terça-feira, 1 de maio de 2012

A Ética da Igreja, como Corpo de Cristo

Eduardo Ribeiro Mundim*

A Igreja é o Corpo de Cristo. Esta metáfora é empregada mais de uma vez nas Escrituras, de forma suficientemente claro para que não ser tomada como um acidente, uma ideia passageira. É uma realidade indiscutível, ainda que não visível, mas revelada pelas Escrituras. E esta é uma das funções das Escrituras: revelar aquilo que não pode ser conhecido pelos meios que dispomos, pela nossa tecnologia, pelos nossos órgãos do sentido, pelo nosso intelecto.

Somos Corpo. O que isto significa? Como isto é possível? Quais os desdobramentos deste fato?

São estas as questões que proponho apresentar a vocês esta noite, usando a epístola de Paulo aos efésios como fio condutor.

Como o Corpo é constituído

Ef 1.4-6: “Porque Deus nos escolhe nEle antes da criação do mundo...em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos.”

O corpo é constituído livre e soberanamente por Deus Pai. É Ele que destina antes da criação do mundo o nosso destino, e o faz única e exclusivamente por amor. Não para o louvor de Sua glória, mas porque sua definição é Amor, ou como um teólogo prefere, Amor Santo.

A quem pede Ele conselho? A ninguém, que eu saiba. Portanto, Ele chama, predestina, escolhe a quem deseja, no momento histórico que deseja, do modo como deseja. Se não é assim, como explicar a lista daqueles a quem Ele chamou para si?
    • os mentirosos e ardilosos patriarcas
    • o assassino Moisés
    • os invejosos e fofoqueiros Arão e Mirian
    • a prostituta Raabe
    • o permanentemente infantil Sansão
    • o adúltero homicida Davi
    • o rebelde Jonas
    • o covarde Pedro
    • o sádico assassino Paulo
    • eu
    • você

Acertadamente o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer escreveu que quando o pecado do meu irmão parece maior que o meu, é porque, na verdade, eu não conheço o tamanho do meu pecado.

A teologia evangélica ensina que não há, na presença do Amor Santo, pecado maior ou menor: mentira, assassínio, rebeldia, covardia, fofoca, sadismo etc, tudo isto é desagradável a Ele, tudo isto nos separa dEle. Mas apesar disto, Ele nos chama. Na Sua presença, quem somos nós para julgarmos o pecado do irmão que está ao nosso lado? Na Sua presença, quem somos nós para avaliarmos nosso pecado como menos ofensivo que o do irmão do lado?

No nosso pecado somos todos iguais, e não há outra atitude possível além daquela exemplificada pela parábola do fariseu e do publicano: “oh Deus, sê propício a mim pecador”.

Porventura nossos belos olhos, ou nossas boas ações, ou nossos bons sonhos, ou qualquer outra coisa ou fato que possamos ter a petulância de considerar bom na presença de Deus foram as razões de sermos escolhidos?

As Escrituras afirmam que Deus deseja que todos sejam salvos (I Tm 2.4) – o que eu tenho, pois, de especial, se Ele almeja o bem de todos?

E na carta aos Efésios, 2.8-9, toda a esperança ou expectativa em algo de bom residente em nós cai por terra: “Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”.

O Corpo é constituído por pessoas que nós não escolhemos, mas Deus Amor Santo é que escolheu. E se fomos escolhidos, isto se deve única e exclusivamente ao fato dEle nos amar apesar de sermos, na sua presença, intrinsecamente maus. E não há um melhor que o outro, ou mais amado que o outro – alguém consegue uma base nas Escrituras para ista ilusão?

Aliás, deveríamos tomar cuidado em desejarmos ser o “queridinho de Papai do Céu”. O que foi mesmo que Ele mandou Seu Filho Amado, em quem se alegrava, fazer?

Talvez estejamos mal acostumados em vermos apenas os mesmos irmãos todo domingo, vestidos com aquelas roupas especiais e certamente estamos nos esquecendo que, enquanto Corpo, temos a função de levar a mensagem de arrependimento e conversão a quem nós não gostamos, a que nos incomoda com suas vestes, ou adereços, ou comportamento escandaloso, ou pelo exercício inesperado da sexualidade, ou pelas suas dificuldades sociais, ou pelo seu odor, ou pelo que faz para garantir seu sustento. E a mensagem deve ser levada não para que este outro que me incomoda se transforme em alguém que me agrade, mas porque Deus Amor Santo espera que nós o façamos, de forma espontânea, como consequência natural da descoberta de sermos perdoados e aceito por Ele.

Fazemos parte do Corpo? Como ter disto certeza?

Ritos externos, como batismo e profissão de fé, nada garantem. Deveriam ser, sempre, evidências exteriores de duas verdades bíblicas. A de que o Espírito de Deus diz ao meu espírito que dele sou filho, e a de que pelos frutos, ou seja, pelo que fazemos e transpiramos, seremos conhecidos como filhos dEle. Uma, evidência interna, que pode ser enganadora, apenas uma certeza psicologicamente construída; outra, evidência externa, que também pode ser enganadora, pois não cristãos têm diversos bons frutos para mostrar. Mas é de suspeitar do cristão que teme o inferno e apresenta frutos podres.

Porque o Corpo é constituído

As duas grandes alianças estabelecidas por Deus com a humanidade, via Israel e via Cristo, compartilham semelhanças, mas têm diferenças importantes. Uma delas é o seu modo de entrada. Na primeira, entrava-se via nascimento natural, sem direito de escolha. Crescia-se e era-se educado dentro da Aliança, não podendo dela se afastar. A identidade do povo de Israel, assim como sua posterior constituição como federação de tribos e monarquia unida, pedia uma adesão universal a ela. Na segunda, entra-se através do novo nascimento, sobrenatural, individual, solitário, não testemunhado, parcialmente subjetivo, anunciado por Jesus ao fariseu Nicodemos em Jo 3: “ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo / nascer de cima”. É uma decisão a ser conscientemente tomada, porque ouvir o chamado de Deus, responder positivamente à eleição realizada em Cristo antes da criação do mundo, implica em dois desdobramentos óbvios:

- Ef 1.4, “porque Deus nos escolhe nEle antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença”. Não é possível desejar a aproximação com o Deus que é Amor Santo sem que se deseje tomá-Lo como exemplo e desafio, com vistas à santificação pessoal.

      - Ef 2.10, “porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos”. Não é somente nossa predestinação em Cristo que antecede nossa própria existência consciente, mas o objetivo de nossa existência consciente como eleitos é “fazermos boas obras”. A Aliança feita pelo sangue de Cristo não visa nosso próprio umbigo, mas o cumprimento da vontade de Deus; ela não se constitui por palavras, mas por ações que necessariamente são boas.

O Corpo é constituído porque era desejo dEle desde a eternidade tornar todos “concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, tendo Jesus Cristo como pedra angular, no qual todo o edifício é ajustado e cresce para tornar-se um santuário santo no Senhor. Nele vocês também estão sendo edificados juntos, para se tornarem morada de Deus por seu Espírito” (Ef 2.19-22).

A ética do corpo

Portanto, fazer parte do corpo tem duas grandes dimensões éticas.

A primeira, da relação dos membros do Corpo com o Cabeça, Cristo, e com aquele que o constituiu, Deus Pai: (Ef 4.16) “crescer e edificar-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza sua função”. E isto somente pode ocorrer se (Ef 3.18-19) “estando arraigados e alicerçados em amor, vocês possam, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento, para que vocês sejam cheios de toda a plenitude de Deus”.

A segunda, da relação dos membros do Corpo uns para com os outros. A metáfora do corpo, ilustração da sua realidade, obriga que os membros trabalhem em sintonia e concordância, cada um em sua função, a seu tempo. Obriga também que cada seja saudável, para que o corpo inteiro o seja. E para isto, atitudes pró-ativas são necessárias. Ef 4.22-24 apresenta verbos na voz ativa, aquela que faz, que assume o ato, e não na passiva, aquela que sofre a ação: “despir-se do velho homem”, “revestir-se do novo homem”. Despir-se do velho homem “que se corrompe por desejos enganosos”, endurecido de coração, insensível, entregue à depravação, sem entendimento das coisas de Deus, em especial da Sua radical santidade e da nossa radical pecaminosidade.

Ef 5.3 ss comanda que ativamente se evite, mesmo que se deseje, a imoralidade sexual, a impureza, a cobiça, as obscenidades, as conversas tolas, os gracejos imorais e inconvenientes. Porque aqueles que não evitam, mas que buscam de forma continuada atitudes semelhantes a estas, “não têm herança no Reino de Cristo e de Deus”, pois a ele não pertencem por não terem, verdadeiramente, “nascido da água e do Espírito”. Porque aqueles a quem o Espírito de Deus testifica que são Seus filhos buscam a bondade, a justiça, a verdade, o que é agradável a Deus, inclusive no trato com as mui humanas e inevitáveis vivências da raiva, das tentações do enriquecimento desonesto (seja roubando o irmão, seja fraudando o imposto de renda) e do palavreado agressivo e ofensivo, da atração pela amargura, gritaria, calúnia.

Para que o Corpo cresça em harmonia não pode haver quem passe fome ou necessidade, tendo todos os membros de se relacionarem com bondade, identificando-se com o outro em suas dificuldades estejam elas onde estiverem (incluindo aquelas áreas tabus), exercitando o perdão mútuo (do contrário, orar para que “perdoe as nossas dívidas como perdoamos aos nossos devedores” passa a ser, na melhor das hipóteses, tentativa de suicídio) – condição inegociável para se participar da Ceia do Senhor.

Enquanto corpo estamos todos no mesmo barco, pois somos pecadores permanentes em busca permanente de santidade, tanto na nossa vida pessoal quanto na nossa vida social. Somos braço efetivo de Deus neste mundo caído, assim como Seu braço efetivo entre nós, para nos curarmos mutuamente e permanentemente, até que o Cabeça do Corpo venha, ou nós nos reunamos com ele em nossa morte.

Que Ele nos ajude.

Amém.



* apresentado no culto vespertino do dia 29/04/12, na Segunda Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte

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