terça-feira, 30 de setembro de 2008

Fé que Pensa, Razão que Crê

Ciência e fé tem uma longa história, nem sempre tranquila. Ambas são formas de conhecimento, e ambas são essenciais para a constituição de um sujeito saudável. Ambas são vítimas de preconceitos mútuos, e ambas teimam, ocasionalmente, em invadir o terreno alheio.

 

Neste momento, nenhuma fé religiosa específica será analisada dentro do tópico proposto. Contudo, falo a partir da fé cristã de orientação protestante - um termo menos ambíguo na sociedade brasileira atual que o evangélico.

 

Igualmente, nenhuma ciência específica será focada, mas o será partindo da experiência pessoal como médico endocrinologista, que participa há uma década de um processo de formação de especialistas na área.

 

Ciência e fé compartilham, provavelmente, mais semelhanças que dessemelhança. Ambas observam o mundo, tem pontos de partida específicos, propõe perguntas e respostas, compartilham de incompreensões.

 

Observar a criação é uma questão de sobrevivência desde o alvorecer da humanidade. Como saber a época do plantio? como caçar sem conhecer os hábitos da caça? como construir abrigos sem conhecer a resistência dos materiais? como tratar das feridas e dores sem observar o efeito de cada tentativa?

 

Ciência nada mais é que executar as observações de modo sistemático, detalhado, registrado. Um benefício direto é aplicado no conforto, na saúde ou em outra área; ou um benefício indireto, através da proposição de uma idéia (hipótese) que necessita ser comprovada ou descartada. É uma atividade democrática, pois como é registrada nos detalhes, pode ser repetida por quem o desejar (e se capacitar para tal), colocando os resultados anteriormente obtidos sob nova avaliação.

 

Mas não é possível observar sem ter algumas idéias preconcebidas sobre aquilo que é escrutinado. A mais básica é que a realidade é passível de apreensão pelos cinco sentidos. Parece óbvio, mas quem a "provou cientificamente"? A interface homem / natureza que eles são não pode ser vítima de ilusão de ótica (a miragem no deserto) ou de um distúrbio de sensibilidade (como a boca anestesiada pelo dentista)? Este é um exemplo de pressupostos sobre os quais a observação sistematizada da natureza, o processo científico, se ergue. Pressuposto não provado, mas aceito como verdadeiro. A ciência também crê!

 

Crer é uma necessidade humana básica, pois sem ela não há sentido na vida, e o ser humano não suporta a ausência de sentido (os torturadores modernos bem o sabem). Não importa a crença, mas o fato que existe. Não é necessário acreditar na existência de um ser superior ou supremo, mas pelo menos em um conjunto de idéias que signifique a vida. O stalinismo negava a existência da divindade, mas colocava uma ideologia para dar sentido às existências privada e coletiva.

 

Mas não basta crer para dar sentido. O sentido tem de ter um mínimo de coerência, caso contrário não subsistirá. O conjunto de crenças precisa se articular em um todo orgânico que se sustenta frente às intempéries. A fé também pensa!

 

A caminhada destas duas atividades humanas no mundo ocidental se mistura com a busca pelo poder, tanto sobre o conjunto social (o político) quanto sobre a consciência individual (a religião e principalmente a moral). A brecha que possibilita isto é a extrapolação, o salto criativo do cientista em busca de uma nova idéia, ou da articulação de antigas idéias que possibilita ver o mundo de modo completamente novo, trazendo modificações (positivas, sempre se espera). A extrapolação a partir do texto sagrado, que busca transcender uma visão mecânica e desprovida de sentido pessoal que a árida descrição técnica provê.

 

A extrapolação científica inadequada é provar, ou não, a existência de Deus - ela é, em si, uma piada.

 

A extrapolação religiosa inadequada é determinar a idade do universo baseado nas Escrituras (pelo menos nas cristãs).

 

O campo mais ilustrativo da disputa, inadequada, de poder entre ambas está na controvérsia sobre as origens do homem e do universo. A face humana da questão é a biografia de Charles Darwin, atormentado entre o salto criativo proporcionado por suas observações e a criação religiosa, que insistia em uma interpretação literal de Gênesis capítulos 1 e 2. A face política é a condenação de Galileu por um tribunal inquisitorial por contrariar a teologia oficial da época.

 

O maior prejuízo para a questão fé e ciência que a controvérsia evolucionista trouxe foi reduzir a dupla ciência / fé, tão ampla, a apenas este aspecto. Baseado nele se decide acreditar em Deus ou negá-lo, aceitar o progresso científico ou descartá-lo. Todo reducionismo é escapista, incluindo este.

 

A fé tem de questionar sim a eticidade de condutas científicas, porque é sua missão constitutiva e, no caso da fé cristã, um imperativo. Onde estaria o controle sobre experimentos científicos em seres humanos se não houvesse uma crença (ou fé) no caráter especial do homem (mesmo que este caráter seja determinado exclusivamente pelo naturalismo)? A Declaração de Helsinki existiria? Os experimentos nazistas em campos de concentração teriam sido condenados?

 

A ciência tem de questionar sim a fé, porque enquanto atividade de observação, adota a dúvida como ferramenta de trabalho (como ferramenta e não como ideologia de vida). Pode existir cura de doenças através da religião sem comprovação científica da mesma?

 

Ciência e fé são atividades humanas radicais, mas que não podem ser fanáticas. Ambas são radicais porque a aceitação de uma premissa científica exclui aquela(s) que a contradiz(em), tornando possível uma linha de raciocínio e patrocinando uma linha de experimentos, negando voz a(s) outra(s), mesmo que haja nela(s) valor. Não é possível ser budista e mulçumano ao mesmo tempo; se for o somatório de ambos, não será nem um, nem outro, e negará ambos. Fanatismo é quando o cientista ou crente se recusa a ouvir o que o desafia e questiona, protegendo-se através de dogmas científicos ou de fé. Não ter resposta a uma nova questão não invalida uma tese acadêmica ou uma visão religiosa, mas frequentemente as fragiliza de alguma forma. Impor pela força uma visão religiosa ou científica talvez seja a maior demonstração possível de fanatismo por parte de um, ou de outro.

 

O próximo capítulo desta saga será escrito pela geração atual, chamada a fazer ciência crendo, e a crer fazendo ciência.

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