quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Cuidado, indígenas na pista!*

Data da impressão: 24 de setembro de 2008

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Colunas — Da linha de frente

Bráulia Ribeiro

Tenho vivido um momento tão surreal, que às vezes me belisco para sentir se é verdade ou se é um sonho absurdo. Em meus últimos artigos tenho mais filosofado teologias que escrito sobre o que se passa ao meu redor. Porém, esta (des)realidade que nos cerca tem de se tornar conhecida, pois não se refere apenas a mim ou à missão em que trabalho, mas a todos os brasileiros. Estamos todos sob o mesmo governo e, supostamente, sob o mesmo estado democrático e de direito. 

A revista "Carta Capital" publicou, no final de julho, uma reportagem caluniosa em que acusa a JOCUM de vários crimes. A matéria é típica de um momento em que a verdade é comprada e moldada para servir a interesses partidários e oligárquicos. Baseia-se, aparentemente, em um dossiê criado por um antropólogo da FUNAI, que se preocupa em elencar uma série de mentiras em formato pseudo-acadêmico. Ninguém investigou, perguntou, nem viu. Mas uma mentira repetida muitas vezes passa por verdade.
Estamos com nosso telefone grampeado, e-mails violados e a sensação de que a qualquer momento a Polícia Federal pode invadir nossa casa atrás de provas de uma possível conspiração contra o estado brasileiro. 

Desde que tiramos dois bebês Suruwahá da área em 2005, para tratamento médico, nossa situação política se complicou muito. Ousamos desafiar o governo em cadeia nacional de televisão, lutar pela vida e não nos conformar com regras que mantêm os indígenas num cárcere paleolítico, impedidos de receber até o simples tratamento médico, direito de todos os brasileiros. 

A questão indígena vai além das políticas periféricas e, principalmente, desta guerra religiosa e ideológica que é usada contra as missões. Chegamos ao cerne quando debatemos quem é o índio. Ele é o "nobre selvagem" de Rousseau, o herói de Alencar? Um ser primitivo preso num lugar remoto do processo evolucionista? A nossa legislação presume a incapacidade do índio de tomar decisões ou entender a dinâmica da sociedade. A maioria das tribos brasileiras se encaixa na descrição de semi-integrados e, de acordo com a Constituição, estão sob a tutela legal do governo. O Estatuto do Índio de 1988 prevê que para obter cidadania plena o indígena tem que pagar impostos e trabalhar em funções "normais" que sirvam à sociedade brasileira. Ou seja, índio só é gente, só é cidadão brasileiro pleno quando deixa de ser índio. 

Como sociedade brasileira, escolhemos para os indígenas o caminho mais fácil para nós. Escolhemos fingir que não os vemos, falar deles no tempo passado, parte de uma história da qual nos arrependemos. Escolhemos delegar a um órgão governamental, ou a um grupo de missionários, o que deveria ser responsabilidade de todos nós.
 
Quando a igreja pensa o ser humano, ou pensa a sociedade alternativa com o sonho cristão, este sonho deve incluir todas as nações, todos os povos. Sem todos não somos completos. Sem todos os povos brasileiros o Brasil não é o Brasil. Que o impasse atual nos ajude, como igreja e missão, a construir um país melhor, onde os indígenas não sejam tratados apenas como animais na pista, mas como parte essencial de nossa identidade.

Nota
* Placa numa rodovia do Paraná. 


Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, é autora de Chamado Radical (Ed. Ultimato). braulia_ribeiro@yahoo.com
 
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