Eduardo
Ribeiro Mundim*
A
Igreja é o Corpo de Cristo. Esta metáfora é empregada mais de uma
vez nas Escrituras, de forma suficientemente claro para que não ser
tomada como um acidente, uma ideia passageira. É uma realidade
indiscutível, ainda que não visível, mas revelada pelas
Escrituras. E esta é uma das funções das Escrituras: revelar
aquilo que não pode ser conhecido pelos meios que dispomos, pela
nossa tecnologia, pelos nossos órgãos do sentido, pelo nosso
intelecto.
Somos
Corpo. O que isto significa? Como isto é possível? Quais os
desdobramentos deste fato?
São
estas as questões que proponho apresentar a vocês esta noite,
usando a epístola de Paulo aos efésios como fio condutor.
Como
o Corpo é constituído
Ef
1.4-6: “Porque Deus nos escolhe nEle antes da criação do
mundo...em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos.”
O
corpo é constituído livre e soberanamente por Deus Pai. É Ele que
destina antes da criação do mundo o nosso destino, e o faz única e
exclusivamente por amor. Não para o louvor de Sua glória, mas
porque sua definição é Amor, ou como um teólogo prefere, Amor
Santo.
A
quem pede Ele conselho? A ninguém, que eu saiba. Portanto, Ele
chama, predestina, escolhe a quem deseja, no momento histórico que
deseja, do modo como deseja. Se não é assim, como explicar a lista
daqueles a quem Ele chamou para si?
- os mentirosos e ardilosos patriarcas
- o assassino Moisés
- os invejosos e fofoqueiros Arão e Mirian
- a prostituta Raabe
- o permanentemente infantil Sansão
- o adúltero homicida Davi
- o rebelde Jonas
- o covarde Pedro
- o sádico assassino Paulo
- eu
- você
Acertadamente
o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer escreveu que quando o pecado
do meu irmão parece maior que o meu, é porque, na verdade, eu não
conheço o tamanho do meu pecado.
A
teologia evangélica ensina que não há, na presença do Amor Santo,
pecado maior ou menor: mentira, assassínio, rebeldia, covardia,
fofoca, sadismo etc, tudo isto é desagradável a Ele, tudo isto nos
separa dEle. Mas apesar disto, Ele nos chama. Na Sua presença, quem
somos nós para julgarmos o pecado do irmão que está ao nosso lado?
Na Sua presença, quem somos nós para avaliarmos nosso pecado como
menos ofensivo que o do irmão do lado?
No
nosso pecado somos todos iguais, e não há outra atitude possível
além daquela exemplificada pela parábola do fariseu e do publicano:
“oh Deus, sê propício a mim pecador”.
Porventura
nossos belos olhos, ou nossas boas ações, ou nossos bons sonhos, ou
qualquer outra coisa ou fato que possamos ter a petulância de
considerar bom na presença de Deus foram as razões de sermos
escolhidos?
As
Escrituras afirmam que Deus deseja que todos sejam salvos (I Tm 2.4)
– o que eu tenho, pois, de especial, se Ele almeja o bem de todos?
E
na carta aos Efésios, 2.8-9, toda a esperança ou expectativa em
algo de bom residente em nós cai por terra: “Pois vocês são
salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é
dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”.
O
Corpo é constituído por pessoas que nós não escolhemos, mas Deus
Amor Santo é que escolheu. E se fomos escolhidos, isto se deve única
e exclusivamente ao fato dEle nos amar apesar de sermos, na sua
presença, intrinsecamente maus. E não há um melhor que o outro, ou
mais amado que o outro – alguém consegue uma base nas Escrituras
para ista ilusão?
Aliás,
deveríamos tomar cuidado em desejarmos ser o “queridinho de Papai
do Céu”. O que foi mesmo que Ele mandou Seu Filho Amado, em quem
se alegrava, fazer?
Talvez
estejamos mal acostumados em vermos apenas os mesmos irmãos todo
domingo, vestidos com aquelas roupas especiais e certamente estamos
nos esquecendo que, enquanto Corpo, temos a função de levar a
mensagem de arrependimento e conversão a quem nós não gostamos, a
que nos incomoda com suas vestes, ou adereços, ou comportamento
escandaloso, ou pelo exercício inesperado da sexualidade, ou pelas
suas dificuldades sociais, ou pelo seu odor, ou pelo que faz para
garantir seu sustento. E a mensagem deve ser levada não para que
este outro que me incomoda se transforme em alguém que me agrade,
mas porque Deus Amor Santo espera que nós o façamos, de forma
espontânea, como consequência natural da descoberta de sermos
perdoados e aceito por Ele.
Fazemos
parte do Corpo? Como ter disto certeza?
Ritos
externos, como batismo e profissão de fé, nada garantem. Deveriam
ser, sempre, evidências exteriores de duas verdades bíblicas. A de
que o Espírito de Deus diz ao meu espírito que dele sou filho, e a
de que pelos frutos, ou seja, pelo que fazemos e transpiramos,
seremos conhecidos como filhos dEle. Uma, evidência interna, que
pode ser enganadora, apenas uma certeza psicologicamente construída;
outra, evidência externa, que também pode ser enganadora, pois não
cristãos têm diversos bons frutos para mostrar. Mas é de suspeitar
do cristão que teme o inferno e apresenta frutos podres.
Porque
o Corpo é constituído
As
duas grandes alianças estabelecidas por Deus com a humanidade, via
Israel e via Cristo, compartilham semelhanças, mas têm diferenças
importantes. Uma delas é o seu modo de entrada. Na primeira,
entrava-se via nascimento natural, sem direito de escolha. Crescia-se
e era-se educado dentro da Aliança, não podendo dela se afastar. A
identidade do povo de Israel, assim como sua posterior constituição
como federação de tribos e monarquia unida, pedia uma adesão
universal a ela. Na segunda, entra-se através do novo nascimento,
sobrenatural, individual, solitário, não testemunhado, parcialmente
subjetivo, anunciado por Jesus ao fariseu Nicodemos em Jo 3: “ninguém
pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo / nascer de cima”.
É uma decisão a ser conscientemente tomada, porque ouvir o chamado
de Deus, responder positivamente à eleição realizada em Cristo
antes da criação do mundo, implica em dois desdobramentos óbvios:
-
Ef 1.4, “porque Deus nos escolhe nEle antes da criação do mundo,
para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença”. Não é
possível desejar a aproximação com o Deus que é Amor Santo sem
que se deseje tomá-Lo como exemplo e desafio, com vistas à
santificação pessoal.
-
Ef 2.10, “porque somos criação de Deus realizada em Cristo
Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para
nós as praticarmos”. Não é somente nossa predestinação em
Cristo que antecede nossa própria existência consciente, mas o
objetivo de nossa existência consciente como eleitos é “fazermos
boas obras”. A Aliança feita pelo sangue de Cristo não visa
nosso próprio umbigo, mas o cumprimento da vontade de Deus; ela
não se constitui por palavras, mas por ações que necessariamente
são boas.
O
Corpo é constituído porque era desejo dEle desde a eternidade
tornar todos “concidadãos dos santos e membros da família de
Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas,
tendo Jesus Cristo como pedra angular, no qual todo o edifício é
ajustado e cresce para tornar-se um santuário santo no Senhor. Nele
vocês também estão sendo edificados juntos, para se tornarem
morada de Deus por seu Espírito” (Ef 2.19-22).
A
ética do corpo
Portanto,
fazer parte do corpo tem duas grandes dimensões éticas.
A
primeira, da relação dos membros do Corpo com o Cabeça, Cristo, e
com aquele que o constituiu, Deus Pai: (Ef 4.16) “crescer e
edificar-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza
sua função”. E isto somente pode ocorrer se (Ef 3.18-19)
“estando arraigados e alicerçados em amor, vocês possam,
juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento,
a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede
todo conhecimento, para que vocês sejam cheios de toda a plenitude
de Deus”.
A
segunda, da relação dos membros do Corpo uns para com os outros. A
metáfora do corpo, ilustração da sua realidade, obriga que os
membros trabalhem em sintonia e concordância, cada um em sua função,
a seu tempo. Obriga também que cada seja saudável, para que o corpo
inteiro o seja. E para isto, atitudes pró-ativas são necessárias.
Ef 4.22-24 apresenta verbos na voz ativa, aquela que faz, que assume
o ato, e não na passiva, aquela que sofre a ação: “despir-se do
velho homem”, “revestir-se do novo homem”. Despir-se do velho
homem “que se corrompe por desejos enganosos”, endurecido de
coração, insensível, entregue à depravação, sem entendimento
das coisas de Deus, em especial da Sua radical santidade e da nossa
radical pecaminosidade.
Ef
5.3 ss comanda que ativamente se evite, mesmo que se deseje, a
imoralidade sexual, a impureza, a cobiça, as obscenidades, as
conversas tolas, os gracejos imorais e inconvenientes. Porque aqueles
que não evitam, mas que buscam de forma continuada atitudes
semelhantes a estas, “não têm herança no Reino de Cristo e de
Deus”, pois a ele não pertencem por não terem, verdadeiramente,
“nascido da água e do Espírito”. Porque aqueles a quem o
Espírito de Deus testifica que são Seus filhos buscam a bondade, a
justiça, a verdade, o que é agradável a Deus, inclusive no trato
com as mui humanas e inevitáveis vivências da raiva, das tentações
do enriquecimento desonesto (seja roubando o irmão, seja fraudando o
imposto de renda) e do palavreado agressivo e ofensivo, da atração
pela amargura, gritaria, calúnia.
Para
que o Corpo cresça em harmonia não pode haver quem passe fome ou
necessidade, tendo todos os membros de se relacionarem com bondade,
identificando-se com o outro em suas dificuldades estejam elas onde
estiverem (incluindo aquelas áreas tabus), exercitando o perdão
mútuo (do contrário, orar para que “perdoe as nossas dívidas
como perdoamos aos nossos devedores” passa a ser, na melhor das
hipóteses, tentativa de suicídio) – condição inegociável para
se participar da Ceia do Senhor.
Enquanto
corpo estamos todos no mesmo barco, pois somos pecadores permanentes
em busca permanente de santidade, tanto na nossa vida pessoal quanto
na nossa vida social. Somos braço efetivo de Deus neste mundo caído,
assim como Seu braço efetivo entre nós, para nos curarmos
mutuamente e permanentemente, até que o Cabeça do Corpo venha, ou
nós nos reunamos com ele em nossa morte.
Que
Ele nos ajude.
Amém.
*
apresentado no culto vespertino do dia 29/04/12, na Segunda Igreja
Presbiteriana de Belo Horizonte
Maravilha!!! O Verbo, a Palavra, o Logos se fez carne!!!! Parabéns.
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