terça-feira, 2 de setembro de 2008

“Não podemos mais ignorar o sofrimento causado pelo infanticídio indígena”

[ Entrevista com o casal Márcia e Edson Suzuki ]

Apresentação: Eu, Márcia, sou carioca, tenho 44 anos e sou metodista. Sou bacharel em etnolinguística pela University of the Nations, Universidade da Jocum com sede no Havaí, e mestre em linguística pela UNIR (Universidade Federal de Rondônia). Edson é paulista, tem 45 anos e é batista. É formado em geologia e tem mestrado em linguística pela UNICAMP. Eu trabalho com povos indígenas desde 1982 e falo duas línguas indígenas, Sateré Mawé e Suruwahá. O Edson trabalha com indígenas desde 1986 e fala a língua suruwahá. Nosso trabalho na aldeia sempre consistiu de pesquisa linguística, elaboração de material didático e de registro dessas línguas, elaboração de ortografias e de projetos de educação diferenciada para as populações indígenas. Trabalhamos também na área de saúde, prestando socorro em situações de emergência e atuando como intérpretes para os órgãos do governo em expedições de vacinação e de tratamento médico.

Junto com tudo isso, procuramos viver e comunicar os princípios do Evangelho num contexto transcultural, testemunhando o reino e comunicando a mensagem de maneira culturalmente sensível, principalmente através da convivência.

Mãos Dadas: Vocês estão envolvidos numa luta em favor de crianças recém-nascidas indígenas que correm o risco de serem mortas pela família por razões como: deficiência física, gravidez fora do "casamento", etc. Quando isso começou? Por que vocês decidiram lutar por esta causa?

Casal Suzuki: Depois de anos convivendo com povos indígenas e conhecendo mulheres que passaram pela dor de ter que sacrificar uma criança, decidimos enfrentar de frente esse problema. Na verdade nos tornamos mais sensíveis para essa causa após adotarmos a indiazinha suruwahá Hakani. O drama da família dela, que culminou com o suicídio dos pais e com um irmão de 5 anos enterrado vivo, passou a fazer parte da história da nossa própria família. Não pudemos mais ignorar o sofrimento causado por essa prática e decidimos tomar posição ao lado de mães que desejassem salvar a vida de seus bebês do sacrifício.

Mãos Dadas: Vocês criaram a ONG ATINI. Quando ela surgiu e a que exatamente se propõe?

Casal Suzuki: Apesar de estarmos envolvidos há vários anos nessa luta, resolvemos oficializar as ações através da criação de uma organização específica de direitos humanos. A ATINI, como tal, é novinha – fez um ano nesse mês de setembro. A missão da ATINI é "erradicar o infanticídio nas comunidades indígenas brasileiras, promovendo conscientização, fomentando a educação e providenciando apoio assistencial às crianças em situação de risco."

Mãos Dadas: É certo usarmos o termo "infanticídio indígena" para a questão?

Casal Suzuki: Do ponto de vista legal, o termo não é apropriado porque infanticídio no Brasil se refere a recém-nascidos mortos pela mãe em estado puerperal. Mesmo assim, o termo infanticídio indígena vem sido usado informalmente para se referir ao assassinato de crianças indígenas praticado nas aldeias contra crianças que são indesejadas em suas comunidades. Como o termo assassinato é evitado nos textos antropológicos para se referir a esses casos, optamos seguir a mesma linha, respeitando a tradição da literatura indigenista

Mãos Dadas: Uma das críticas à luta de vocês é que quem deve decidir o que fazer diante destes casos de assassinatos de crianças indígenas são os próprios indígenas. Por isso, o Governo não poderia interferir, nem criar leis sobre o assunto. O que vocês acham disso?

Casal Suzuki: Essa é uma falsa questão que tem sido levantada por algumas pessoas para desviar o foco das discussões. Digo que é uma falsa questão porque levanta a hipótese de que nós estaríamos forçando os indígenas a mudar sua tradição. E nós não estamos fazendo isso. Nunca fizemos nem vamos precisar impor nada a eles. Todo esse movimento começou através da reinvidicação dos próprios indígenas, mães e pais que decidiram pelo tratamento médico de suas crianças, mesmo desafiando a tradição em suas comunidades. A iniciativa tem partido sempre deles, e a ATINI só interfere quando solicitada pelos próprios indígenas.

Quanto à lei Muwaji, ela deve atingir principalmente os funcionários que trabalham em áreas indígenas. Negar socorro a uma criança em situação de risco de vida já é caracterizado como crime de omissão pelo código penal. O que essa lei, do deputado Henrique Afonso faz, é reforçar essa posição. E ela vai um passo além ao tornar obrigatória a notificação dos casos de crianças em situação de risco, bem como a promoção de programas de educação em direitos humanos nas aldeias. A lei não criminaliza as mulheres indígenas, cuja inimputabilidade penal já é prevista pela legislação vigente. Mas ela força as pessoas que trabalham nas aldeias a prestar atenção no problema e oferecer ajuda às famílias, com o objetivo de evitar as mortes.

Mesmo que não seja votada, a lei Muwaji tem um papel simbólico muito importante. Ela está ajudando a quebrar o silêncio sobre essa questão – e isso em si já é muito positivo.

Mãos Dadas: Atini significa "voz" na língua suruwahá. O que os indígenas têm dito sobre a luta de vocês? Quem é a favor e quem é contra?

Casal Suzuki: Justamente porque a ONG surgiu a partir da voz das mães indígenas, nós decidimos chamá-la de ATINI. Nossa sociedade tradicionalmente não escuta a voz dos povos indígenas. Com a ATINI entendemos que essas vozes têm que ser ouvidas, mesmo quando são vozes dissidentes dentro de suas próprias comunidades. O que temos percebido, em diversas aldeias, é que os indígenas dessa geração não aceitam mais a prática do infanticídio, e que anseiam por alternativas para resolver os conflitos sociais que causam o infanticídio. Temos sido procurados por indígenas de diversas etnias, pais e mães que pedem ajuda para manter vivos filhos que deveriam ser sacrificados pela tradição cultural. Tudo o que eles querem é uma oportunidade para sair da aldeia com essas crianças para que elas tenham uma oportunidade de vida física, em alguns casos, e vida social em outros. Temos colhido inúmeros depoimentos, de membros de diversas etnias, de indígenas que não aceitam mais a prática do infanticídio e exigem ajuda do Estado para que consigam mudar essa situação. Por exemplo, um dos mais respeitados líderes indígenas do Xingu, Kotok Kamayurá, disse que "o tempo de enterrar crianças já passou, hoje precisamos de ajuda para criar todas essas crianças."

A vozes indígenas dissidentes têm sido poucas, mas vem de indígenas em situação urbana, que se distanciaram da situação real nas suas aldeias de origem, e que repetem a cantilena dos antropólogos de "respeito irrestrito às diferenças culturais". São, infelizmente, indígenas que estudaram, que sabem se mover em nossa sociedade, e que acabam sabendo se expressar melhor que o pessoal das aldeias.

Mãos Dadas: E Deus, o que ele tem dito a vocês sobre esta luta?

Casal Suzuki: O interessante é que entramos nessa luta sem planejar. Acho que nunca escolheríamos essa bandeira, justamente por causa da nossa história de uma vida inteira de "encarnação" junto aos povos indígenas. Mas Deus nos colocou no meio disso à medida que entendíamos que tínhamos que ser coerentes com o a mensagem que pregávamos. Como negar ajuda às mães indígenas que nos procuravam para salvar a vida de seus filhos, sem ser incoerentes com a mensagem do Reino? O que Deus tem colocado em nosso coração é o desejo de continuar caminhando em obediência, passo a passo. Só Ele sabe aonde essa obediência vai nos levar.

Mãos Dadas: Vocês são missionários evangélicos. Qual a missão de vocês?

Casal Suzuki: Somos missionários da JOCUM (Jovens por uma Missão), cujo lema é "Conhecer a Deus e fazê-lo conhecido". Eu, Márcia, sou também missionária designada pela Igreja Metodista, atuando na REMA – Região Missionária da Amazônia. Entendemos que o Evangelho é integral e que deve ser comunicado através tanto de palavras de amor quanto de atos de amor.

Mãos Dadas: Os números sobre mortes de crianças indígenas são confusos e sem concordância de todos. Vocês têm dados confiáveis?

Casal Suzuki: É muito difícil ter esses números, e inclusive essa é uma das tarefas da ATINI. Sabemos que ter números confiáveis é indispensável para qualquer luta. O que temos no momento são dados da FUNASA de Roraima e dados de uma pesquisadora da UNB sobre o Xingu. Só essas duas áreas indígenas dão conta de mais de 100 mortes por ano. Juntando isso com o que sabemos dos suruwahá e das informações que nos chegam de missionários, estamos falando no momento em pelo menos 200 mortes por ano. Mas sabemos que esse número deve ser muito mais alto. Precisamos trabalhar com os dados da FUNASA, com um número enorme de registros de morte por "causas indefinidas". A taxa de mortalidade infantil entre índios e não-índios registrou uma diferença de 124%, segundo o IBGE – precisamos saber a causa dessa diferenças, que se observa mesmo em povos onde as condições gerais de saúde da população são excelentes.

Mãos Dadas: Há heróis na luta contra o assassinato de crianças indígenas?

Casal Suzuki: Para nós, heróis são os pais e mães indígenas que têm coragem de desafiar a norma por amor de seus filhos. Temos conhecido mulheres indígenas que, apesar de vulneráveis dentro de suas próprias culturas, têm enfrentado sozinhas tradições milenares para manter vivas crianças indesejadas. Há o caso de Kamiru Kamayurá, por exemplo. Ela entrou na casa de um avô enfurecido e desenterrou com as mãos um bebê que ele havia acabado de enterrar. Era a terceira criança que esse avô enterrava. Ou outros haviam chorado debaixo da terra até que seu choro se calasse. Dessa vez Kamiru chegou a tempo e encontrou o menino ainda com vida. Ela adotou Amalé como filho e hoje vive conosco em Brasília.

Essas mulheres são as Sifrás e Puás dos dias de hoje, aquelas parteiras hebréias que desafiaram o Faraó para salvar bebês destinados à morte. Por sua coragem, a Bíblia diz que Deus "lhes fez bem".

Mãos Dadas: Há culpados pelo assassinato de crianças indígenas?

Casal Suzuki: Nós não estamos preocupados em encontrar culpados, mas o código penal brasileiro é claro quanto ao crime de omissão de socorro. Os pais e mães indígenas não podem ser penalizados numa situação como essa, por causa da própria inimputabilidade penal prevista na lei para eles. Mas qualquer outra pessoa presente e com conhecimento do risco de infanticídio deve procurar um meio de notificar as autoridades e fazer o possível para salvar a vida da criança. Essa intervenção deve ser feita sempre com muita sensibilidade cultural, com respeito e através do diálogo.

Mãos Dadas: Talvez, pela primeira vez, missões protestantes ganham projeção nacional e iniciam diálogo público por lutarem por direitos de indígenas. Está sendo difícil caminhar neste espaço tão abrangente e cheio de interesses diversificados? De onde está vindo a oposição e por quê?


 

Casal Suzuki: Sim, é difícil porque não fomos preparados para isso. Não sabemos como lidar com a mídia, não entendemos bem a dinâmica dos meios políticos, somos confrontados com diferentes visões do papel do Estado. Temos que nos mover num mundo onde são pouquíssimos os que vivem os princípios do Reino. A cada dia somos surpreendidos por manifestações de indignação e de raiva contra nós pelo que estamos fazendo. Não tínhamos idéia de que trabalhar com direitos humanos despertasse tanto ódio. Aos poucos estamos tomando consciência da luta ferrenha no mundo espiritual pela vida dessas crianças.

Mas, por outro, lado percebemos que as missões e as igrejas estão maduras e solidárias com essa luta. Recebemos manifestações de apoio e muita oração de todo o Brasil, de diversas denominações e organizações missionárias diferentes. Além disso, percebemos que a opinião pública é muito sensível à causa das crianças e tem empatia com os povos indígenas. Para o cidadão comum, a maioria dos brasileiros com quem conversamos, é óbvio que essas crianças têm direito à vida e que devemos fazer o possível para apoiar essas mães, independente de qualquer questão cultural. A repercussão de artigos como que saiu na VEJA deixam isso bem claro.

A oposição vem principalmente daqueles que tradicionalmente sempre se opuseram ao trabalho missionário realizado por evangélicos. São organizações católicas extremistas, antropólogos e indigenistas que não se preocupam com a legitimidade do que estamos dizendo. Eles não conseguem nos ouvir simplesmente porque sabem que somos missionários evangélicos. O preconceito faz com que eles questionem nossos motivos, nosso discurso, nossos métodos. E são justamente esses os representantes do pensamento relativista xiita, isso é, aqueles que confundem respeito à diversidade cultural com tolerância universal. Acham que tudo é possível em nome da cultura. Queria saber o que mais eles defenderiam em nome da cultura. Tortura, escravidão, mutilação feminina?

Mãos Dadas: De todos os personagens existentes, qual vocês destacariam como exemplo sobre o assassinato de crianças indígenas?

Casal Suzuki: A Muwaji Suruwaha. O caso dela é emblemático porque ela seria a mais vulnerável das mulheres, do ponto de vista social, cultural, econômico, etc. Mas justamente ela tem se levantado com coragem e tem influenciado mulheres indígenas do Brasil inteiro. A vida dela é um desafio àqueles que tratam das relações entre autonomia e vulnerabilidade. É uma celebração à capacidade humana de reagir, de reinventar, de ser sujeito de sua história. Você pode encontrar a historia dela no site (www.vozpelavida.blogspot.com  ).

Mãos Dadas: Como a Igreja, as associações e as organizações sociais evangélicas também poderiam lutar em favor das crianças indígenas? Há possibilidades e caminhos a seguir?

Casal Suzuki: Cremos que a Igreja terá um papel importante nessa luta, como teve na luta pela igualdade racial nos Estados Unidos e em outras lutas semelhantes. Acredito que Deus está dando uma oportunidade à Igreja, não só de pedir perdão aos povos indígenas pelo passado sangrento, mas de ir um passo além. É hora da reparação. E hora de oferecermos nossas mãos, nossos pés, nossas cabeças e nossos recursos para ajudar essas mulheres e homens que querem romper com esse passado de sacrifício humano. A ATINI precisa de gente, de voz, de espaço, de brinquedos, educação para essas famílias… muita coisa. As pessoas interessadas podem entrar no site para entender melhor como ajudar.

Mãos Dadas: Que oração vocês fariam a Deus diante desta luta? Que texto(s) bíblico(s) está(ão) sustentando vocês?

Casal Suzuki: Estamos aqui Senhor e nos ajude a não desanimar e desistir de lutar. Um dos textos que tem estado no nosso coração é Pv. 31.8, especialmente na versão Douay-Rhelms, que diz "Abre a tua boca a favor dos que não têm voz e pelo direito de todas as crianças destinadas à morte."


 

Mãos Dadas: Que valor tem a vida de uma criança?

Casal Suzuki: Com nossa filha descobrimos que uma vida não tem preço. Hakani, uma indiazinha suruwahá rejeitada pelo seu povo, mas cujo nome significa "sorriso", mudou nossa vida. Depois de ter escapado da morte, literalmente arrancada do túmulo, hoje ela enche nossa vida de alegria e nossa casa de sorrisos.

Entrevista concedida em outubro de 2007 para o assistente editorial da revista Mãos Dadas, Lissânder Dias. As perguntas foram respondidas por e-mail.

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Mãos Dadas Revista de Apoio aos que trabalham pela dignidade de nossas crianças e adolescentes. Caixa Postal 88 – Cep: 36.570-000 Viçosa MG Brasil cartas@maosdadas.net

 

Baixado de  http://www.maosdadas.org/arquivos/file/Recursos%20oferecidos/Entrevista_Suzuki.pdf  em 01/09/08

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