terça-feira, 16 de setembro de 2008

"E Sereis minhas testemunhas"

Eduardo Ribeiro Mundim

Escrito em 13/05/99

 

         Esse mandamento, um dos últimos que Jesus nos deixou, é tido por muitos como o mais importante, estando sempre agregado ao "ide por todo o mundo". Testemunhar, pois, sempre foi uma preocupação do povo chamado evangélico. E essa noção é sempre ressaltada, tanto a nível da escola bíblica dominical quanto a nível do púlpito. Talvez como conseqüência da esperada conversão, não apenas das idéias, mas das atitudes (a vida do cristão passa a ter um novo referencial ético), e também com a necessidade sentida de fazer-se ímpar frente à sociedade pagã, somos conhecidos, em alguns lugares, pela negativa: crentes são aqueles que NÃO dançam, NÃO fumam, NÃO bebem...

 

         Mas o que é testemunhar?

 

         O que temos a testemunhar?

 

         O Aurélio nos ensina que testemunhar pode ser tanto intransitivo, quanto transitivo direto e/ou indireto. Em todas as regências, alguém testemunha quando declara, ou depõe em um tribunal, fatos que conhece, seja pelo ouvir ou pelo ver. No primeiro caso, ela é dita "auricular"; no segundo, ocular. Como exigência formal em alguns procedimentos legais, alguém pode ser convocado, chamado, para validar certo ato, que somente será válido juridicamente porque foi assistido por outra pessoa; é a testemunha instrumentária. Quem presta depoimento, testemunha sobre aquilo que sabe por conhecimento próprio, ou advindo de terceiros, mas, fundamentalmente, fala daquilo que tem por verdade, segundo sua capacidade interpretativa.

 

         O ministério de Jesus foi bem planejado. Não só seu final, voluntário e não obra do acaso, mas todo o seu desenrolar. Cristo selecionou e reuniu junto a si um grupo de homens, a fim de que fossem instrumentos, testemunhas instrumentárias do que Ele faria/não faria, ensinaria/ordenaria. Não que Seu ensino dependesse da autenticação do grupo. Mas a Sua existência, origem e trabalho históricos necessitavam ser autenticados pelo depoimento de quem havia participado diariamente, intensamente, dos Seus últimos três anos de vida terrena . E que grupo! Um coletor de impostos (e todos duvidavam da honestidade dos publicanos), um ladrão com vocação terrorista (que se tornou traidor), dois irmãos "capitalistas" que exploravam uma empresa pesqueira (seriam eles pobres como sempre imaginamos?)... Jesus tinha uma maneira bem peculiar de acercar-se de pessoas contrastantes, sem fazer distinção entre elas. Um círculo menos íntimo também foi chamado a ser depoente, constituído por mulheres (algumas prostitutas inclusive; ou, ex-prostitutas), outros funcionários da burocracia romana e os mais variados tipos de pecadores confessos, bem como algumas autoridades religiosas judaicas.

 

         Aos apóstolos cabia testificar, comprovar, assegurar:

1.   que aquele Jesus, filho de José e Maria, descendente de Davi, da antiga tribo de Judá, era o Messias, aquele que havia de vir, como predito pelos profetas:
      "Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes.
      Sobre ele repousará o Espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: no temor de Iahweh estará a sua inspiração.
      Ele não julgará segundo a aparência.
      Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer.
      Antes, julgará os fracos com justiça,
com eqüidade pronunciará uma sentença.
      Ele ferirá a terra com o bastão da sua boca
e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio.
      A justiça será o cinto dos seus lombos
e a fidelidade, o cinto dos seus rins"
(Is 11.1-5)

2.   que a Sua morte não fora obra das forças políticas, mas deliberadamente planejada e executada, como Ele advertira os incrédulos apóstolos em Lc 18.31-33:
      "...Eis que estamos subindo a Jerusalém e vai cumprir-se tudo o que foi escrito pelos Profetas a respeito do Filho do Homem. De fato, ele será entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado, coberto de escarros; depois de o açoitar, eles o matarão".

Também todo o sucedido fora anunciado pelo menos 500 anos antes, como está escrito em Is 53:
      "Mas Iahweh quis feri-lo, submetê-lo a enfermidade." (v 9)
      "Foi maltratado, mas livremente humilhou-se e não abriu a boca...
      Após detenção e julgamento, foi preso."
(V 7,8)

3.   que Sua morte e ressurreição cumpriam um plano urdido por Deus Pai desde a fundação do mundo, tendo ambas um significado único na história da humanidade. No mesmo "IV canto do servo", em Isaías, lemos
      "E no entanto, eram as nossas enfermidades que ele levava sobre si,
as nossas dores que ele carregava...
      Mas ele foi trespassado por causa das nossas transgressões,
esmago em virtude das nossas iniqüidades;
o castigo que havia de trazer-nos a paz, caiu sobre ele,
sim, pelas suas pisaduras fomos curados."
(v  4,5)

e o apóstolo Pedro, no discurso no dia de pentecostes, afirma:
      "Davi... sendo, pois, profeta,... previu e anunciou a ressurreição de Cristo... A esse Jesus Deus o ressuscitou, e disto nós todos somos testemunhas... Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, esse Jesus a quem vós crucificastes" (At 2.29-36)

Paulo, escrevendo à igreja que estava em Corinto, por ele iniciada, alerta:
      "E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados... Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens." (I Co 15.17-19)

         Enquanto Igreja, somos constituídos sobre o fundamento lançado por Cristo Jesus e seus apóstolos. Temos acesso a Deus pelo sangue da cruz, e vida eterna pela Sua ressurreição. Este é o testemunho básico que eles nos deixaram, por conhecê-lo em primeira mão, e não por ouvir falar. E todo o restante dos cristãos testemunham essa mesma verdade, após tê-la experenciado pessoalmente, de modo íntimo e único (assim como cada ser humano é único em si mesmo), como relatado na carta de Paulo aos romanos: "o próprio Espírito (de Deus) se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus" (Rm 8.16). Nosso testemunho é, a rigor, de segunda mão. Mas isso de modo algum lhe tira o valor, pois Jesus já nos autorizou a dá-lo, quando disse a Tomé: "Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!" (Jo 20.29)

 

         Nos nossos dias é muito popular testemunhar sobre o que Deus tem feito nas nossas vidas. Habitualmente, tal depoimento diz respeito à saúde orgânica/psicológica ou financeira. Ainda que tenha seu valor, não é esse relato para o  qual fomos comissionados; relatos subjetivos, emotivos, muitas vezes bonitos, que carregam em si o vírus de atrair pelos benefícios, e não pela verdade dos fatos. E o próprio Senhor se irritou com esse tipo de atitude, como narra João: "em verdade, em verdade, vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes" (Jo 6.26).Se a nossa declaração se resume nas maravilhas e nos "lucros" que a conversão pode significar, traímos o verdadeiro sentido do Evangelho, ou seja:

 

                   1)"Não há homem justo,

                        não há um sequer,

                  não há quem entenda,

                  não há quem busque a Deus.

                  Todos se transviaram,

                  todos juntos se corromperam;

                  não há quem faça o bem,

                  não há um sequer." (Rm 3.10-12)

 

                   2)"Nisto consiste o amor:

                  não fomos nós que amamos a Deus,

                  mas foi Ele quem nos amou

                  e enviou-nos o Seu Filho

                  como vítima de expiação pelos nossos pecados" (I Jo 4.10)

 

                  3)"Tendo sido, pois, justificados pela fé, estamos em paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.1) e "Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus" (Rm 8.1)

 

         O Evangelho não é um apelo ao nosso conhecimento dito científico. Portanto, Deus e Cristo não precisam provar nada. É um apelo aos nossos sentimentos mais interiores, de natureza puramente "filosófica": ou nos consideramos afastados de Deus ou não; ou aceitamos a morte substitutiva de Cristo na cruz, ou não. Mas não solicetemos provas, pois o apóstolo já nos advertiu: "Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que crêem. Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tantos judeus quanto gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus" (I Co 1.21-23).

Um comentário:

  1. Excelente reflexão. Faltou dizer - perdão pelo atrevimento - que a palavra grega "mártir" significa “testemunha” diante de um tribunal. Seu amigo Orígenes (séc. II) afirma: “A comunidade de irmãos na fé reservou o nome de mártir para aqueles que deram testemunho de fé em Cristo derramando seu sangue”. Um abraço de seu amigo Damásio.

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