diferentes confissões religiosas reduzindo as possibilidades de discriminação religiosa estatal.
 
As igrejas também não podem se queixar do tratamento recebido durante o governo Lula. Apesar do terror disseminado nas eleições anteriores, igrejas não foram fechadas, não foi instituída nenhuma religião civil satanista, padres não foram obrigados a casar divorciados e os religiosos professos não foram discriminados no governo; pelo contrário , os evangélicos, por exemplo, nunca participaram tão ativamente em um governo federal. Marina Silva é agora talvez o nome mais famoso, mas é preciso não se esquecer do papel e destaque de Benedita da Silva, Marcelo Crivela, Magno Malta, Gilmar Machado, Walter Pinheiro entre outros nomes respeitados por sua fé e trajetória política.
 
De onde vem então a necessidade de desfazer esse medo da perda da liberdade religiosa? Pura fantasia? Delírios persecutórios? Creio que não.
 
Desconfio que os líderes religiosos saibam muito bem que nos últimos anos não houve nenhuma ameaça real a liberdade religiosa no sentido de perseguição ou discriminação religiosa por parte do Estado. Acredito que a questão é outra, ou melhor, são outras.
 
A chave talvez esteja no uso nos diferentes sentidos que o termo "liberdade religiosa" pode assumir em distintos contextos. Sob este termo abriga-se uma série de questões relativas a interesses e valores caros ao campo religioso que (como mostrou o final do primeiro turno destas eleições) não podem ser ignorados impunemente. Partindo-se do pressuposto que interessa às instituições religiosas sua manutenção e crescimento aponto dois aspectos que considero cruciais.
 
O primeiro tem a ver com a preocupação com as facilidades e obstáculos que o poder público possa colocar ao exercício da religião e a busca por novos adeptos. Podemos dizer que há aqui uma dimensão passiva do conceito de liberdade. Em outras palavras liberdade religiosa rima com liberdade de e no mercado religioso. No Brasil, devido a uma série de fatores, as igrejas competem pelos fiéis em uma espécie de mercado religioso aberto. Não uso o termo mercado no sentido comercial ou pejorativo. O que quero enfatizar é que ao contrário de outros países onde uma ou poucas igrejas monopolizam com respaldo político e jurídico o campo religioso , no Brasil temos um cenário de verdadeira competição religiosa pluralista.
 
Os líderes religiosos sabem o quanto essa liberdade lhes é favorável  , assim como sabem que é na esfera política que esse arranjo pode ser mudado ou preservado, diminuído ou ampliado. Os debates no Congresso sobre o novo código civil e a lei de criminalização da homofobia que uniram católicos e evangélicos , e sobre a concordata com o Vaticano, que os dividiu , são exemplos da importância da política para a manutenção da "liberdade religiosa".  Neste aspecto a defesa e a proposição de leis "laicistas" que contribuam com a isonomia em relação aos católicos (caso do debate em torno da concordata com o Vaticano) parecem incrementar a liberdade religiosa; por outro lado quando uma lei igualmente laica afirma direitos de outras minorias que possam de alguma forma, gerar empecilhos a pregação religiosa (caso da PL 122) isso é percebido como limitação da liberdade religiosa.
 
O segundo ponto associado ao primeiro, embora distinto, têm a ver com o desejo e a expectativa dos grupos religiosos de influírem na sociedade na qual estão inseridos , em particular no que se refere a temas morais. Nesse sentido o alinhamento é distinto. Católicos, evangélicos e espíritas parecem convergir em temas morais polêmicos tais como aborto, união civil de pessoas do mesmo sexo, eutanásia, experiências com células tronco entre outros. Neste caso  , liberdade religiosa significa liberdade para influir no processo legislativo evitando-se ou criando leis coerentes com seus valores.
 
Se os valores religiosos vão prevalecer na produção de leis relativas à família, vida, corpo ou se posturas mais laicas serão vitoriosas não caberá a presidenta decidir sozinha. Cabe à sociedade discutir estes temas e em última instância ao poder legislativo deliberar. O debate é urgente e o caso da descriminalização do aborto é sintomático. Durante a campanha presidencial houve um falso debate, ou melhor, nenhum debate e poucos ficaram sabendo, por exemplo, que são raras as igrejas evangélicas que subscrevem ipis literis a posição católica sobre o tema.
 
Se as palavras da presidenta eleita significam que o Brasil manterá o atual arranjo político jurídico que está na base do pluralismo religioso (e nunca houve qualquer razão para se imaginar algo distinto) então os religiosos estão seguros e devem mesmo comemorar. Na verdade todos aqueles que independentemente de sua crença ou falta dela acreditam que a liberdade de fé e consciência é um direito democrático fundamental devem estar felizes com o compromisso reiterado. Caberá a cada grupo religioso aproveitar as oportunidades para divulgar suas crenças e valores  , lembrando sempre que se esse direito não for garantido aos demais grupos ele também não lhes servirá de nada.
 
De forma similar , se as palavras de Dilma reconhecem e visam respeitar a liberdade de participação política dos que defendem posições coerentes com seus valores religiosos na arena política então também não há motivo de preocupação. Isto é inerente ao sistema democrático. Há sim que se preocupar com a qualificação do diálogo e as estratégias de embate. Nem Deus, nem o "Estado Laico" são argumentos em si mesmos e é preciso discutir caso a caso sem desqualificações a priori. Será preciso que os defensores de valores religiosos e laicos também entrem na disputa aceitando que o resultado final é mesmo incerto. Nas palavras de Adam Przeworski "Ama a incerteza e serás democrático". 
  
 


* O Reverendo Sandro Amadeu Cerveira foi pastor titular da Segunda Igreja, atualmente pastor colaborador, é professor universitário, com formação em Teologia pastoral, graduação em História, mestrado em Ciência Política (UFMG) no momento encontra-se na fase final do seu doutorado em Ciência Política também pela UFMG.


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