Dizer que vivemos numa sociedade hedonista que cultua o corpo e a beleza física como o fim supremo já virou lugar comum inclusive na boca daqueles que gastam boa parte de seu tempo e recursos em academias e "Estetic Centers".
Fico sempre intrigado com esses paradoxos. Os mais velhos (como eu) lembrarão que o livro predileto das misses foi durante um bom tempo "O pequeno príncipe". A história, que tem como cenário um deserto, fala de amor, conquistas, escolhas, rituais e até da morte. Pois esse livro-cabeça era frequentemente mencionado por lindas representantes de seus estados e países em meio a um julgamento que de forma alguma pretendia descobrir sua "beleza interior". Talvez a preferência das misses de então pelo livrinho de Saint-Exupéry não fosse apenas jogada de marketing. Quem sabe esse pioneiro da auto-ajuda já não era um grito por um pouco mais de alma?
Hoje a coqueluche (inclusive internacional) é Paulo Coelho que, desconfio, atende de alguma forma a essa demanda por mais alma. Mas e nós cristãos? Ainda acreditamos que, como o apóstolo Paulo, a piedade tem imenso e eterno valor enquanto o exercício físico tem pouca serventia (1 Timóteo 4:8)? Não duvido de que haja consenso entre os cristãos sobre o valor da piedade. O problema é: que sentido atribuímos a essa bela palavra?
Alguns sinais recentes (barulhos e silêncios) vindos do mundo religioso brasileiro parecem indicar que, para nós cristãos, a piedade se resume ao ódio ao mundo. Isso não é novo, mas não deixa de ser impressionante ver líderes e liderados evangélicos e católicos ostentando com orgulho um discurso raivoso e prenhe de ódio contra o que consideram as obras do príncipe deste mundo: o diabo.
Em alguns casos ele, o "Não-sei-que-diga", aparece com voz gutural e gestos grotescos em meio a sessões de exorcismo televisionado como parceiro de cunhadas, amantes, sogras assim como concorrentes e desafetos que se utilizam dos serviços das religiões de matriz africana no esforço de "atrapalhar os caminhos", "matar" e "destruir a vida dela". Após o show o "encosto" é humilhado, xingado, amarrado e, só no ato final, expulso daquele corpo que não lhe pertence.
Em outros o "Cramulhão" aparece de terno ou tailleur na figura de políticos comprometidos com alguma conspiração internacional (atualmente gay, comunista ou muçulmana) cujo objetivo é "acabar com a liberdade religiosa no Brasil e no mundo" implantando o "império da iniquidade". Nestes casos, como é fácil odiar os políticos, alguns chegam a espumar em meio a frases de efeito e bravatas virulentas. Diferentemente do primeiro caso, não raro ao invés de expulsar "o coisa ruim", faz-se alguma aliança com um "arrenegado" de outro partido ou grupo político. Poderia ainda citar os video games do mal , as roupas com símbolos satânicos, os desenhos animados, mas de qualquer modo a marca desta visão de piedade é a mesma: o ódio, a raiva o destempero e a violência verbal contra os "instrumentos" do "Cão".
Com isso não quero dar a entender que tudo são flores e não que se deve fazer escolhas com base em nossa fé e valores; minha ênfase visa chamar a atenção para o perigo de fazer dessas coisas o fim da nossa fé. A sutileza da estratégia maligna é impressionante, pois independentemente do objeto do ódio (inclusive pode ser o próprio "Galhardo") aquele que se deixa tomar pelo ódio e faz dele seu motor já se inclina para o "lado sombrio".
O discurso e a prática de Jesus sempre foram marcados por outro tipo de motivação: o amor.
Isso mesmo: o Senhor sempre apostou nessa "colinha" frágil, enigmática, volátil, mas que sempre sabemos quando ela falta.
Será mesmo necessário repetir? "Amarás o Senhor teu Deus... amarás o teu próximo". Quem não ama não conhece a Deus. É preciso dizer o óbvio? Quem cultiva o ódio em vez do amor se afasta de Deus. Ponto. Não importa o objeto do ódio, importa que fomos tomados por ele. Em um mundo que busca um pouco mais de alma é preciso lembrar que não basta por mais alma no corpo, é necessário por mais amor na alma. Do contrário seremos almas obesas de rancor e ressentimento.
Os cristãos que focaram no amor como virtude central de sua fé frequentemente foram alvo do discurso raivoso inclusive de outros cristãos muito preocupados com a "pureza", com os "bons costumes", com a "nossa cultura" e assim por diante. Vide a maneira como o próprio Jesus foi tratado por seus contemporâneos moralistas, ou como os quakers pacifistas e abolicionistas foram tratados ou ainda os irmãos anabatistas que se recusaram a pegar em armas contra "os infiéis".
Será que o sopro do Espírito precisará encontrar outros cenáculos mais receptivos do que a igreja que se diz do Senhor?
* O Reverendo Sandro Amadeu Cerveira além de pastor titular da Segunda Igreja é professor universitário, com formação em Teologia pastoral, graduação em História, mestrado em Ciência Política (UFMG) no momento encontra-se na fase final do seu doutorado em Ciência Política também pela UFMG.
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