terça-feira, 19 de maio de 2009

Por que os heróis sempre fracassam?

Elienai Cabral Júnior

Bíblia não é boa em contar histórias de heróis. Deus é um péssimo contador de histórias de heróis. Prefiro os mitos gregos. Hércules é muito melhor que Sansão. As histórias de heróis da Bíblia são ruins porque todos os seus heróis fracassam. São ruins e libertadoras de nossa humanidade.

O número 1, Adão, fracassou. Terminou expulso do lugar mais lindo em que alguém já viveu (Gn 3.23). Moisés, o libertador, fracassou. Conduziu uma nação inteira para um lugar em que ele mesmo não pôde viver (Dt 34.4). Davi, o garoto frágil e plebeu que fez tombar o gigante, quando nobre poderoso tombou diante de uma mulher indefesa (2 Sm 11). Elias, o profeta que fez descer fogo do céu também fracassou. Não esperou um dia depois do fogo para fugir deprimido em busca do suicídio (1 Rs 19). Maria, a virgem corajosa que deu à luz o Filho de Deus, comportou-se como uma mãe manipuladora tentando ensinar Jesus a ser o Cristo: "Que temos nós em comum, mulher? A minha hora ainda não chegou" (Jo 2.4) -- replicou Jesus. Pedro, o intrépido decepador de orelhas, fraquejou diante da serva da casa de Caifás, traiu aquele a quem mais amou em toda a sua vida (Jo 18.15-18).

Jesus Cristo, de longe foi o Messias esperado pelo povo. O quadro depressivo que o acometeu no Getsêmani, sua prisão, os julgamentos, a "via crucis", sua inércia na cruz, seu desamparo por Deus seguido da morte, em nada lembra uma boa história de herói. Quando ressuscita, aparece a poucos. O mundo não viu o Cristo ressurreto, só pôde ver o Filho de Deus morto na cruz.

A história de Sansão no intenso e desajeitado livro dos Juízes (13-16) é marcada por fatos que o tornam um infeliz privilegiado. Sansão foi um milagre desde o nascimento. Sua mãe era estéril até ele ser concebido, sob a promessa de Deus de que seria o libertador de Israel. Tudo isso alardeado por nada mais, nada menos que o Anjo do Senhor, a grande manifestação divina do Antigo Testamento. Tornou-se nazireu por reivindicação divina. Recebeu um dom que todo 'macho' um dia já sonhou ter: uma força extraordinária, que o tornava imbatível para os demais.

Então vêm as aventuras de Sansão. Matou um leão apenas com as mãos. Arrancou as portas de uma cidade. Matou mil homens com a queixada tirada da carcaça de um jumento. Capturou trezentas raposas, amarrou-as aos pares pelo rabo, prendeu uma tocha incendiária em cada par de raposas e as soltou pela plantação dos filisteus, devastando tudo o que fora cultivado pelos seus detratores. Tudo isso com ar de sarcasmo. Brigou como quem se divertia. Tem-se a impressão de que distribuía bordoadas às gargalhadas.

Porém a história de Sansão também é marcada pela decadência. O capítulo final é funesto, sombrio e deprimente. Sansão foi derrotado pela fantasia de indestrutibilidade. Dalila insistiu e arrancou-lhe o segredo para tanta força. Traído e preso, teve os olhos perfurados. Foi humilhado e serviu de diversão para os inimigos. Por um lapso vexatório de tempo, tornou os deuses falsos mais verdadeiros que o Deus bíblico.

Aprendemos com Sansão que se tornar uma exceção também é provar um fim trágico. Todo ser humano, na vivência bíblica, com vantagens sobrenaturais termina os seus dias como um fracassado. Vejamos.

Quem venceu no final da história não foi o mesmo Sansão do início. Foi um outro Sansão, cego e frágil, no seu último fôlego de vida. O que a ruína de um herói pode nos ensinar sobre a vida? Essa é uma pergunta que a Bíblia nos impõe com insistência, como um antídoto para o veneno de nossos exagerados idealismos.

Quando idealizamos demais a pessoa humana, terminamos por roubar-lhe a liberdade. Prisioneira de nossas românticas expectativas, precisa mascarar suas verdades para sustentar a fantasia. Uma história assim só pode produzir ruínas. Idealizamos exageradamente os filhos e os submetemos a uma escravidão de culpa. Também o fazemos aos crentes e os obrigamos a viver em um faz-de-conta religioso que esmaga suas identidades. Fantasiamos a igreja e a obrigamos a ser um lugar de decepções, ambiente da verdade que sem uma visão realista pode apagar esperanças. Qualquer pessoa diminui quando sujeita às idealizações.

Duas histórias muito parecidas revelam um 'bobão' por trás do grandalhão, de Sansão (14 e 16). Em ambas, quem tira a roupa do herói e desnuda o 'bobão' é uma mulher, o que não deixa de ser sugestivo. A truculência implacável de um homem desmoronou diante da fragilidade sagaz de duas mulheres, o que apenas confirma o emburrecimento que se esconde nos heroísmos. Na primeira história, temos a mulher que se tornou sua esposa. Sansão propôs um enigma aos amigos da noiva que participavam de sua festa de casamento: "Do que come saiu comida; do que é forte saiu doçura" (Jz 14.14). De tanto insistir, a mulher, convencida pelos adversários, fez Sansão revelar o enigma, que em seguida foi informado aos seus inimigos. Todo mundo vê, menos o 'bobão'.

Infelizmente, Sansão não aprendeu a lição. O 'bobão' foi despido de novo, mas desta vez foi fatal. Dalila, sua amante, tentou por três vezes seguidas entregá-lo aos seus inimigos, revelando o provável segredo de sua força e ele simplesmente pareceu não desconfiar de nada. Muito poder parece inchar as aparências e atrofiar a alma, idiotizar o verdadeiro 'eu'. Pela quarta vez seguida, Dalila tentou convencê-lo a contar seu segredo, e ele cedeu, expôs-se ao perigo, como se nada pudesse de fato acontecer, como se tudo, inclusive suas verdades mais íntimas, fossem uma ficção. Nada é para valer quando nos sentimos privilegiados por tanto poder. Sempre que nos tornamos muito poderosos nossa alma é idiotizada.

Não seria isso o que aconteceu com o mundo pentecostal brasileiro? Numa velocidade incrível, tornou-se um enorme movimento religioso. O Brasil não é mais apenas o maior país católico do mundo, é também o maior país pentecostal. Canais de TV, emissoras de rádio, templos sofisticados, cargos em todas as instâncias de poder. Grandes executivos e marketeiros tornaram-se os mais poderosos líderes evangélicos no país. No entanto, o custo disso é um movimento moralmente enlameado. Pior, é o nome que é sobre todo nome, Jesus, jogado na lama dos golpistas, estelionatários, formadores de quadrilha, enganadores da fé popular, agentes de lavagem de dinheiro. E todos continuam, varrem para debaixo da mais medíocre justificativa: perseguição religiosa! Por que se importar? De tão poderosos, nosso Deus e nossa consciência se tornaram apenas ficção.

Uma vida privilegiada, como querem muitos religiosos, que conta com favores sobrenaturais, desenvolve um falso senso de intocabilidade. Por isso uso o termo ficção para descrever no que se torna a vida turbinada pela panaceia de um Deus que me dá tudo através de milagres. A vida não é para valer se sou potencializado por forças extraordinárias. Por que fazer contas? Para que me preocupar com as consequências do que faço? Para que buscar o aperfeiçoamento de meus ofícios? Para que, se Deus me confere o privilégio de facilitar minha vida com milagres pontuais?

Talvez, enxergando o avanço desse emburrecimento na vida dos crentes, Jesus tenha proposto a parábola do administrador infiel. Um homem flagrado em injustificável delito é peremptoriamente convidado a prestar contas para ser demitido. Sem poder contar com nenhuma clemência, sem recursos para dirimir o problema, desenvolve um hábil e pertinente plano para escapar do, até então, aparente beco sem saída. Renegocia as dívidas de seu patrão, oferecendo descontos especiais, talvez proporcionais às comissões que teria, e se cerca de amigos que depois de demitido certamente o ajudarão a se refazer. A conclusão da parábola é desprezada com frequência nos sermões que abordam o assunto: os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz (Lc 16.8). Melhor, os não-crentes são mais inteligentes que os crentes. Por quê? Porque, como aquele homem, não se escoram na fantasia de que Deus fará por eles. Se não têm com quem contar, pensam mais, criam mais, trabalham mais, suam mais. Vivem mais. E isso revolta Jesus a ponto de ele fazer essa denúncia sem pena nem dó.

Quando nos comportamos como heróis da fé, não apenas nossa alma é idiotizada; também perdemos o senso de repercussão dos nossos atos. Parece típico do comportamento dos melhores super-heróis guardar para o último instante o grande movimento, a grande vitória, o milagre.

O Super-homem só mostra seus poderes quando falta um segundo para a mocinha se espatifar no chão. O Batman só se acerta com Robin e suas parafernálias poderosas quando a água está para cobrir a cabeça. E o Popaye -- ele é o melhor -- só come espinafre quando o rolo compressor, conduzido pelo diabo do Brutus, está a um centímetro de esmagá-lo. Só então ele se ergue, sai do barril de concreto duro, dá um soco no rolo compressor com o Brutus junto e termina com um beijo magnífico na Olívia Palito.

É assim que vejo Sansão. Vive sempre com a ideia de que na última hora dá um jeito. Na última hora, o Espírito vem e é pancada para todo lado e tudo dá certo. Mentira. Na última hora a força não aparece e Sansão fracassa! Talvez o fracasso do herói seja a única forma de ele acordar da ficção para voltar à vida.

É assim que vejo também alguns religiosos hoje. Tocam a vida, adiam decisões, aceitam pecados, prorrogam acertos, escondem imoralidades e na igreja pedem milagres. É pecado e trágico, incredulidade e engano, viver na dependência de milagres. Quem vive esperando por milagres se torna um irresponsável, como Sansão. Sempre que vivo contando com um milagre torno-me não uma pessoa que vive pela fé, mas um leviano.

Para não nos tornarmos uma ficção a caminho da tragédia, precisamos viver como se Deus não fosse fazer milagre algum. E, provavelmente, a maioria dos milagres, se não todos, com os quais sonhamos não vão acontecer. Porque os milagres não são da nossa conta. Não são do nosso mundo. Não são da nossa vida. São da conta, do mundo e da vida de Deus. Se ele fizer é porque há alguma razão sempre muito maior que nossa individualidade envolvida, e não porque queira tornar a nossa vida mais fácil e privilegiada. Deus já aprendeu com os heróis que criou. Gente privilegiada, com uma biografia recheada de milagres, se desumaniza. Fracassa.

Quem sabe nesse nosso tempo evangélico de escândalos possamos acordar da ficção de heroísmo em que tornamos nossa vida? Quem sabe?

Há um outro detalhe que me chama a atenção nas duas histórias já referidas. Em ambas, Sansão se descuida com pequenos segredos por incontrolável intolerância. É um tédio insuportável a insistência das mulheres para que lhes revele suas verdades. O texto denuncia o que acontece na alma de Sansão.

Ela chorou durante o restante da semana da festa. Por fim, no sétimo dia, ele lhe contou, pois ela continuava a perturbá-lo. Ela, por sua vez, revelou o enigma ao seu povo. (Jz 14.17)

Importunando-o o tempo todo, ela o cansava dia após dia, ficando ele a ponto de morrer. Por isso ele lhe contou o segredo. (Jz 16.16-17)

Sansão é um homem tão acostumado com os prodígios que acaba entediado, perde a paciência, com aquilo que é comum da vida. Verdades como fidelidade, paciência, discernimento, perseverança, lucidez, humildade, afetos, conversas, amizade, companheirismo, tornam-se insuportáveis. Uma reação, talvez, semelhante à do protagonista de "A Náusea", de Jean Paul-Sartre. Um homem que ao assistir às banalidades da vida, como pessoas passeando pelas ruas da cidade, surta com náuseas fortíssimas. Sempre que me cerco de grandes feitos torno-me entediado com a vida.

Durante muito tempo se papagaiou um jargão entre os evangélicos: 'Nenhuma oração, nenhum poder. Pouca oração, pouco poder. Muita oração, muito poder'. Parece fazer algum sentido, mas não faz nenhum. Segundo a tragédia de Sansão, o oposto é que faz sentido: 'Muito poder, nenhuma oração. Nenhum poder, muita oração'.

Sansão não foi derrotado por algo ou alguém com mais poder do que ele. Foi derrotado pela realidade. Pela simplicidade da vida. Pela insistência sensual de uma mulher. Pelas disputas de poder nos bastidores de seus relacionamentos. Coisas que fazem parte da vida de qualquer mortal.

Toda a história de Sansão é marcada por vitórias com um jeito artificial. São vitórias fictícias, sem consistência. Não são vitórias de fato. Sem o último capítulo suspeitaríamos de uma história para fazer um pequeno hebreu dormir. A única vitória com gosto de verdade acontece apenas no final, mas com sabor agridoce.

Sansão vence para valer os filisteus quando está cego, enfraquecido e humilhado. Vence-os com poucas palavras e sem espetáculo algum, pelo menos não um espetáculo para si mesmo. Não há um sorriso de herói acima dos demais. Sansão vence os filisteus não para ser um vencedor, mas para fazer seu povo vencedor. Ele vence, mas não vive para ver a vitória. Seu último pedido é também uma desistência. "Que eu morra com os filisteus!" (Jz 16.30).

A história termina com uma grandeza estranha. Sansão foi mais vencedor na morte do que na vida: "Assim, na sua morte, Sansão matou mais homens do que em toda a sua vida" (v. 30).

Vencemos na vida quando morremos para nossas ficções messiânicas, quando perdemos nossas falsas onipotências. Um vencedor nunca é um herói. É um de nós apenas -- lembra a morte.

(Capítulo do livro "Salvos da Perfeição -- mais humanos e mais perto de Deus", lançamento de junho da Editora Ultimato)


Elienai Cabral Júnior é casado com Bete e pai de Ana Clara, Gabriela e Thales. É a terceira geração de pastores em sua família. Muito cedo optou por uma pregação crítica e imaginativa, o que o levou a acrescentar aos estudos de teologia a formação em filosofia. É mestrando em ciências da religião na Universidade Metodista de São Bernardo e pastoreia a Igreja Betesda do Tatuapé, em São Paulo. Escreve regularmente em seu blog: www.elienaijr.wordpress.com

fonte: http://www.ultimato.com.br/?pg=show_conteudo&util=1&categoria=5&registro=1044&pagina=4#

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