segunda-feira, 1 de setembro de 2008

“Mane, Mane, Tecel, Parsin”

(Dn 6)


 Eduardo Ribeiro Mundim


 

            Esta é uma história conhecida, e trágica. Trágica porque fala de fracasso, julgamento, ruína e morte. É uma história, desde o início, pessimista, onde apenas aspectos e fatos negativos são claramente visíveis.

 

            Também é uma história que traz suas perguntas. Se a própria historicidade do livro de Daniel é colocada em dúvida por alguns, que diriam deste capítulo? Objeções históricas há, mas nada que não possa ser contornado: por que Baltazar chama a Nabucodonozor pai, se não era seu filho? A história geral desconhece Dario, o medo; o rei persa que tomou Babilônia foi Ciro.

 

            O relato igualmente alerta para a variedade de prismas sob os quais a história humana, e as nossas histórias individuais, podem ser olhadas.  É importante comentar que o fato de existirem óticas diversas não implica em exclusão mútua, como se apenas uma visão fosse o retrato acabado e completo da realidade. Diversas visões implicam sim, em riqueza de acontecimentos e em complementariedade entre eles.

 

            Babilônia já existia quando Hamurabi, um dos primeiros grandes legisladores, reinou, no século XVII a.c.. Passou por altos e baixos, sendo Nabucodonozor II seu último grande rei. Ele sitiou Jerusalém e, em duas ocasiões, promoveu uma deportação maciça das elites judaicas para a Babilônia. Baltazar, que aparentemente não tinha direito ao título de rei, foi governante em uma época de decadência.

 

            O texto traz algumas informações a respeito dos personagens envolvidos:

-  A festa promovida pelo rei contava com um grande número de convidados (pelo menos 1000 dignatários, fora as concubinas) e de bebida. (v. 1)

-  A decisão de Baltazar foi tomada estando ele "sob o influxo do vinho", após ele ter "bebido vinho diante desses mil", o que sugere, no mínimo embriaguez. (v. 2)

-  Aparentemente, apenas Baltazar preocupou-se com o escrito miraculoso na parede, que estava facilmente visível aos convidados. (v. 5)

-  Ele perdeu o controle sobre si (ficou apavorado): empalideceu, não sabia o que pensar, perdeu as forças e pôs-se a tremer, chamando os sábios aos berros. (v. 6 e 7)

-  Curiosamente, parece que os convidados estavam mais preocupados com o bem estar real que com o milagre. (v. 8 e 9) Pode-se supor que a consciência deles estava bem mais adormecida que a do seu senhor.

 

            E qual o pecado, que foi tão duramente punido?

 

            O primeiro: cegueira frente a história. Baltazar conhecia o relato do capítulo 5 (v. 18-22), mas não o levou em conta, na hora de escolher e adotar os princípios morais pelos quais agiria. Quem sabe, tomou a interpretação do seu nome (Bel-shar-uçur,  "Bel proteja o rei") como um privilégio do qual era merecedor (seu deus, Bel, era seu servo), e não uma dádiva, pela qual deveria ser grato. A humilhação de Nabucodonozor não lhe abriu os olhos para o fato de que, maior que o poder real, era o um Deus que ele nem conhecia. Se Nabucodonozor II, conquistador de Jerusalém, que matava e deixava viver segundo seu próprio juízo, foi transformando em animal, o que poderia se suceder a ele, Baltazar, seguramente um governante bem menor?

 

            Segundo: desrespeito para com as coisas sagradas. Baltazar ordena que os utensílios separados para o culto em Jerusalém fossem utilizados como copos para ele e seus convidados se embriagarem, em um desprezo óbvio pelo significado dos objetos. Daniel traduz o comportamento deles como desafio: "tu te levantaste contra o Senhor do céu" (v. 23). Não foram os utensílios sagrados que foram profanados, mas Aquele a quem serviam.

 

            Terceiro: idolatria e cegueira espiritual. O versículo 23, em sua parte final, resume bem: "...mas o Deus que detém teu respiro entre suas mãos e de quem dependem todos os teus caminhos, tu não o glorificaste!" Ele poderia desconhecer o que Iahweh dissera por intermédio do profeta Isaías, cerca de 200 anos antes: "Eu sou Iahvweh; este é o meu nome! Não cederei a outrem a minha glória, nem a minha honra aos ídolos" (Is 42.8). Mas não desconhecia a história de "seu pai". Usando da linguagem teológica, Baltazar talvez não conhecesse a revelação sobrenatural, mas conhecia a natural. Paulo comenta sobre essa situação na carta à igreja em Roma: "Sua realidade invisível... tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa. Pois tendo conhecido a Deus, não o honraram como Deus nem lhe renderam graças... tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível" (Rm 1.20-22).

 

            Na verdade, os três pecados formam um roteiro tão lógico, que mais parecem ser um só, numa cadeia de causas e conseqüências.

 

            O juízo vem pesado. Baltazar foi avaliado, diretamente e indiretamente. Diretamente, pela sua conduta individual, já que sua atitude no festim não deve ter sido exceção, mas sim regra. O álcool, quando muito, eliminou o resto de censura que poderia existir. Portanto, "foste achado deficiente". Indiretamente, seu reino "foi medido e (Deus) deu-lhe fim". A história mais uma vez se repetiria em ciclos: um império cairia pelas mãos doutro, mais competente no momento:"seu reino foi dividido e entregue aos medos e aos persas". Curiosamente, os motivos espirituais das quedas de Israel e Judá foram bem semelhantes...

 

            A história geral nos dá duas informações extras, que nos auxiliam a compor um quadro maior. A população aclamou o conquistador como libertador e, se houve resistência, essa deve ter sido débil. O tecido social estava frouxo, e a incompetência política-administrativa de Baltazar foi um dos lados que levaram a sua queda. Paralelamente, houve um juízo divino severo. A história geral nos informa a respeito das causas acessíveis por meio de métodos organizados; o escritor sagrado, a respeito das causas acessíveis somente pela Revelação.

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