Bráulia Ribeiro Fui criada no sopé de uma favela belorizontina. Meu pai e minha mãe se conheceram na Escola Guignard como alunos do mestre. A paixão em comum, que era a arte, depois se transformou em muitas mais; os pobres, a esquerda política, a literatura, a imprensa e, claro, os sete filhos que geraram juntos. Minha infância se pareceu com a da família descrita por Orígenes Lessa em “O Feijão e o Sonho”, só que sem o feijão. O Sonho e o Sonho viviam pelos ideais que acreditavam em plena subversão ao sistema. Em nossa vida um dia nunca era igual ao outro. Meu pai escapou por pouco de ser preso e exilado pela ditadura, viu os jornais em que trabalhou serem submetidos à censura prévia e depois depredados pela repressão policial, viu seus amigos desaparecerem e até adoeceu de desespero existencial. Minha mãe, extraída da carreira de pintora expressionista pelas demandas da maternidade, conseguiu ser mais prática; abrigava pobres em casa, escolarizava crianças da favela, além de escrever, pintar e cuidar que meu pai se mantivesse próximo da realidade. Aos 16 anos tive um encontro emocional e sobrenatural com a realidade do evangelho. Este encontro me conduziu a terríveis conflitos existenciais. A sementinha nova da fé parecia não resistir às investidas cruéis da razão. Era frágil demais, “des-argumentada”, “des-científica” e, infelizmente, reacionária demais. Aos 17, no entanto, encontrei um grupo que vivia uma utopia próxima da que meus pais haviam sonhado, só que movido à fé cristã. Foi aí que minha alma se encontrou com minha razão e a fé me pôde se tornar concreta. Desde então vivi na JOCUM (Jovens com uma Missão), ou pelo menos pensei viver, bem perto do radicalismo socialista de meus pais. Anos demais, quem sabe; alguns extremamente distantes de qualquer realidade, alienados demais pela utopia gospel da sociedade alternativa, outros anos oprimidos pela realidade inexorável do sistema. Aprendi nesta jornada que o verdadeiro cristianismo é mais subversivo que qualquer revolução política. Meus pais queriam mudança. Não se conformavam com os problemas e os erros de seus pais, queriam uma sociedade mais justa, queriam liberdade e igualdade para todos. Não pensavam eles na época que o próprio humanismo que os consumiu trabalharia contra os ideais humanos. Não caberia no coração de meu pai a frieza de se descartar embriões sem uso e fetos inconvenientes ou com defeito. Ainda estava fresco na memória de sua geração o horror que a eugenia produziu durante a Segunda Guerra. Apesar de agora ser quase senso comum, não fazia parte de suas convicções a ideia de que a consciência social nos obriga a ter menos filhos, ou de que a liberação do aborto pudesse ser uma solução para os problemas socioeconômicos atuais ou, eufemisticamente, um mero problema de saúde pública. Por sua origem católica, meu pai e minha mãe acreditavam que a vida humana tinha valor. Favelados, classe média, crianças pobres ou ricas, todos teriam de ter direito aos mesmos direitos, afinal este é o ideal humanista supremo. Vida humana é sempre bem-vinda e deve ser protegida. Mesmo durante o Iluminismo, quando os valores cristãos começavam a ser mal-afamados e perseguidos, ainda a noção do valor intrínseco do ser humano tinha de ser apoiada em uma metafísica superior à ciência, a qualquer arrazoamento meramente humanista. O ser humano tem valor em si mesmo porque algo superior a ele lhe atribui valor. A linguagem permaneceu religiosa. A noção que chamamos de “Imago Dei”, (somos todos, não importa a cor, o credo ou a condição social, feitos à imagem de Deus) é indispensável para estabelecer igualdade entre os seres humanos. Qualquer coisa fora dela deixaria dúvidas quanto à profundidade e à amplitude desta declaração. Certa vez, Vácilav Havel1 fez um discurso dizendo que o maior desafio político do século 21 seria fazer com que os Estados soberanos do mundo reconhecessem limites em sua soberania, e se submetessem a uma lei superior baseada no Código Universal de Direitos Humanos. Em suas palavras: "Eu sempre me perguntei por que seres humanos têm direitos quaisquer. Porém, sempre chego à conclusão de que a noção de direitos humanos, liberdade humana e dignidade humana tem suas raízes mais profundas fora do âmbito físico. Descubro que não existe resposta possível no mundo perceptível. Estes valores só têm razão de ser na perspectiva do infinito e do eterno. Concluo minha palestra com a declaração de que enquanto o Estado é uma criação humana, seres humanos são criação de Deus”. Qualquer outra fé além da cristã deixa dúvidas sobre este valor essencial. É coerente com as pressuposições da Nova Era, ou do hinduísmo, presumir que matar aleijados, sejam fetos ou adultos, é um favor que se faz àquele que por mau carma não se encarnou da maneira correta. É coerente com a ciência a serviço do deus capital sacrificar vidas humanas desfavorecidas na África ou em outros países pobres, como sugerido no filme "O Jardineiro Fiel", para beneficiar o bem maior: o conhecimento a ser adquirido pelas sociedades mas ricas. É coerente com a escalada da eugenia pensar, como Hitler, que eventualmente descobriremos os genes da "raça" ideal, e enquanto isto temos liberdade de matar os embriões que não nos servem, os bebês concebidos que nos sejam inconvenientes. Quando me reuni com membros do Comitê Nacional de Enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, descobri que o slogan nacional para o combate do abuso sexual é: “Direitos sexuais são direitos humanos”. Também descobri no site da rede que a agenda do governo desde 2008 não é mais defender as crianças vítimas, mas promover uma nova noção de moralidade em que o sexo entre crianças e adultos poderá ser entendido como legítimo e consentido. Vendo isto percebo o quão longe estamos da sublimidade moral dos direitos humanos. O Papai Noel virou Bicho Papão. Reduzimos a noção de direito à escravidão à sexualidade perversa de alguns. Em nome da justiça social sonhada pelos intelectuais da época de meu pai o governo perverte, torce e profana o direito, os valores da família e o compromisso com a moral que deveria ser a própria razão de ser do governo. A sexualização precoce e irreversível das crianças as levam à condição de objeto a ser usado pelos ideólogos da máquina lasciva do governo PT, sem nenhuma vergonha, sem nenhuma responsabilidade moral. Enquanto hoje leio cristãos, pastores e teólogos defendendo o aborto como mecanismo de justiça social, o divórcio como um serviço à felicidade pessoal, altar no qual muitos cristãos sacrificam a sua fé, eu oro para continuar livre. Livre para ainda pensar do jeito de Deus. Livre para promover a subversão dos valores da sociedade atual, enfatuada de si mesma, doente. A subversão, meus amigos, está no sangue. Não no sangue de meus pais que me corre nas veias, mas no sangue de Cristo, que nos liberta para não termos de nadar na imundície ideológica da esquerda atual, e para, com um mínimo de bom senso, nos tornarmos reacionários de direita sim, em defesa da vida, com orgulho. Nota 1. Presidente da antiga Tchecoslováquia e depois da República Tcheca e conhecido filósofo e escritor, a palestra aconteceu no dia 30 de abril de 1999 para o parlamento do Canadá (dado obtido em palestra do teólogo Vinoth Ramachandra à USC Berkeley, 2002). • Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, é autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia_ribeiro@uol.com.br | ||
http://www.ultimato.com.br/?pg=show_conteudo&util=1&categoria=3®istro=996 | ||
Crer não é sinônimo de não pensar. Crer implica em pensar, em relacionar fé com a realidade, questionando uma a partir da outra. O conteúdo são pensamentos às vezes rápidos, em elaboração; outros, já mais elaborados. Ambos buscando provocar discussão e reposicionamentos, partindo sempre da confissão de fé protestante. Os artigos classificados como "originais" podem ser reproduzidos desde que com a menção da fonte e autoria. Ano V
domingo, 29 de março de 2009
A Subversão está no sangue
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