sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Os excluídos do caminho de Jericó e o infanticídio indígena

Ronaldo Lidório

Erramos ao pensar que decisões são tomadas com base em nossa vontade. Apesar do desejo humano de exercer papel fundamental em nossas escolhas, tal sentimento não é forte o suficiente para gerar e manter iniciativas complexas — muitas vezes nem mesmo as mais simples. 

Decisões são tomadas com base em princípios. Aquilo que cremos e que nos impele a manter uma posição, por mais desconfortável ou improvável que pareça. As decisões mais duradouras são tomadas sob a motivação da Palavra de Deus. 

Lucas nos apresenta quatro personagens distintos no capítulo 10. O necessitado caído ao longo do caminho com feridas e dores era a figura de um judeu, assaltado e inconsciente entre Jerusalém e Jericó. Um sacerdote viajava por este caminho e provavelmente iria cultuar a Deus na sinagoga de Jericó. Possuía em sua bagagem um sermão pronto, usava suas vestes cerimoniais e tinha uma agenda a cumprir. Era seguido por um levita que talvez também caminhasse para Jericó para o mesmo evento cúltico. Se assim fosse poderíamos encontrar em sua bolsa o repertório de cânticos de adoração e palavras de exortação a uma vida mais santa. Talvez até pensasse em expressões poéticas que levassem o povo a buscar ao Senhor com mais intensidade. 

Passava por ali um samaritano. Possuía todos os motivos sociais para fechar os olhos, pois o homem caído era um judeu, intruso em sua terra e opressor do seu povo. Poderia ser esta a oportunidade de vingança, mesmo que silenciosa. Também não cairia bem a um samaritano ajudar um judeu. Mas ele se compadeceu e decidiu ajudar. Não parou puramente pela vontade. Talvez nem tivesse vontade de parar. Parou por seus princípios. Assim ele salvou o ferido, o que nos leva a entender que algumas iniciativas podem transformar vidas. E estas são as iniciativas que devemos buscar ao longo da nossa existência. 

O sacerdote e o levita, absortos pela institucionalização de seus ministérios, esqueceram que pessoas são mais importantes que coisas e compromissos, que uma alma vale mais que o mundo inteiro. Embora tivessem a roupagem e a função sacerdotal e levítica, esqueceram-se da missão e já não choravam pelos homens caídos em caminhos vazios. 

Em 2005, Edson e Márcia Suzuki, co-fundadores da ONG ATINI — Voz pela Vida, atendendo ao apelo dos pais, colaboraram com a retirada de dois bebês da tribo Suruwahá para tratamento apropriado em São Paulo. A retirada dos bebês os liberava do sacrifício por iniciativa da comunidade Suruwahá. Iganani, uma das crianças, chegou a ser deixada na mata para morrer, mas foi resgatada pela mãe, por convencimento da avó. Tititu, a outra criança, quase foi flechada pelo pai, que decidiu levá-la aos brancos à procura de ajuda. A mãe de Iganani desejava, a despeito da prática comunitária de seu grupo, preservar a vida da filha. Os Suzuki, que vivem entre os Suruwahá há vinte anos, contabilizam cerca de 28 casos de infanticídio no grupo. Este fato social (a preservação da vida, por iniciativa indígena, de crianças que seriam sacrificadas na comunidade) abriu um precedente ético e comportamental entre os Suruwahá: quando um povo repensa suas soluções para o sofrimento e as ajusta a práticas mais humanizadoras na cosmovisão do próprio grupo. A ATINI tem sido também promotora da conscientização sobre o direito à vida em cerca de cinqüenta etnias no Brasil através de cartilhas sobre os direitos humanos aplicados ao universo indígena. 

No Brasil convivemos com a injustiça humana todo o tempo: a injustiça do trabalho escravo, do abuso sexual, do infanticídio tolerado, da prostituição forçada, do alcoolismo induzido, dos que não têm nada nem chance de nada ter, nem esperança. Não é preciso olhar muito longe. Basta olhar ao redor. 

Para se envolver é preciso decidir. Decisões tomadas pelos princípios de Deus, que nos movem, não apenas pelo impulso do coração, pois para cada iniciativa há um preço a pagar. 

Que Deus nos guarde de ser uma Igreja de sacerdotes e levitas apressados, com sermões prontos, vestes bem passadas e agenda inflexível. Que o Senhor nos ajude a ser uma Igreja de samaritanos, que tenha olhos abertos, que se arrisque a parar, que pague o preço e tome decisões que transformam.

Leia também o texto Não há morte sem dor; uma visão antropológica sobre a prática do infanticídio indígena no Brasil


Ronaldo Lidório é doutor em antropologia pela Royal London University e organizador de Indígenas do Brasil — avaliando a missão da igreja (Editora Ultimato). Atuou durante 9 anos no norte de Gana, na África, como plantador de igrejas, tradutor bíblico e coordenador de programas sociais nas áreas de saúde e educação.

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