(Tg 4.1-10)
Escrito em 16/03/99
Não importando o seu credo, todo ser humano que se confessa religioso usa, de alguma forma e em alguma rotina (em situações ordinárias ou extraordinárias), uma prática que se pode denominar genericamente de oração. Na fé cristã, não se imagina o crescimento espiritual (ou seja, o assemelhar-se gradativamente a Jesus) sem a oração. Nas confissões não cristãs, esse objetivo já não existe (pois Cristo não é o seu centro), ainda que possa existir um semelhante (o fiel deseja tornar-se como imagina que seu deus seja).
Jesus sempre exigiu que seus seguidores orassem. Diversas instâncias do seu ministério foram registradas para que soubéssemos, hoje, a importância e o lugar dessa prática. Lembrando alguns:
1. certos feitos somente são alcançados com muita oração e jejum (Mt 17.14-20)
2. há certa atitudes aceitáveis no orar (Mt 6.5-8)
3. há um modelo de oração (Mt 6.9-15)
4. orar em circunstâncias de grande tensão/angústia ou de dramas pessoais (Mc 14.32-42)
5. Deus ouve as orações (Mt 7.7-11)
6. Deus ouve as orações realizadas no Nome de Jesus (Jo 14.13-14)
Tomando a prece sacerdotal em Jo 17, sem dúvida a maior oração do Senhor registrada, pode-se afirmar que a oração cristã é, sobretudo, um diálogo. Um diálogo estranho, é certo, pois um lado não usa, necessariamente, a mesma linguagem que nós; um diálogo de uma vida inteira, se lembrarmos quantas e quantas vezes os Evangelhos dizem "e se retirou para orar". A prece cristã não é, em nenhuma hipótese:
* uma troca, para se conseguir o que se deseja
* uma chantagem, para se obter um fim planejado
* uma manipulação, para se controlar o mundo em volta
Uma das regras hermenêuticas diz que uma doutrina bíblica não pode ser firmada com o uso de um único texto, sem apoio doutras partes das Escrituras. Um versículo (e o termo quer dizer pequeno verso) que lembramos freqüentemente, e fora de contexto, é Lc 11.9: "... pedi e dar-se-vos-á...". Quem sabe Tiago tinha em mente essa lição de Seu irmão quando escreveu sua carta aos judeus cristãos dispersos no seu tempo...
Faz parte de nossa humanidade caída (e teremos de conviver com isto por toda nossa vida até a única morte que sofreremos) desejos profundamente arraigados no nosso ser, que contrariam os propósitos e desejos do Pai. Tão perigosos que nosso aparelho psíquico os guarda em locais secretos, pois tememos, muitas vezes, as conseqüências de cedermos a eles. Tão atraentes que em muitas ocasiões os acalentamos, secretamente. Tão poderosos que apesar de serem trancafiados no nosso porão psíquico sua influência se faz sentir nas nossas atitudes, muitas vezes sem que nos apercebamos do fato.
A psicologia e a psicanálise esclareceram essa dinâmica, que os autores sagrados conheciam, e nomeavam de modo diverso. Para eles, a questão era "pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne. Eles se opõe reciprocamente, de sorte que não fazeis o que quereis" (Gl 5.17). Para as ciências psicológicas atuais, o "fundo do nosso coração" é chamado de "inconsciente", onde guardamos nossa memória. Há fragmentos que, por serem dolorosos/traumatizantes, são guardados "a sete chaves" (o termo técnico é "são recalcados"). Esse recalcado, por ser poderoso e/ou atraente, pode retornar disfarçado, através de sonhos, pensamentos, palavras ou atos.
Nossa conversão, em hipótese nenhuma, anula essa característica humana. Ela nos dá a chance de modificá-la ou de lidar com ela partindo de novas premissas.
"Pedi e dar-se-vos-á", e Tiago alerta "pedis, mas não recebeis, porque pedis mal, com o fim de gastardes nos vossos prazeres", pois "cobiçais e não tendes? Então matais. Buscais com avidez, mas não conseguis obter? Então vos entregais à luta e à guerra" (e Tiago estava falando a cristãos antes do ano 62 a.C...) Usando a gíria profissional, as orações em foco são feitas visando a satisfação pessoal moralmente inadequada (moral do ponto de vista da Revelação, não da sociedade) pois o fruto desse desejo é chamado de "amigo do mundo" e, portanto, "inimigo de Deus". O desejo é tão forte que Tiago usa expressões pesadas: "litigais e fazeis guerra" (em outra versão). É quase como se dissesse "matais para tentar obter o que desejais".
O contraste com o Pai Nosso, a oração modelo, é gritante. Nela somos ensinados a pedir, por ordem hierárquica:
1. que todos reconheçam a santidade de Deus (v. 9)
2. que o Reino dEle se instaure na Terra (v. 10a)
3. que a vontade dEle seja realizada em todo o mundo criado (v. 10b)
4. que tenhamos o necessário para viver hoje (v. 11)
5. que nossos pecados sejam perdoados condicionalmente (v. 12)
6. que fiquemos afastados das situações difíceis e de todo mal (v. 13)
Paulo lembra que "(a caridade) não procura o seu próprio interesse" (I Co 13.5). Por isso, Jesus não recrimina quando alguém solicita um milagre de cura para os outros (Mc 6.53-56), nem para si (Mc 10.46-52), mas rechaça a oração de Tiago e do "discípulo amado", que buscavam honras e glórias para si (Mc 10.35-45).
O que nos motiva a orar?
O que pedimos?
Por que pedimos?
O que podemos aprender sobre nós mesmos a partir de nossas orações e das respostas que temos?
Devemos ser críticos severos de nós mesmos, pois, em última análise, não temos nada a perder. Ou melhor, o que temos de perder é lucro: nossa autoimagem inflacionada na presença do nosso próximo e de Deus. Além do mais, temos a promessa de que "se confessarmos os nossos pecados, ele, que é fiel e justo, perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça" (I Jo 1.9).
* Quando oramos pela salvação de alguém, é por esse alguém ou é por nós? Que motivação egoísta pode (não significa que exista uma) estar nos movendo?
* Quando intercedemos pelos governantes pensamos nos benefícios que um governo justo traz a toda sociedade ou apenas esperamos obter benefícios?
* Quando pedimos pela saúde do nosso próximo é nele que pensamos ou na oportunidade de mostrarmos "como nosso deus é poderoso"?
* Quando rogamos alguma coisa não será por preguiça de correr atrás dela?
Contudo, nossa natureza é complexa o suficiente para termos, dentro de nós mesmos, desejos/sonhos ambíguos e contraditórios. Boas intenções estão, freqüentemente, maculadas por egoísmo. Acredito que devemos orar e discernir bem os propósitos do nosso coração, e aproveitar a oportunidade de expô-los ao Pai, como parte do nosso processo de santificação e crescimento espiritual.
Longe de qualquer um de nós nos constituirmos juízes da oração alheia. Sejamos, unicamente, juízes de nós mesmos e oremos: "Senhor, ensina-nos a orar".
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